Antes mesmo de o sol nascer, estou de pé, segurando uma xícara de café enquanto observo o mundo acordar pela minha janela. A sensação de ver o dia tomando o lugar da noite é relaxante, é lindo, mas, depois de presenciar isso tantas vezes, começo a sentir falta de estar mergulhada no mundo dos sonhos. Sinto falta de dormir uma noite inteira.
Infelizmente, já faz meses que o máximo que consigo dormir são três horas, e ainda é um sono leve e fragmentado. Já tentei de tudo: chá de camomila, erva-doce, evitar o celular na cama, aromaterapia, ler... nada funciona. A única coisa que ainda não experimentei é tomar remédios, mas não quero recorrer a isso. Eu sei exatamente qual é o meu problema; quando me deito e fecho os olhos, tudo o que vejo é Gustavo cuspindo na minha cara o quanto aquela ruiva é superior a mim. Melissa é tudo o que você nunca foi: divertida, alegre... Tomo mais um gole de café, sentindo o gosto amargo percorrer minha garganta, enquanto o calçadão, que há poucos minutos estava vazio, começa a ganhar vida. Vejo os pescadores empurrando suas jangadas para o mar, os barraqueiros preparando as mesas e cadeiras na faixa de areia, e as primeiras pessoas que aproveitam para correr ou caminhar antes que o lugar se transforme em um verdadeiro formigueiro humano. Diante dos meus olhos, o céu vai mudando de cor, passando de um azul profundo para um tom claro, quase índigo. Quando o sol finalmente desponta no horizonte, a paciência que me resta se esgota. Ficar no apartamento é sufocante, e o silêncio me atordoa. Deixo a xícara no balcão da cozinha e vou até o quarto, onde as roupas do dia já estão separadas sobre a cama. Escolho um terninho azul-escuro, elegante e não muito justo. Vestida, me posiciono diante do espelho, escovo os cabelos e os prendo em um coque firme. Com as pontas dos dedos, passo um pouco de gel para garantir que nenhum fio fique fora do lugar. Coloco um par de brincos discretos e calço meu scarpin preto. Pronta para mais um longo dia de trabalho. Antes de sair, pego a bolsa no sofá e já começo a mentalmente revisar a agenda do dia: revisar o relatório da loja 46 assim que chegar ao escritório e a reunião às dez horas. Abro e fecho a porta do apartamento, quando me lembro de um detalhe importante: a videochamada com Itamar, o encarregado da loja 16. Mais uma coisa para administrar... — Bom dia, Júlia! — A voz animada interrompe meus pensamentos, e imediatamente reconheço a quem pertence. Um suspiro me escapa enquanto termino de girar a chave na fechadura. Buscando ter a paciência de Jó, me viro devagar, quase como em câmera lenta, para encarar meu novo assistente que, por ironia do destino, também é meu vizinho. — Bom dia, Eduardo. — Esforço-me para não deixar o tom azedo transparecer. — Vai caminhando? A resposta "não" está na ponta da língua, mas penso melhor. Não é de bom tom começar o primeiro dia de trabalho dele sendo grosseira. — Sim. — Posso lhe acompanhar? Conto até três mentalmente, tentando evitar o impulso de revirar os olhos. — Claro. — Engulo em seco enquanto caminhamos em direção ao elevador. Deixo que ele aperte o botão, e quando as portas se abrem, entramos. Permaneço em silêncio, não tenho interesse em conversar e espero que ele perceba isso. O elevador para no quinto andar e alguns moradores entram, fazendo Eduardo se aproximar de mim. Ele é mais alto do que eu imaginava, e seu perfume amadeirado, ao mesmo tempo refrescante, invade meu espaço. Fecho os olhos, permitindo que cada nota aromática me envolva. As portas do elevador se abrem e logo saímos do prédio, caminhando lado a lado em silêncio, graças a Deus. Vencemos o primeiro quarteirão, faltando apenas três para chegar ao prédio da empresa, e sigo torcendo para que permaneça assim. — Faz tempo que mora aqui, Júlia? Eu deveria saber que minhas preces geralmente não são ouvidas...— Faz tempo, sim. — A imagem de mim mesma, com apenas 20 anos, chegando a Fortaleza, carregando uma mala e o coração cheio de sonhos, pipoca na minha mente.Aguardo por mais alguma pergunta, mas ela não vem. Vencemos o terceiro quarteirão e, pelo canto dos olhos, vejo-o parar e olhar o relógio.— Esqueceu alguma coisa, Eduardo? — pergunto por educação e também por curiosidade.Fixo meu olhar nele enquanto Eduardo olha para os lados, como se procurasse algo. Quando finalmente encontra, se volta para mim, e um sorriso tímido surge em meu rosto.— Vamos tomar água de coco?— Água de coco? Agora? — Olho para o relógio e percebo que ainda falta quase meia hora para o expediente começar.— Vamos, Júlia, não vai se arrepender — ele insiste, fitando meus olhos.Penso em dizer não, mas, ao olhar para ele parado na minha frente, uma batalha interna se inicia: aceitar ou não? Olho em direção ao prédio da New Lux, que está apenas a um quarteirão — na verdade, nem é um quarteirão propriamente dito
Sentada à minha mesa, com o ar-condicionado no mínimo, tento me concentrar no relatório. Mas, para minha raiva, não consigo parar de pensar na intrusa que invadiu meu território. Já se passaram dois meses desde a sua chegada, e, diariamente, sou obrigada a testemunhar os sorrisos e os olhares que Gustavo e ela trocam. Por vezes, consigo perceber carícias sutis entre eles, gestos que revelam uma proximidade além do âmbito profissional. É frustrante e angustiante presenciar essa situação.Mesmo que eu tente controlar minhas emoções, a presença dela mexe comigo — é uma verdadeira afronta à minha pessoa, um desrespeito que é difícil de engolir, especialmente agora que todos no escritório começam a gostar dela.Por que ela precisava ser tão encantadora, sempre pronta para ajudar? Seria mais fácil se ela fosse uma inútil. Desisto! — jogo os papéis na mesa, exausta de lutar contra meus próprios pensamentos. Por mais que eu me esforce para não me deixar abalar, sinto-me traída novamente, não
Quando finalmente chego ao meu destino, o azul profundo do mar e do céu se estende diante de mim, ocupando toda a minha visão. Encho os pulmões de ar, permitindo que o cheiro salgado da maresia invada meu ser por completo. Aproximo-me do parapeito, solto meu coque e deixo que o vento bagunce meus cabelos.A culpa me envolve, pesada e implacável. Fui irresponsável ao deixar que a chegada de Melissa me abalasse tanto. Não posso me dar ao luxo de pôr tudo a perder. Conquistei tudo o que tenho, mas, para chegar até aqui, decepcionei minha mãe. Ela estava tão feliz com o meu casamento com o filho do prefeito da nossa pequena cidade. Finalmente estaríamos livres da pobreza, dizia ela.Mas não era a vida que eu queria. Não queria me casar com Roberto só por dinheiro. Ele não seria feliz comigo, e eu tão pouco seria com ele, sabendo que seu coração pertencia a um rapaz da cidade vizinha. O casamento lhe daria a liberdade que ele não podia ter como solteiro, pois sua família jamais aceitaria s
— Talvez seja melhor você convidar alguém da sua idade, do seu círculo de amizades.— O quê? Não posso acreditar que estou ouvindo isso!— É isso mesmo. Você precisa estar cercada de pessoas da sua idade. O meu tempo já passou.Ouço sua risada, e logo ele se vira.— De onde você tirou essa ideia de que seu tempo passou? Você é jovem, muito linda.A palavra “linda” escorrega de seus lábios, quase se demorando no ar, como se ele quisesse destacar cada sílaba, tornando-a mais especial, mais intensa.Linda e jovem?A ideia parece tão distante da minha realidade que não consigo segurar e começo a rir. E, para minha surpresa, Eduardo também se solta, rindo junto comigo. Rimos tanto que minha barriga começa a doer, e o ar vai se escapando de mim, até que sou obrigada a parar, só para recuperar o fôlego. Ele faz o mesmo.Viro-me para ele, observando seu sorriso e os olhos brilhando com a diversão, ainda marejados de lágrimas enquanto tenta controlar a risada. Há algo de encantador nesse momen
Ao chegarmos em nossa sala, Eduardo solta um suspiro profundo, enquanto anda de um lado para o outro.— Esse Gustavo realmente ultrapassou todos os limites. Não consigo entender como alguém pode ser tão desrespeitoso — Ele murmura mais para si do que para mim.Acompanho o rosto do meu assistente ganhar um tom avermelhado, e apesar de estar usando blazer, os músculos de seus ombros e braços se tornam visíveis. Eduardo está realmente incomodado, e sua indignação me atinge de uma forma que não sei decifrar. Há algo reconfortante, em saber que tenho alguém disposto a enfrentar situações em meu nome.Resolvo ficar quieta, sento na minha cadeira, e discretamente mantenho meus olhos nele, que ainda anda de um lado para o outro. Até que finalmente resolve ir para seu lugar e se volta para os documentos espalhados pela mesa.Quando a respiração dele fica visivelmente mais tranquila, me permito retomar para as minhas planilhas de vendas do mês. No entanto, de tempos em tempos, nossos olhos se c
Entro na minha sala, bufando de raiva. Se tivesse uma arma na minha frente, com certeza daria um tiro na cabeça do meu ex. Passo por Eduardo, que se mantém em silêncio, e caminho em direção à janela, mas nem a bela paisagem consegue me acalmar. Como pude ter sido tão cega em relação ao Gustavo? Realmente, não importa o tempo que passamos com alguém, nunca vamos conhecê-lo verdadeiramente. Nunca chegaremos ao miolo da cebola.De repente, uma xícara aparece na minha frente, interrompendo o turbilhão de pensamentos. Olho para o lado e encontro Eduardo com a sobrancelha levantada.Aceito agradecida, aproximo a xícara do meu rosto e respiro fundo o aroma reconfortante de camomila. Sorvo um pequeno gole, que não só aquece meu corpo, mas também acalma a minha mente agitada.Fito Eduardo que está ao meu lado, também segurando uma xícara de chá nas mãos. Nesses dois meses, ele incorporou esse ritual à minha rotina. É estranho como uma conexão entre nós se formou, algo que eu nunca consegui ter
Desejando espantar as borboletas, caminho pelo meu apartamento em direção ao banheiro. A cada passo, uma peça de roupa cai, e a necessidade de um banho se torna urgente. Quando a água gelada toca minha pele, me permito relaxar, deixando que ela leve embora o calor que queimava por dentro. Esse calor estranho, que muda meus pensamentos, que me faz imaginar situações que nunca deveriam acontecer entre mim e meu assistente.Mais relaxada, saio do banheiro envolta no roupão, e me jogo na cama. Por que, Deus, eu aceitei esse convite? Sem vontade de ir, observo o teto, enquanto busco uma solução para esse dilema, porque sim, isso é um problema. Será que posso enviar uma mensagem, alegando dor de cabeça? Ou talvez uma cólica? Não, nenhuma das opções parece convincente o suficiente.Eduardo já me mostrou que não é burro, e muito menos inocente. Mas que droga! Será que é pedir muito não querer misturar o profissional com o pessoal?Me reviro na cama pela décima quinta vez. Nunca pensei que
— Sim, vamos usar a mesinha de centro — anuncia. — Fique à vontade. Pode deixar sua sapatilha no carpete da entrada, se preferir.— Espera, Eduardo, como assim, jantar aqui? No chão? — pergunto, levando as mãos à cintura.Eduardo solta uma gargalhada contagiante diante da minha pergunta. — O que foi? O que achou engraçado? Olhando-me divertido, ele se aproxima, cruza os braços e levanta uma sobrancelha. — Nunca jantou sentada no chão? — questiona.— Claro que sim, mas... — hesito, procurando uma resposta adequada. Como posso dizer que me sentirei boba e infantil? — É no mínimo estranho, não é? — respondo finalmente. Sem tirar o sorriso dos lábios, Eduardo se aproxima e, para minha surpresa, seus dedos acariciam suavemente meu queixo. — Se permita, Júlia, você não vai se arrepender. Sente-se e relaxe. — Deixando-me sem jeito, ele se dirige para a cozinha. Sem saber o que fazer, decido seguir o que ele disse. Tiro a sapatilha e a coloco próxima à porta. Volto e encaro a mesi