Melody amou Clide com toda a força de uma jovem apaixonada… e ele a abandonou sem olhar para trás. Perdida na poeira de Encanto, uma cidade esquecida no coração do Velho Oeste, ela não teve escolha senão buscar abrigo na Casa do Sol Nascente, o único bordel da região. Mas, ao contrário do que todos presumiam, ela nunca cruzou aquela linha. Ainda muito jovem quando chegou, foi poupada do destino das outras mulheres e passou os anos trabalhando nos bastidores — varrendo pisos, servindo bebidas, evitando olhares famintos. Só que agora, ela havia crescido, os dotes de mulher surgiram e não dava mais para esconde-los, os olhares estavam ficando insistentes demais, e a proteção que um dia existiu começava a se desfazer. Fugir não era mais uma opção — era uma questão de sobrevivência. E foi assim que, escondida em uma carroça, Melody caiu nos domínios de Duncan Sinclair, o temido dono do Rancho Aurora. O povo de Encanto sussurrava que ele matou a esposa, que era um homem bruto e que agora vivia sozinho, com uma filha recém-nascida e um coração endurecido pelo luto. Talvez houvesse um acordo a ser feito. Um negócio que poderia salvar os dois de seus próprios abismos. Mas se Melody não aprendesse a trancar o próprio coração, o amor poderia arruinar tudo… mais uma vez.
Ler maisO sol já estava mais alto quando Duncan se posicionou na varanda, a expressão impassível e o olhar fixo na trilha poeirenta que levava até sua propriedade. Ao longe, dois cavaleiros se aproximavam. O primeiro, um homem de meia-idade com postura relaxada e um chapéu bem ajustado, tinha mais cara de prefeito de cidade pequena do que de xerife. O segundo, mais jovem, tinha o rosto rígido e os ombros tensionados, visivelmente desconfortável enquanto hesitava em desmontar.Duncan não se mexeu quando eles pararam diante da cerca. Ficou ali, encostado no batente da varanda, os braços cruzados. O vento agitava levemente a aba de seu chapéu, e sua sombra se estendia como uma sentinela até a madeira gasta da escada. Sua presença bastava para manter os dois homens a uma certa distância.— Duncan — disse o homem mais velho, tocando a aba do chapéu com dois dedos. O rapaz ao lado dele ainda não sabia se descia ou não do cavalo, os olhos dançando entre a casa e o companheiro, como se esperasse inst
O "nem sob o meu cadáver" de Duncan não era uma figura de linguagem. Era um limite. Um ponto inegociável que havia se solidificado entre eles. Ele mantinha o rosto voltado para o chão, as mãos cerradas ao lado do corpo, enquanto o peso da frase ainda pairava sobre todos como uma proibição escrita em pedra. Ida olhava para ele, incrédula, como quem acabara de ouvir um absurdo dito em plena razão. Melody, a poucos passos, compreendia que havia algo mais naquela recusa. Não era apenas medo. Era pessoal. E grave.Duncan recuou com o cavalo, fazendo o animal dar alguns passos para trás com um leve puxão nas rédeas. Manteve-se montado, os punhos cerrados sob o couro tenso, como se contivesse uma tempestade. A tensão em seus ombros era visível, como se o simples ato de respirar o forçasse a atravessar um campo minado. Segurava-se firme como se a sela fosse o único ponto estável em um mundo que ameaçava ruir ao seu redor. Afastou-se alguns metros, como se precisasse de distância para conter o
O outono se anunciava como quem pede licença, mas já começava a tirar as coisas do lugar. Não era uma estação de chegada ruidosa. Era feita de pequenos sinais, como um convidado que vai empurrando os objetos devagar, rearranjando o ambiente sem que se perceba de imediato.O sol era mais pálido, a luz mais curta, o ar mais fino. A roupa demorava a secar no varal, e a água da bacia onde Melody e Ida lavavam fronhas já não permanecia morna por muito tempo. Havia um frio miúdo que não dava calafrio, mas fazia a pele desejar manga comprida. Ida havia dito, dias atrás, com a certeza de quem prevê o tempo como quem lê uma receita:— Logo o frio chega sem bater.Naquela manhã, as duas estavam lado a lado, torcendo lençóis e estendendo peças no varal. As mãos se moviam com sincronia, o silêncio sendo preenchido apenas pelo estalar úmido dos tecidos. Rose dormia no carrinho improvisado na sombra da varanda, enrolada em uma manta que ainda guardava o cheiro do armário. Tudo parecia no lugar, com
O dia nasceu como os outros. Mas Melody não.Acordou cedo, como sempre. Vestiu-se devagar, prendeu o cabelo como se cada gesto exigisse mais tempo. Lavou o rosto. Olhou no espelho — e não reconheceu a mulher que olhava de volta com tanta nitidez. O reflexo parecia mais sólido, como se houvesse ganhado peso e forma durante a noite. A nitidez dos traços era a mesma, mas o olhar carregava uma pergunta nova. E uma resposta que ainda não sabia nomear.A casa parecia igual. Mas ela via diferente.Atravessou o corredor e encontrou Ida já na cozinha, mexendo o mingau de Rose com a colher de pau. A luz da manhã entrava pelas frestas da janela com um dourado tímido, tingindo a parede com um calor que não alcançava os ossos. Havia cheiro de leite morno no ar, e o rangido ocasional da madeira soava mais alto do que de costume.— Dormiu bem? — perguntou a governanta, sem tirar os olhos da panela.Melody assentiu. Foi até a pia. Lavou as mãos. Pegou a tigela com frutas e começou a cortá-las em silê
A casa estava quieta. Não o silêncio do medo — mas aquele outro, mais raro: o do fim de um dia que deu certo.Rose dormia. Ida recolhia os últimos talheres. Duncan estava na varanda e Melody secava a louça com um gesto automático, como se ainda quisesse prolongar o instante em que tudo parecia simples. O pano úmido deslizava sobre os pratos como um feitiço bobo contra o fim da noite. O calor da cozinha ainda pairava no ar, misturado ao cheiro do bolo e da carne bem temperada. A toalha da mesa ainda estava esticada, com algumas migalhas esquecidas, como testemunhas silenciosas de um raro momento de paz.Foi quando Ida pegou algumas margaridas da jarra. As flores já murchavam um pouco, mas ainda tinham certo charme. Sem cerimônia, ela as colocou entre as páginas de um livro antigo de capa de tecido, meio desbotado nas bordas, era um livro de historias infantis.— Toma. Guarda isso junto da manta da Rose. Vai ser bom pra ela um dia lembrar desse jantar.Melody pegou o livro com as duas
O vestido azul-escuro desceu pelo corpo de Melody com a leveza de um segredo. Pela primeira vez, ela o vestia para ser vista.Penteou os cabelos com cuidado, optando por fazer uma trança simples. Se olhou no espelho mal reconhecendo o próprio reflexo, embora não tivesse se surpreendido. Já sabia o suficiente: estava diferente. Não por vaidade — por posição. Como se aquela noite exigisse uma versão dela que ainda estava se formando. O pano tocava sua pele como se pedisse silêncio. Como se cada dobra sussurrasse: "não desapareça".Na sala, os talheres tilintavam contra a louça. Ida ajustava a mesa com o cuidado de quem entende que as coisas simples carregam o que há de mais sagrado. Três lugares. Uma vela acesa. Um vaso com flores do jardim, margaridas amarelas que acrescentavam cor a mesa. E o bolo, no centro, esperando a hora certa. O ar cheirava a pão, vinho e coisa antiga — como se a casa também segurasse o fôlego.Melody parou à porta e respirou fundo antes de entrar. O som da resp
— Segura firme. Se puxar torto, vai parecer que a costureira era cega.— Não sou costureira.— Eu sei. Por isso tô mandando você só segurar.Melody riu, abafado. Ida enfiava a agulha no tecido com a precisão de quem já costurou dor pior do que pano torto. As duas estavam sentadas no banco estreito, ao lado da janela aberta, onde a luz da tarde entrava em ângulo suave. O baú ainda estava aberto no canto do quarto, exalando seu perfume antigo de cedro, tecido e lembrança.O vestido azul-escuro descansava no colo da governanta como um animal paciente, sendo remendado para renascer em outro corpo.— Ele era bonito demais pra ficar apodrecendo ali — disse Ida, mais pra si do que pra Melody. — Bom pano. Bom corte. Vai durar mais umas décadas, se bem cuidado.Melody não respondeu. Estava olhando para os pontos minúsculos com uma atenção que fingia distração. O vestido era belo. Assustadoramente belo. E nele havia algo que não se podia desmanchar com linha nova. Um silêncio antigo parecia cos
A água quente ainda escorria pelo fundo da pia quando Melody ouviu o chamado de Ida vindo do corredor. A voz não veio seca, como de costume — veio mais baixa, quase gentil.— Vem comigo um instante. Tenho algo pra te mostrar.Melody enxugou as mãos no avental e a seguiu sem fazer perguntas. No fim do corredor, Ida abriu a porta do antigo quarto de despejo. O ar ali dentro era mais frio, denso, com cheiro de madeira, pano guardado e lembrança velha demais pra ser varrida. O chão estalava levemente sob os pés, e as sombras se alongavam nos cantos como se não quisessem ser perturbadas.— O aniversário de Rose é amanhã — disse Ida, caminhando direto até um baú largo de couro envelhecido. — Um aninho. Nada de festa, mas Duncan achou que seria bom fazer um jantar. Só nós três. E... pediu que você escolhesse uns vestidos.Ela falava como quem menciona o clima, mas Melody sentiu o peso nas entrelinhas.— Vestidos? Por quê?— Porque você não vai sentar à mesa vestida como quem ainda tá fugindo
A água na bacia já estava morna, quase fria, mas Melody ainda passava o pano devagar pelo rosto sujo com todo cuidado possível. Notou que Duncan já os havia limpado os diversos cortes que havia conseguindo enquanto subia na arvore, provavelmente quando ela ainda estava inconsciente, os ferimentos ardiam e pinicavam agora. Limpou com cuidado o rosto, contornando os lugares onde ele havia passado pomada, tendo cautela com os curativos deixados por ele. Os movimentos eram lentos, quase cerimoniais, como se quisesse apagar o que sentia — ou talvez fixar aquilo de vez na pele.Estava de volta ao próprio quarto. Ida havia insistido que ela deveria descansar.— E Rose? Como está? — A pergunta saiu de Melody antes mesmo que ela pensasse.Ida sorriu:— Aquela coisinha linda não sofreu um único arranhão e continua dormindo.Melody se permitiu suspirar aliviada. Pegou a bacia do chão e jogou a agua no terreiro, o tom rosa da agua a deixava enjoada, encheu novamente a bacia com agua do barril e