O susto foi nublado pela dor.Melody piscou devagar, o corpo inteiro pulsando como um machucado exposto. Tentou se mover, mas o braço gritou alto, e ela parou. Os olhos demoraram a focar, mas logo voltaram para o homem parado na entrada da carroça.Jesus. Ele era enorme.A silhueta dele tomava conta do espaço. Largo de ombros, alto, com a mão segurando a aba da lona erguida. A luz do entardecer dourava as laterais do rosto rígido, os olhos verdes e atentos. Não parecia assustado. Parecia calculando.Melody sabia reconhecer o olhar de um homem medindo risco.Ela também sabia que era o risco.Estava desesperada demais para recusar ajuda, mas o medo dentro dela dava outro salto — um medo mais profundo, que não vinha do instinto, mas da memória. E se ele a devolvesse? Se ele pertencesse à Casa? Se fosse um dos deles?O braço latejava como fogo. Ela queria implorar, mas o corpo tremia de frio e esforço. Os lábios ardiam, rachados e úmidos de sangue. Ainda assim, ela os mordeu, tentando reu
A carroça avançava pela estrada de terra batida, o som dos cascos e das rodas marcando um ritmo constante na noite que chegava. O céu, já tingido de azul escuro, deixava os últimos fios de luz escaparem pelas copas das árvores. Era um silêncio de fim de mundo, só quebrado pelos estalos do couro e o ranger da madeira.A fazenda surgiu no horizonte.A casa grande de madeira mantinha sua dignidade cansada. A varanda ampla era sustentada por colunas grossas, e os degraus largos da entrada já conheciam muitos anos de pés e silêncios. À direita, o estábulo recortava-se contra o céu, e uma cerca baixa contornava o terreno com humildade.No jardim à frente da casa, resistia o cuidado antigo de Esperanza. As roseiras estavam secas. A lavanda, quase morta. Mas as margaridas — teimosas — ainda floresciam, como se recusassem a aceitar a ausência da mão que as podava.Duncan puxou as rédeas e fez Caleb parar diante da varanda. O cavalo bufou com gratidão.A poeira, erguida no último trecho da estr
Duncan passou a escova mais uma vez pelo flanco do animal, o braço trabalhando num ritmo mecânico, quase ritual. O cheiro de feno úmido, couro e suor ajudava a empurrar o mundo pra longe.Mas o grito que a jovem soltou quando Ida recolocou o ombro no lugar ainda o perseguia.Agudo. Cortante. Feminino.Ele odiava gritos de dor femininos.Mais do que os sons, odiava o que eles despertavam.Aquele som trazia lembranças. Não nítidas, mas claras o suficiente. Vozes abafadas por madeira grossa.Uma mão segurando Rose pela primeira vez, enquanto a mulher gritava do outro lado da parede.O tempo passou, mas os sons ficavam.Alguns se instalam no peito e cavam. Silenciosos. Pacientes.Forçou a escova com mais brusquidão por um instante, depois parou. Respirou fundo.O animal virou a cabeça, como se dissesse: chega.Duncan assentiu para o cavalo em concordância, o velho Caleb não merecia ser maltratado porque ele estava inquieto. Guardou a escova, soltou a trava da baia com um estalo e deu dois
O cheiro de lavanda foi o primeiro a alcançar Melody.Depois veio o toque dos lençóis limpos sob a pele, o peso gentil de uma colcha bem dobrada, a maciez inesperada do colchão sob o corpo dolorido.Era estranho. Quase íntimo.O ambiente tinha aquele tipo de silêncio que não amedrontava. Um silêncio de lugar vivido, organizado. A luz do sol filtrava pelas cortinas claras, cortando o quarto em faixas de calor e sombra. No ar, havia um fundo de cera de madeira — e mais distante, o aroma acolhedor e forte de café passado.Ela piscou devagar.Os olhos ainda pesavam.O ombro latejava com dor surda e constante, irradiando para o lado do pescoço e escorrendo pelo braço engessado.O teto era de madeira clara, bem conservada. Um lampião apagado estava sobre um dos armarios. À esquerda, uma cômoda com espelho em moldura gasta. Os móveis brilhavam com uma camada recente de cera, e o cheiro — aquele cheiro — era reconfortante demais.Ela tentou se erguer. O corpo inteiro protestou.Um gemido esca
— Eu gostaria de tentar, senhora Jenkis.Ida assentiu com um gesto curto, como quem confirma algo já decidido.— Então coma. Vai te fazer bem.Melody pegou a colher com a mão boa, ainda trêmula. O mingau estava morno, com gosto suave de leite fresco, uma pitada de açúcar mascavo e talvez um toque de canela. Era simples. Era bom. Era gentil, de um jeito que ela não sabia mais receber.Ela havia perdido a noção de civilidade, percebeu quase chocada consigo mesma, os anos na Casa do Sol Nascente lhe pareceram ainda mais injustos.A cada colherada, o corpo parecia relaxar. O calor se espalhava por dentro como um cobertor. As costas afundaram mais no colchão. A tensão que havia se instalado na mandíbula se dissolveu devagar. Quando a tigela estava pela metade, os olhos começaram a pesar. A mão fraquejou. A última colherada ficou esquecida dentro da tigela.Ida recolheu a bandeja com cuidado, observando a garota que já adormecia.O rosto dela, agora suavizado pelo sono, parecia anos mais jo
O teto era sempre o mesmo, mas a forma como ela o via mudava a cada dia.Melody soltou um suspiro longo, daqueles que pareciam sair direto da alma. Estava cansada de ficar deitada. O corpo ainda doía, sim — especialmente o ombro enfaixado —, mas o tédio era pior. A sensação de estar viva sem agir lhe causava uma inquietação ácida e urgente.Virou o rosto. A trouxa com seus pertences permanecia onde a haviam colocado: sobre a cadeira, como uma lembrança compacta de quem ela tinha sido. Pelo que podia ver, ninguém havia mexido em suas coisas... até porque, o que haveria ali pra ver?Aquilo não era uma mala. Era um inventário de sobrevivência.O quarto era pequeno, mas arejado. A luz entrava filtrada por uma cortina fina, e o cheiro da casa era diferente — madeira antiga, lenha, e algo recém-assado. Aquele cheiro aquecia algo dentro dela.Não era o cheiro de perfume barato e álcool. Era o cheiro de casa. De família. De segurança.Ela não poderia jamais se deixar enganar por esses cheiros
A cozinha tinha cheiro de açúcar e lenha.Melody permaneceu parada perto da porta, sentindo o calor vindo do fogão e tentando decidir para onde ir. Duncan ainda estava à mesa, mastigando as últimas garfadas de torta com a tranquilidade impassível de quem já tinha visto o pior da vida — e sabia reconhecer quando as coisas estavam quietas demais.Ela hesitou, sem saber se deveria se anunciar, se afastar ou fingir que ele não existia.Mas Duncan terminou primeiro.Enfiou o último pedaço na boca, mastigou devagar. Pegou o chapéu pendurado no encosto da cadeira, colocou na cabeça com um gesto automático e, ao passar por ela, murmurou:— Senhorita.Foi só isso. E saiu.Ida surgiu de repente com um pano de prato nos ombros e a cara de quem não pretendia fazer perguntas.— Pegue a cesta. Leve a menina e vá buscar os ovos.A instrução foi seca, objetiva. Melody acenou com a cabeça. A cesta estava encostada ao batente. Quando se abaixou para pegá-la, ouviu um som baixo e ritmado vindo do chão d
Havia um quartinho nos fundos que Melody logo descobriu se tratar de um depósito. Era um cômodo poeirento.Não por negligência, mas por pouco uso. Era ali que se guardavam as coisas que não serviam mais, mas que também não se jogavam fora. Ferramentas, tecidos, botas gastas. Memória compactada em caixas.Melody foi enviada ali por Ida, com uma instrução prática:— Veja o que ainda serve... vou buscar uma vassoura.Obedeceu.Não porque gostasse de poeira, mas porque a tarefa dava ao corpo algo pra fazer — e, à cabeça, algum silêncio.Estava se conectando rápido demais com as pessoas ao redor dela, e isso realmente tinha que parar.Sentou-se no chão com as pernas cruzadas sobre um tapete enrolado. Começou a abrir os pacotes com cuidado.A primeira pilha era de panos de prato — alguns novos, outros gastos até a transparência.Alguns tinham bordados: flores simples, iniciais, um ou outro com manchas que não sairiam mais.Feitos à mão por alguém que bordava até o que seria usado para secar