Havia um quartinho nos fundos que Melody logo descobriu se tratar de um depósito. Era um cômodo poeirento.Não por negligência, mas por pouco uso. Era ali que se guardavam as coisas que não serviam mais, mas que também não se jogavam fora. Ferramentas, tecidos, botas gastas. Memória compactada em caixas.Melody foi enviada ali por Ida, com uma instrução prática:— Veja o que ainda serve... vou buscar uma vassoura.Obedeceu.Não porque gostasse de poeira, mas porque a tarefa dava ao corpo algo pra fazer — e, à cabeça, algum silêncio.Estava se conectando rápido demais com as pessoas ao redor dela, e isso realmente tinha que parar.Sentou-se no chão com as pernas cruzadas sobre um tapete enrolado. Começou a abrir os pacotes com cuidado.A primeira pilha era de panos de prato — alguns novos, outros gastos até a transparência.Alguns tinham bordados: flores simples, iniciais, um ou outro com manchas que não sairiam mais.Feitos à mão por alguém que bordava até o que seria usado para secar
O dia começara como tantos outros. Uma rotina à qual a jovem já havia se acostumado. Rose espalhava migalhas no chão da cozinha, como se alimentasse galinhas que só existiam na cabeça dela. Melody apenas sorria e varria em silêncio enquanto Ida socava a massa com a força de quem tenta resolver um problema antigo no braço.Toda essa calmaria estava deixando os nervos dela em frangalhosMelody estava habituada à tensão, sobrevivera de susto em susto por tempo demais. Aquele sossego quase sonolento lhe dava calafrios.O almoço veio mais cedo que o normal. Quando Duncan entrou, os cabelos estavam úmidos novamente. Agora ela sabia o motivo dos fios escuros estarem sempre molhados na hora da refeição do meio dia. Ele se lavava na bomba manual do poço antes de comer, as mãos molhadas deixando os cabelos úmidos conforme o homem refrescava a nuca a fim de espantar o calor.Ela se perdeu olhando para ele mais uma vez, o diacho do homem era belo demais para o próprio bem.Completamente alheio ao
Confusa, deslocada, envergonhada, Melody sentiu uma mão pousar em seu ombro. O calor do toque atravessou a couraça de vergonha que a envolvia como uma mortalha. A voz suave de Ida veio como um bálsamo inesperado.— Venha, meu bem. Está tudo bem… de verdade.Melody não respondeu. Apenas largou as faixas no chão, como quem larga os escombros de uma guerra silenciosa, e, anestesiada, se levantou. Cada movimento parecia acontecer sob o peso da água. Um cansaço antigo, enraizado em suas costelas, em seus pulsos, em suas têmporas, não dava trégua.— Eu vou lavar a louça — murmurou, não porque fosse necessário, mas porque a rotina era seu último escudo. Se ficasse parada, talvez desabasse, abotoou o vestido com gestos mecânicos e procurou o rumo da tina de louça sem realmente vê-la.O resto do dia passou como um borrão para ela. Movia-se pela casa como uma marionete em silêncio, obedecendo cada tarefa que Ada lhe dava. Jogou fora as faixas — e, com elas, a ilusão de que poderia viver ali imp
A casa estava em silêncio.O tipo de silêncio que não se impunha — apenas existia. Como se a madeira, as paredes, o vento lá fora soubessem que aquela noite era delicada demais para sons bruscos. Tudo parecia caminhar mais devagar. Até o tique-taque do relógio na parede da cozinha soava menos impaciente.Melody demorou mais do que o normal para subir as escadas.O corpo ainda doía em pontos específicos, uma lembrança sutil de tensão acumulada. Mas era um cansaço diferente — não o cansaço do medo, e sim o de quem, pela primeira vez em muito tempo, havia passado o dia inteiro tentando simplesmente… existir.Ela se despiu com cuidado. Não usava mais as faixas. Jogara fora, como se jogar um pedaço de armadura significasse também deixar cair parte da guerra. Mas ainda levava os ombros curvados, como se o corpo não soubesse como ocupar espaço sem medo.A água na bacia estava morna. Melody lavou o rosto, a nuca, a parte de trás do pescoço. A toalha pendurada cheirava a sabão simples e sol, o
Nos últimos dias, Melody se sentia mais leve. Não no corpo — embora o braço já não doesse e a respiração fluísse sem as faixas apertadas ao redor do peito —, mas na alma. Era estranho, quase desconcertante, acordar e não ter que esconder quem era. Não precisava se apagar ou se curvar. Podia apenas… existir.E isso, por mais simples que parecesse, era novo demais.A rotina no rancho ajudava. Havia tarefas, sim, mas também havia pausas. Pausas que não vinham acompanhadas de culpa ou punição. Havia silêncio — mas não o tipo que fere, aquele que se arrasta como uma lâmina fina. Era o silêncio que acolhe, que oferece espaço. O som dos passos no assoalho já não disparava alarmes em sua espinha. E o cheiro do sabão nos lençóis havia se tornado reconfortante, quase íntimo, como se dissesse: “Você está segura. Pode ficar.”Naquela mesma semana, ela havia encontrado um pacote de sementes no quartinho de depósito. O papel estava amarelado, os desenhos quase apagados, mas as instruções ainda legí
O calor seguia firme, mas o ar parecia menos pesado naquela manhã. Ida, sempre atenta aos humores da terra, comentara que os ventos já começavam a mudar — “fim de verão tem cheiro próprio”, dissera, abanando-se com um prato de lata, o olhar meio perdido no horizonte. Melody não soube identificar o cheiro, mas acreditou. Havia algo diferente, sim. O tipo de mudança que não faz barulho, mas que se instala devagar no corpo, como a brisa que precede a chuva.Passava parte das manhãs no quintal, regando os vasos improvisados. As sementes que havia plantado em latas, canecas e bacias quebradas finalmente davam sinal de vida. As folhas mal passavam de dois dedos de altura, mas estavam ali, desafiando o sol, a terra dura e o tempo. Ela as regava com uma delicadeza que não sabia possuir. Não era só água — era gesto. Era cuidado. Cuidava como quem espera, em silêncio, que alguma coisa boa aconteça.Ao seu lado, sentada na beira da sombra projetada pelo galpão, Rose brincava com as mãos sujas de
O fim da tarde caía devagar, tingindo tudo com uma luz dourada e sombras longas. O vento era morno, carregado de pólen, e o rancho parecia respirar em silêncio, tranquilo como uma criatura adormecida.Dentro da casa, Melody estava sentada perto da janela, trabalhando numa costura enquanto Ida, com mãos ágeis e experientes, terminava de remendar um vestido velho. Rose estava no chão, inquieta, brincando sem muito interesse com um brinquedo de madeira. Ela tinha dormido pouco, acordando frequentemente e choramingando sem motivo aparente.— Ela não dormiu quase nada hoje — disse Melody, suspirando enquanto olhava para a menina com preocupação. — Não sei o que está acontecendo. Parece inquieta.Ida levantou os olhos do seu trabalho e olhou com calma para Rose, que agora largava o brinquedo e começava a se arrastar pelo chão, choramingando baixinho.— Bebês são assim mesmo, Melody. Tem dias que não param quietos. É só o corpo crescendo, ou então algum desconforto que não conseguem explicar
O corpo de Melody reagiu antes da mente. O instinto gritou: corra.Mas ela não estava sozinha. Tinha Rose presa ao peito. Não podia simplesmente disparar.Ela girou o corpo, varreu o ambiente com os olhos e viu a única saída possível: a árvore.O carvalho branco. Galhos baixos. Tronco grosso. Casca rugosa. Refúgio improvável.Segurou Rose com mais firmeza. E correu.O puma veio no mesmo instante, deslizando rente ao chão, o corpo como uma flecha viva.Ela alcançou o tronco. Subiu um pé. Se impulsionou.O impacto veio.As garras acertaram sua perna, abrindo cortes quentes em sua panturrilha, feroz. O vestido se rasgou. O sangue escorreu em jorros. Ela gritou, mas não soltou a menina.Rose acordou chorando, o rosto colado ao peito da jovem. Melody prendeu o choro na garganta, agarrou o galho mais baixo com as duas mãos e forçou o corpo para cima.— Shhh... tá tudo bem, minha pequena... — sussurrou com a voz presa nos dentes, sem acreditar na própria mentira, os dedo escorregando.O puma