Duncan caminhava em silêncio, o corpo pesado sob o esforço duplo. Nos braços, Melody — ainda rígida, ainda em choque — apertava contra o peito a pequena Rose, aninhada como um filhote em sono profundo.A menina dormia com as mãos fechadas, mas de tempos em tempos agitava os dedinhos no ar, como se brincasse com alguma memória interna. Era o truque favorito dela. As mãozinhas. Sempre as mãozinhas.— Sim... aí estão — murmurou Duncan, quase por hábito, sem emoção na voz. — As mãozinhas da Rose.Melody não respondeu. Também não precisava. O aperto dos braços ao redor da criança já dizia tudo: o medo ainda tremia nos ossos.O caminho até a casa parecia mais longo do que antes. O ataque do leão da montanha já havia ficado para trás, mas o terror estava presente no cheiro do suor, no sangue seco na perna de Melody, no silêncio espesso demais para ser confortável.Quando alcançaram o alpendre da casa, o som das botas pesadas na madeira alertou Ida antes que ele dissesse qualquer coisa.A gov
A água na bacia já estava morna, quase fria, mas Melody ainda passava o pano devagar pelo rosto sujo com todo cuidado possível. Notou que Duncan já os havia limpado os diversos cortes que havia conseguindo enquanto subia na arvore, provavelmente quando ela ainda estava inconsciente, os ferimentos ardiam e pinicavam agora. Limpou com cuidado o rosto, contornando os lugares onde ele havia passado pomada, tendo cautela com os curativos deixados por ele. Os movimentos eram lentos, quase cerimoniais, como se quisesse apagar o que sentia — ou talvez fixar aquilo de vez na pele.Estava de volta ao próprio quarto. Ida havia insistido que ela deveria descansar.— E Rose? Como está? — A pergunta saiu de Melody antes mesmo que ela pensasse.Ida sorriu:— Aquela coisinha linda não sofreu um único arranhão e continua dormindo.Melody se permitiu suspirar aliviada. Pegou a bacia do chão e jogou a agua no terreiro, o tom rosa da agua a deixava enjoada, encheu novamente a bacia com agua do barril e
A água quente ainda escorria pelo fundo da pia quando Melody ouviu o chamado de Ida vindo do corredor. A voz não veio seca, como de costume — veio mais baixa, quase gentil.— Vem comigo um instante. Tenho algo pra te mostrar.Melody enxugou as mãos no avental e a seguiu sem fazer perguntas. No fim do corredor, Ida abriu a porta do antigo quarto de despejo. O ar ali dentro era mais frio, denso, com cheiro de madeira, pano guardado e lembrança velha demais pra ser varrida. O chão estalava levemente sob os pés, e as sombras se alongavam nos cantos como se não quisessem ser perturbadas.— O aniversário de Rose é amanhã — disse Ida, caminhando direto até um baú largo de couro envelhecido. — Um aninho. Nada de festa, mas Duncan achou que seria bom fazer um jantar. Só nós três. E... pediu que você escolhesse uns vestidos.Ela falava como quem menciona o clima, mas Melody sentiu o peso nas entrelinhas.— Vestidos? Por quê?— Porque você não vai sentar à mesa vestida como quem ainda tá fugindo
— Segura firme. Se puxar torto, vai parecer que a costureira era cega.— Não sou costureira.— Eu sei. Por isso tô mandando você só segurar.Melody riu, abafado. Ida enfiava a agulha no tecido com a precisão de quem já costurou dor pior do que pano torto. As duas estavam sentadas no banco estreito, ao lado da janela aberta, onde a luz da tarde entrava em ângulo suave. O baú ainda estava aberto no canto do quarto, exalando seu perfume antigo de cedro, tecido e lembrança.O vestido azul-escuro descansava no colo da governanta como um animal paciente, sendo remendado para renascer em outro corpo.— Ele era bonito demais pra ficar apodrecendo ali — disse Ida, mais pra si do que pra Melody. — Bom pano. Bom corte. Vai durar mais umas décadas, se bem cuidado.Melody não respondeu. Estava olhando para os pontos minúsculos com uma atenção que fingia distração. O vestido era belo. Assustadoramente belo. E nele havia algo que não se podia desmanchar com linha nova. Um silêncio antigo parecia cos
O vestido azul-escuro desceu pelo corpo de Melody com a leveza de um segredo. Pela primeira vez, ela o vestia para ser vista.Penteou os cabelos com cuidado, optando por fazer uma trança simples. Se olhou no espelho mal reconhecendo o próprio reflexo, embora não tivesse se surpreendido. Já sabia o suficiente: estava diferente. Não por vaidade — por posição. Como se aquela noite exigisse uma versão dela que ainda estava se formando. O pano tocava sua pele como se pedisse silêncio. Como se cada dobra sussurrasse: "não desapareça".Na sala, os talheres tilintavam contra a louça. Ida ajustava a mesa com o cuidado de quem entende que as coisas simples carregam o que há de mais sagrado. Três lugares. Uma vela acesa. Um vaso com flores do jardim, margaridas amarelas que acrescentavam cor a mesa. E o bolo, no centro, esperando a hora certa. O ar cheirava a pão, vinho e coisa antiga — como se a casa também segurasse o fôlego.Melody parou à porta e respirou fundo antes de entrar. O som da resp
A casa estava quieta. Não o silêncio do medo — mas aquele outro, mais raro: o do fim de um dia que deu certo.Rose dormia. Ida recolhia os últimos talheres. Duncan estava na varanda e Melody secava a louça com um gesto automático, como se ainda quisesse prolongar o instante em que tudo parecia simples. O pano úmido deslizava sobre os pratos como um feitiço bobo contra o fim da noite. O calor da cozinha ainda pairava no ar, misturado ao cheiro do bolo e da carne bem temperada. A toalha da mesa ainda estava esticada, com algumas migalhas esquecidas, como testemunhas silenciosas de um raro momento de paz.Foi quando Ida pegou algumas margaridas da jarra. As flores já murchavam um pouco, mas ainda tinham certo charme. Sem cerimônia, ela as colocou entre as páginas de um livro antigo de capa de tecido, meio desbotado nas bordas, era um livro de historias infantis.— Toma. Guarda isso junto da manta da Rose. Vai ser bom pra ela um dia lembrar desse jantar.Melody pegou o livro com as duas
O dia nasceu como os outros. Mas Melody não.Acordou cedo, como sempre. Vestiu-se devagar, prendeu o cabelo como se cada gesto exigisse mais tempo. Lavou o rosto. Olhou no espelho — e não reconheceu a mulher que olhava de volta com tanta nitidez. O reflexo parecia mais sólido, como se houvesse ganhado peso e forma durante a noite. A nitidez dos traços era a mesma, mas o olhar carregava uma pergunta nova. E uma resposta que ainda não sabia nomear.A casa parecia igual. Mas ela via diferente.Atravessou o corredor e encontrou Ida já na cozinha, mexendo o mingau de Rose com a colher de pau. A luz da manhã entrava pelas frestas da janela com um dourado tímido, tingindo a parede com um calor que não alcançava os ossos. Havia cheiro de leite morno no ar, e o rangido ocasional da madeira soava mais alto do que de costume.— Dormiu bem? — perguntou a governanta, sem tirar os olhos da panela.Melody assentiu. Foi até a pia. Lavou as mãos. Pegou a tigela com frutas e começou a cortá-las em silê
O outono se anunciava como quem pede licença, mas já começava a tirar as coisas do lugar. Não era uma estação de chegada ruidosa. Era feita de pequenos sinais, como um convidado que vai empurrando os objetos devagar, rearranjando o ambiente sem que se perceba de imediato.O sol era mais pálido, a luz mais curta, o ar mais fino. A roupa demorava a secar no varal, e a água da bacia onde Melody e Ida lavavam fronhas já não permanecia morna por muito tempo. Havia um frio miúdo que não dava calafrio, mas fazia a pele desejar manga comprida. Ida havia dito, dias atrás, com a certeza de quem prevê o tempo como quem lê uma receita:— Logo o frio chega sem bater.Naquela manhã, as duas estavam lado a lado, torcendo lençóis e estendendo peças no varal. As mãos se moviam com sincronia, o silêncio sendo preenchido apenas pelo estalar úmido dos tecidos. Rose dormia no carrinho improvisado na sombra da varanda, enrolada em uma manta que ainda guardava o cheiro do armário. Tudo parecia no lugar, com