A casa estava em silêncio.O tipo de silêncio que não se impunha — apenas existia. Como se a madeira, as paredes, o vento lá fora soubessem que aquela noite era delicada demais para sons bruscos. Tudo parecia caminhar mais devagar. Até o tique-taque do relógio na parede da cozinha soava menos impaciente.Melody demorou mais do que o normal para subir as escadas.O corpo ainda doía em pontos específicos, uma lembrança sutil de tensão acumulada. Mas era um cansaço diferente — não o cansaço do medo, e sim o de quem, pela primeira vez em muito tempo, havia passado o dia inteiro tentando simplesmente… existir.Ela se despiu com cuidado. Não usava mais as faixas. Jogara fora, como se jogar um pedaço de armadura significasse também deixar cair parte da guerra. Mas ainda levava os ombros curvados, como se o corpo não soubesse como ocupar espaço sem medo.A água na bacia estava morna. Melody lavou o rosto, a nuca, a parte de trás do pescoço. A toalha pendurada cheirava a sabão simples e sol, o
Nos últimos dias, Melody se sentia mais leve. Não no corpo — embora o braço já não doesse e a respiração fluísse sem as faixas apertadas ao redor do peito —, mas na alma. Era estranho, quase desconcertante, acordar e não ter que esconder quem era. Não precisava se apagar ou se curvar. Podia apenas… existir.E isso, por mais simples que parecesse, era novo demais.A rotina no rancho ajudava. Havia tarefas, sim, mas também havia pausas. Pausas que não vinham acompanhadas de culpa ou punição. Havia silêncio — mas não o tipo que fere, aquele que se arrasta como uma lâmina fina. Era o silêncio que acolhe, que oferece espaço. O som dos passos no assoalho já não disparava alarmes em sua espinha. E o cheiro do sabão nos lençóis havia se tornado reconfortante, quase íntimo, como se dissesse: “Você está segura. Pode ficar.”Naquela mesma semana, ela havia encontrado um pacote de sementes no quartinho de depósito. O papel estava amarelado, os desenhos quase apagados, mas as instruções ainda legí
O calor seguia firme, mas o ar parecia menos pesado naquela manhã. Ida, sempre atenta aos humores da terra, comentara que os ventos já começavam a mudar — “fim de verão tem cheiro próprio”, dissera, abanando-se com um prato de lata, o olhar meio perdido no horizonte. Melody não soube identificar o cheiro, mas acreditou. Havia algo diferente, sim. O tipo de mudança que não faz barulho, mas que se instala devagar no corpo, como a brisa que precede a chuva.Passava parte das manhãs no quintal, regando os vasos improvisados. As sementes que havia plantado em latas, canecas e bacias quebradas finalmente davam sinal de vida. As folhas mal passavam de dois dedos de altura, mas estavam ali, desafiando o sol, a terra dura e o tempo. Ela as regava com uma delicadeza que não sabia possuir. Não era só água — era gesto. Era cuidado. Cuidava como quem espera, em silêncio, que alguma coisa boa aconteça.Ao seu lado, sentada na beira da sombra projetada pelo galpão, Rose brincava com as mãos sujas de
O fim da tarde caía devagar, tingindo tudo com uma luz dourada e sombras longas. O vento era morno, carregado de pólen, e o rancho parecia respirar em silêncio, tranquilo como uma criatura adormecida.Dentro da casa, Melody estava sentada perto da janela, trabalhando numa costura enquanto Ida, com mãos ágeis e experientes, terminava de remendar um vestido velho. Rose estava no chão, inquieta, brincando sem muito interesse com um brinquedo de madeira. Ela tinha dormido pouco, acordando frequentemente e choramingando sem motivo aparente.— Ela não dormiu quase nada hoje — disse Melody, suspirando enquanto olhava para a menina com preocupação. — Não sei o que está acontecendo. Parece inquieta.Ida levantou os olhos do seu trabalho e olhou com calma para Rose, que agora largava o brinquedo e começava a se arrastar pelo chão, choramingando baixinho.— Bebês são assim mesmo, Melody. Tem dias que não param quietos. É só o corpo crescendo, ou então algum desconforto que não conseguem explicar
O corpo de Melody reagiu antes da mente. O instinto gritou: corra.Mas ela não estava sozinha. Tinha Rose presa ao peito. Não podia simplesmente disparar.Ela girou o corpo, varreu o ambiente com os olhos e viu a única saída possível: a árvore.O carvalho branco. Galhos baixos. Tronco grosso. Casca rugosa. Refúgio improvável.Segurou Rose com mais firmeza. E correu.O puma veio no mesmo instante, deslizando rente ao chão, o corpo como uma flecha viva.Ela alcançou o tronco. Subiu um pé. Se impulsionou.O impacto veio.As garras acertaram sua perna, abrindo cortes quentes em sua panturrilha, feroz. O vestido se rasgou. O sangue escorreu em jorros. Ela gritou, mas não soltou a menina.Rose acordou chorando, o rosto colado ao peito da jovem. Melody prendeu o choro na garganta, agarrou o galho mais baixo com as duas mãos e forçou o corpo para cima.— Shhh... tá tudo bem, minha pequena... — sussurrou com a voz presa nos dentes, sem acreditar na própria mentira, os dedo escorregando.O puma
Duncan caminhava em silêncio, o corpo pesado sob o esforço duplo. Nos braços, Melody — ainda rígida, ainda em choque — apertava contra o peito a pequena Rose, aninhada como um filhote em sono profundo.A menina dormia com as mãos fechadas, mas de tempos em tempos agitava os dedinhos no ar, como se brincasse com alguma memória interna. Era o truque favorito dela. As mãozinhas. Sempre as mãozinhas.— Sim... aí estão — murmurou Duncan, quase por hábito, sem emoção na voz. — As mãozinhas da Rose.Melody não respondeu. Também não precisava. O aperto dos braços ao redor da criança já dizia tudo: o medo ainda tremia nos ossos.O caminho até a casa parecia mais longo do que antes. O ataque do leão da montanha já havia ficado para trás, mas o terror estava presente no cheiro do suor, no sangue seco na perna de Melody, no silêncio espesso demais para ser confortável.Quando alcançaram o alpendre da casa, o som das botas pesadas na madeira alertou Ida antes que ele dissesse qualquer coisa.A gov
A água na bacia já estava morna, quase fria, mas Melody ainda passava o pano devagar pelo rosto sujo com todo cuidado possível. Notou que Duncan já os havia limpado os diversos cortes que havia conseguindo enquanto subia na arvore, provavelmente quando ela ainda estava inconsciente, os ferimentos ardiam e pinicavam agora. Limpou com cuidado o rosto, contornando os lugares onde ele havia passado pomada, tendo cautela com os curativos deixados por ele. Os movimentos eram lentos, quase cerimoniais, como se quisesse apagar o que sentia — ou talvez fixar aquilo de vez na pele.Estava de volta ao próprio quarto. Ida havia insistido que ela deveria descansar.— E Rose? Como está? — A pergunta saiu de Melody antes mesmo que ela pensasse.Ida sorriu:— Aquela coisinha linda não sofreu um único arranhão e continua dormindo.Melody se permitiu suspirar aliviada. Pegou a bacia do chão e jogou a agua no terreiro, o tom rosa da agua a deixava enjoada, encheu novamente a bacia com agua do barril e
A água quente ainda escorria pelo fundo da pia quando Melody ouviu o chamado de Ida vindo do corredor. A voz não veio seca, como de costume — veio mais baixa, quase gentil.— Vem comigo um instante. Tenho algo pra te mostrar.Melody enxugou as mãos no avental e a seguiu sem fazer perguntas. No fim do corredor, Ida abriu a porta do antigo quarto de despejo. O ar ali dentro era mais frio, denso, com cheiro de madeira, pano guardado e lembrança velha demais pra ser varrida. O chão estalava levemente sob os pés, e as sombras se alongavam nos cantos como se não quisessem ser perturbadas.— O aniversário de Rose é amanhã — disse Ida, caminhando direto até um baú largo de couro envelhecido. — Um aninho. Nada de festa, mas Duncan achou que seria bom fazer um jantar. Só nós três. E... pediu que você escolhesse uns vestidos.Ela falava como quem menciona o clima, mas Melody sentiu o peso nas entrelinhas.— Vestidos? Por quê?— Porque você não vai sentar à mesa vestida como quem ainda tá fugindo