— Melody.
O som de seu nome atravessou a porta, enchendo o pequeno espaço do sótão como uma ameaça palpável. Um frio intenso subiu por sua espinha, espalhando-se pela nuca e eriçando os cabelos em sua pele úmida de suor frio. Seu estômago revirou violentamente, e ela precisou engolir com força para conter a náusea imediata. Melody fechou os olhos, apertando os lábios em uma linha fina e trêmula enquanto tentava controlar a respiração acelerada.
Medo. Um medo visceral, antigo e profundamente arraigado, espalhou-se rapidamente por suas veias como veneno, fazendo seus membros tremerem. Mas, abaixo dessa camada inicial de terror, ela reconheceu outra emoção igualmente intensa: raiva. Uma raiva impotente, sufocada por anos de silêncio, de humilhação e submissão forçada. As unhas curtas se cravaram nas palmas das mãos em punhos cerrados, e Melody sentiu um calor de revolta incendiar seu peito.
Lutando contra o impulso de se esconder em um canto escuro e simplesmente desaparecer, endireitou os ombros, mantendo o rosto abaixado enquanto se virava devagar para a porta. Encostou a testa na madeira áspera, o cheiro pungente de cigarrilha atravessando as frestas com o mesmo efeito perturbador da voz de Madame.
— Sim, Madame? — Sua voz saiu quase num sussurro, controlado à força, enquanto o coração disparava como um tambor acelerado.
— Venha cá, querida — Madame ordenou, a suavidade venenosa de seu tom fazendo Melody cerrar os dentes.
— Metade de um barril de cerveja caiu em cima de mim, Madame. Estou me trocando — respondeu, esforçando-se para manter o mínimo de firmeza em sua voz.
Ouviu as unhas longas arranharem lentamente a madeira, provocando um arrepio que lhe percorreu toda a coluna.
— Você tem se escondido de mim, pequena — continuou Madame, agora quase ronronando, cada palavra cuidadosamente escolhida para penetrar a armadura de Melody. — Acha mesmo que eu não percebo quando algo me é roubado?
Melody sentiu o estômago apertar novamente, as entranhas se contorcendo com a ameaça mal disfarçada nas palavras doces da mulher.
— Eu não roubei nada, Madame. — Desta vez, conseguiu firmeza suficiente para soar mais convicta, embora cada músculo estivesse tenso como uma corda prestes a se romper.
A mulher soltou uma risada baixa, quase divertida, um som que se infiltrou na mente de Melody como ácido.
— Mas você roubou sim, minha querida. Você tem roubado algo muito precioso... tempo. O tempo que deveria estar sendo investido em algo muito mais rentável do que lavar chão e despejar baldes de água suja.
Melody sentiu os olhos arderem de raiva impotente, cada palavra pronunciada por Madame amplificando a sensação de claustrofobia emocional em que vivia.
— Eu cumpro todas as minhas obrigações — retrucou, tentando conter a vibração raivosa em sua voz. — Faço tudo que é exigido. O que mais quer de mim?
Houve um breve silêncio do outro lado da porta, como se Madame estivesse apreciando o efeito de suas palavras antes de continuar com a calma de quem está acostumada a vencer.
— Seu corpo não é mais o de uma menina, Melody. Não importa o quanto tente se esconder sob lama e trapos, os homens notaram você. Eu notei você. Não está cansada dessa brincadeira infantil?
Cada palavra parecia apertar mais e mais as correntes invisíveis que prendiam Melody àquele lugar. A jovem respirou profundamente, tentando controlar a onda de pânico que ameaçava tomar conta de sua mente.
— Eu não sou como as outras — insistiu ela, desafiando a voz suave da mulher com uma coragem que não sabia possuir.
Madame suspirou teatralmente, a voz entediada, mas ainda perigosamente doce.
— Ah, minha querida... Todas acham que são especiais, diferentes. Cada menina desta casa veio com uma história triste, acreditando que seria a exceção. No fim, todas pertencem ao mesmo destino. Você não é exceção, Melody. Apenas aceite seu lugar.
A provocação sutil fez com que o coração de Melody acelerasse dolorosamente, a raiva e o desespero em seu peito se misturando numa mistura volátil. Mas não podia ceder, não agora.
— Eu sei qual é o meu lugar — sussurrou com uma determinação fria, mesmo que frágil. — E não é o que você deseja.
Madame permaneceu em silêncio por alguns instantes, como se refletindo sobre aquela rebeldia inesperada. Então, a voz voltou, ainda mais suave e perigosa:
— Você sempre teve um espírito difícil, Melody. Mas eu sou paciente. Sei que, cedo ou tarde, tudo se encaixa no seu devido lugar... basta assinar o contrato.
A ameaça contida na voz macia da mulher finalmente atingiu seu ápice, e Melody percebeu que não havia para onde escapar. O contrato era uma prisão, e Madame sabia disso muito bem.
Ela limpou a garganta, tentando desesperadamente parecer calma enquanto lutava contra o peso esmagador daquelas palavras:
— Eu gostaria de pensar um pouco mais sobre isso, se não se importa, Madame.
Houve um silêncio perigoso, uma pausa prolongada antes que a voz de Madame retornasse, falsamente compreensiva:
— Claro, querida. É um passo importante, eu sei... fique à vontade para pensar o quanto for necessário.
Melody quase soltou um suspiro de alívio, mas a sensação foi cortada abruptamente pelo som claro e inequívoco do clique metálico da fechadura sendo girada.
Seu coração quase parou no peito quando a compreensão a atingiu: estava trancada. Madame havia ganhado mais uma vez.
A luz do fim de tarde filtrava-se pelas frestas do sótão, tingindo de dourado os montes de poeira acumulada e os objetos esquecidos. Melody estava sentada sobre o baú, com o vestido ensopado colado à pele, os joelhos juntos ao peito, os braços envolvendo as pernas como se o gesto pudesse impedir que desabasse.O silêncio ali dentro era tenso, denso, como se a casa inteira esperasse o momento exato para esmagá-la. Seu estômago roncava, vazio desde cedo, e o cheiro distante de comida vindo do salão fazia a boca salivar. Madame sabia. Era esse o plano. Domar pela fome. Pelo cansaço. Pelo isolamento. Mas Melody não podia deixar isso acontecer. Não depois de tantos anos escondida, não depois de chegar tão perto.Levantou-se com energia renovada e quase com raiva, tirou o vestido molhado que largou sobre o chão. Escolheu outro, o menos rasgado dos dois que ainda restavam, e o vestiu com movimentos lentos. O calor insuportável do dia havia se convertido no frescor do início da noite. Seus de
O susto foi nublado pela dor.Melody piscou devagar, o corpo inteiro pulsando como um machucado exposto. Tentou se mover, mas o braço gritou alto, e ela parou. Os olhos demoraram a focar, mas logo voltaram para o homem parado na entrada da carroça.Jesus. Ele era enorme.A silhueta dele tomava conta do espaço. Largo de ombros, alto, com a mão segurando a aba da lona erguida. A luz do entardecer dourava as laterais do rosto rígido, os olhos verdes e atentos. Não parecia assustado. Parecia calculando.Melody sabia reconhecer o olhar de um homem medindo risco.Ela também sabia que era o risco.Estava desesperada demais para recusar ajuda, mas o medo dentro dela dava outro salto — um medo mais profundo, que não vinha do instinto, mas da memória. E se ele a devolvesse? Se ele pertencesse à Casa? Se fosse um dos deles?O braço latejava como fogo. Ela queria implorar, mas o corpo tremia de frio e esforço. Os lábios ardiam, rachados e úmidos de sangue. Ainda assim, ela os mordeu, tentando reu
A carroça avançava pela estrada de terra batida, o som dos cascos e das rodas marcando um ritmo constante na noite que chegava. O céu, já tingido de azul escuro, deixava os últimos fios de luz escaparem pelas copas das árvores. Era um silêncio de fim de mundo, só quebrado pelos estalos do couro e o ranger da madeira.A fazenda surgiu no horizonte.A casa grande de madeira mantinha sua dignidade cansada. A varanda ampla era sustentada por colunas grossas, e os degraus largos da entrada já conheciam muitos anos de pés e silêncios. À direita, o estábulo recortava-se contra o céu, e uma cerca baixa contornava o terreno com humildade.No jardim à frente da casa, resistia o cuidado antigo de Esperanza. As roseiras estavam secas. A lavanda, quase morta. Mas as margaridas — teimosas — ainda floresciam, como se recusassem a aceitar a ausência da mão que as podava.Duncan puxou as rédeas e fez Caleb parar diante da varanda. O cavalo bufou com gratidão.A poeira, erguida no último trecho da estr
Duncan passou a escova mais uma vez pelo flanco do animal, o braço trabalhando num ritmo mecânico, quase ritual. O cheiro de feno úmido, couro e suor ajudava a empurrar o mundo pra longe.Mas o grito que a jovem soltou quando Ida recolocou o ombro no lugar ainda o perseguia.Agudo. Cortante. Feminino.Ele odiava gritos de dor femininos.Mais do que os sons, odiava o que eles despertavam.Aquele som trazia lembranças. Não nítidas, mas claras o suficiente. Vozes abafadas por madeira grossa.Uma mão segurando Rose pela primeira vez, enquanto a mulher gritava do outro lado da parede.O tempo passou, mas os sons ficavam.Alguns se instalam no peito e cavam. Silenciosos. Pacientes.Forçou a escova com mais brusquidão por um instante, depois parou. Respirou fundo.O animal virou a cabeça, como se dissesse: chega.Duncan assentiu para o cavalo em concordância, o velho Caleb não merecia ser maltratado porque ele estava inquieto. Guardou a escova, soltou a trava da baia com um estalo e deu dois
O cheiro de lavanda foi o primeiro a alcançar Melody.Depois veio o toque dos lençóis limpos sob a pele, o peso gentil de uma colcha bem dobrada, a maciez inesperada do colchão sob o corpo dolorido.Era estranho. Quase íntimo.O ambiente tinha aquele tipo de silêncio que não amedrontava. Um silêncio de lugar vivido, organizado. A luz do sol filtrava pelas cortinas claras, cortando o quarto em faixas de calor e sombra. No ar, havia um fundo de cera de madeira — e mais distante, o aroma acolhedor e forte de café passado.Ela piscou devagar.Os olhos ainda pesavam.O ombro latejava com dor surda e constante, irradiando para o lado do pescoço e escorrendo pelo braço engessado.O teto era de madeira clara, bem conservada. Um lampião apagado estava sobre um dos armarios. À esquerda, uma cômoda com espelho em moldura gasta. Os móveis brilhavam com uma camada recente de cera, e o cheiro — aquele cheiro — era reconfortante demais.Ela tentou se erguer. O corpo inteiro protestou.Um gemido esca
— Eu gostaria de tentar, senhora Jenkis.Ida assentiu com um gesto curto, como quem confirma algo já decidido.— Então coma. Vai te fazer bem.Melody pegou a colher com a mão boa, ainda trêmula. O mingau estava morno, com gosto suave de leite fresco, uma pitada de açúcar mascavo e talvez um toque de canela. Era simples. Era bom. Era gentil, de um jeito que ela não sabia mais receber.Ela havia perdido a noção de civilidade, percebeu quase chocada consigo mesma, os anos na Casa do Sol Nascente lhe pareceram ainda mais injustos.A cada colherada, o corpo parecia relaxar. O calor se espalhava por dentro como um cobertor. As costas afundaram mais no colchão. A tensão que havia se instalado na mandíbula se dissolveu devagar. Quando a tigela estava pela metade, os olhos começaram a pesar. A mão fraquejou. A última colherada ficou esquecida dentro da tigela.Ida recolheu a bandeja com cuidado, observando a garota que já adormecia.O rosto dela, agora suavizado pelo sono, parecia anos mais jo
O teto era sempre o mesmo, mas a forma como ela o via mudava a cada dia.Melody soltou um suspiro longo, daqueles que pareciam sair direto da alma. Estava cansada de ficar deitada. O corpo ainda doía, sim — especialmente o ombro enfaixado —, mas o tédio era pior. A sensação de estar viva sem agir lhe causava uma inquietação ácida e urgente.Virou o rosto. A trouxa com seus pertences permanecia onde a haviam colocado: sobre a cadeira, como uma lembrança compacta de quem ela tinha sido. Pelo que podia ver, ninguém havia mexido em suas coisas... até porque, o que haveria ali pra ver?Aquilo não era uma mala. Era um inventário de sobrevivência.O quarto era pequeno, mas arejado. A luz entrava filtrada por uma cortina fina, e o cheiro da casa era diferente — madeira antiga, lenha, e algo recém-assado. Aquele cheiro aquecia algo dentro dela.Não era o cheiro de perfume barato e álcool. Era o cheiro de casa. De família. De segurança.Ela não poderia jamais se deixar enganar por esses cheiros
A cozinha tinha cheiro de açúcar e lenha.Melody permaneceu parada perto da porta, sentindo o calor vindo do fogão e tentando decidir para onde ir. Duncan ainda estava à mesa, mastigando as últimas garfadas de torta com a tranquilidade impassível de quem já tinha visto o pior da vida — e sabia reconhecer quando as coisas estavam quietas demais.Ela hesitou, sem saber se deveria se anunciar, se afastar ou fingir que ele não existia.Mas Duncan terminou primeiro.Enfiou o último pedaço na boca, mastigou devagar. Pegou o chapéu pendurado no encosto da cadeira, colocou na cabeça com um gesto automático e, ao passar por ela, murmurou:— Senhorita.Foi só isso. E saiu.Ida surgiu de repente com um pano de prato nos ombros e a cara de quem não pretendia fazer perguntas.— Pegue a cesta. Leve a menina e vá buscar os ovos.A instrução foi seca, objetiva. Melody acenou com a cabeça. A cesta estava encostada ao batente. Quando se abaixou para pegá-la, ouviu um som baixo e ritmado vindo do chão d