O cheiro de lavanda foi o primeiro a alcançar Melody.Depois veio o toque dos lençóis limpos sob a pele, o peso gentil de uma colcha bem dobrada, a maciez inesperada do colchão sob o corpo dolorido.Era estranho. Quase íntimo.O ambiente tinha aquele tipo de silêncio que não amedrontava. Um silêncio de lugar vivido, organizado. A luz do sol filtrava pelas cortinas claras, cortando o quarto em faixas de calor e sombra. No ar, havia um fundo de cera de madeira — e mais distante, o aroma acolhedor e forte de café passado.Ela piscou devagar.Os olhos ainda pesavam.O ombro latejava com dor surda e constante, irradiando para o lado do pescoço e escorrendo pelo braço engessado.O teto era de madeira clara, bem conservada. Um lampião apagado estava sobre um dos armarios. À esquerda, uma cômoda com espelho em moldura gasta. Os móveis brilhavam com uma camada recente de cera, e o cheiro — aquele cheiro — era reconfortante demais.Ela tentou se erguer. O corpo inteiro protestou.Um gemido esca
— Eu gostaria de tentar, senhora Jenkis.Ida assentiu com um gesto curto, como quem confirma algo já decidido.— Então coma. Vai te fazer bem.Melody pegou a colher com a mão boa, ainda trêmula. O mingau estava morno, com gosto suave de leite fresco, uma pitada de açúcar mascavo e talvez um toque de canela. Era simples. Era bom. Era gentil, de um jeito que ela não sabia mais receber.Ela havia perdido a noção de civilidade, percebeu quase chocada consigo mesma, os anos na Casa do Sol Nascente lhe pareceram ainda mais injustos.A cada colherada, o corpo parecia relaxar. O calor se espalhava por dentro como um cobertor. As costas afundaram mais no colchão. A tensão que havia se instalado na mandíbula se dissolveu devagar. Quando a tigela estava pela metade, os olhos começaram a pesar. A mão fraquejou. A última colherada ficou esquecida dentro da tigela.Ida recolheu a bandeja com cuidado, observando a garota que já adormecia.O rosto dela, agora suavizado pelo sono, parecia anos mais jo
O teto era sempre o mesmo, mas a forma como ela o via mudava a cada dia.Melody soltou um suspiro longo, daqueles que pareciam sair direto da alma. Estava cansada de ficar deitada. O corpo ainda doía, sim — especialmente o ombro enfaixado —, mas o tédio era pior. A sensação de estar viva sem agir lhe causava uma inquietação ácida e urgente.Virou o rosto. A trouxa com seus pertences permanecia onde a haviam colocado: sobre a cadeira, como uma lembrança compacta de quem ela tinha sido. Pelo que podia ver, ninguém havia mexido em suas coisas... até porque, o que haveria ali pra ver?Aquilo não era uma mala. Era um inventário de sobrevivência.O quarto era pequeno, mas arejado. A luz entrava filtrada por uma cortina fina, e o cheiro da casa era diferente — madeira antiga, lenha, e algo recém-assado. Aquele cheiro aquecia algo dentro dela.Não era o cheiro de perfume barato e álcool. Era o cheiro de casa. De família. De segurança.Ela não poderia jamais se deixar enganar por esses cheiros
A cozinha tinha cheiro de açúcar e lenha.Melody permaneceu parada perto da porta, sentindo o calor vindo do fogão e tentando decidir para onde ir. Duncan ainda estava à mesa, mastigando as últimas garfadas de torta com a tranquilidade impassível de quem já tinha visto o pior da vida — e sabia reconhecer quando as coisas estavam quietas demais.Ela hesitou, sem saber se deveria se anunciar, se afastar ou fingir que ele não existia.Mas Duncan terminou primeiro.Enfiou o último pedaço na boca, mastigou devagar. Pegou o chapéu pendurado no encosto da cadeira, colocou na cabeça com um gesto automático e, ao passar por ela, murmurou:— Senhorita.Foi só isso. E saiu.Ida surgiu de repente com um pano de prato nos ombros e a cara de quem não pretendia fazer perguntas.— Pegue a cesta. Leve a menina e vá buscar os ovos.A instrução foi seca, objetiva. Melody acenou com a cabeça. A cesta estava encostada ao batente. Quando se abaixou para pegá-la, ouviu um som baixo e ritmado vindo do chão d
Havia um quartinho nos fundos que Melody logo descobriu se tratar de um depósito. Era um cômodo poeirento.Não por negligência, mas por pouco uso. Era ali que se guardavam as coisas que não serviam mais, mas que também não se jogavam fora. Ferramentas, tecidos, botas gastas. Memória compactada em caixas.Melody foi enviada ali por Ida, com uma instrução prática:— Veja o que ainda serve... vou buscar uma vassoura.Obedeceu.Não porque gostasse de poeira, mas porque a tarefa dava ao corpo algo pra fazer — e, à cabeça, algum silêncio.Estava se conectando rápido demais com as pessoas ao redor dela, e isso realmente tinha que parar.Sentou-se no chão com as pernas cruzadas sobre um tapete enrolado. Começou a abrir os pacotes com cuidado.A primeira pilha era de panos de prato — alguns novos, outros gastos até a transparência.Alguns tinham bordados: flores simples, iniciais, um ou outro com manchas que não sairiam mais.Feitos à mão por alguém que bordava até o que seria usado para secar
O dia começara como tantos outros. Uma rotina à qual a jovem já havia se acostumado. Rose espalhava migalhas no chão da cozinha, como se alimentasse galinhas que só existiam na cabeça dela. Melody apenas sorria e varria em silêncio enquanto Ida socava a massa com a força de quem tenta resolver um problema antigo no braço.Toda essa calmaria estava deixando os nervos dela em frangalhosMelody estava habituada à tensão, sobrevivera de susto em susto por tempo demais. Aquele sossego quase sonolento lhe dava calafrios.O almoço veio mais cedo que o normal. Quando Duncan entrou, os cabelos estavam úmidos novamente. Agora ela sabia o motivo dos fios escuros estarem sempre molhados na hora da refeição do meio dia. Ele se lavava na bomba manual do poço antes de comer, as mãos molhadas deixando os cabelos úmidos conforme o homem refrescava a nuca a fim de espantar o calor.Ela se perdeu olhando para ele mais uma vez, o diacho do homem era belo demais para o próprio bem.Completamente alheio ao
Confusa, deslocada, envergonhada, Melody sentiu uma mão pousar em seu ombro. O calor do toque atravessou a couraça de vergonha que a envolvia como uma mortalha. A voz suave de Ida veio como um bálsamo inesperado.— Venha, meu bem. Está tudo bem… de verdade.Melody não respondeu. Apenas largou as faixas no chão, como quem larga os escombros de uma guerra silenciosa, e, anestesiada, se levantou. Cada movimento parecia acontecer sob o peso da água. Um cansaço antigo, enraizado em suas costelas, em seus pulsos, em suas têmporas, não dava trégua.— Eu vou lavar a louça — murmurou, não porque fosse necessário, mas porque a rotina era seu último escudo. Se ficasse parada, talvez desabasse, abotoou o vestido com gestos mecânicos e procurou o rumo da tina de louça sem realmente vê-la.O resto do dia passou como um borrão para ela. Movia-se pela casa como uma marionete em silêncio, obedecendo cada tarefa que Ada lhe dava. Jogou fora as faixas — e, com elas, a ilusão de que poderia viver ali imp
A casa estava em silêncio.O tipo de silêncio que não se impunha — apenas existia. Como se a madeira, as paredes, o vento lá fora soubessem que aquela noite era delicada demais para sons bruscos. Tudo parecia caminhar mais devagar. Até o tique-taque do relógio na parede da cozinha soava menos impaciente.Melody demorou mais do que o normal para subir as escadas.O corpo ainda doía em pontos específicos, uma lembrança sutil de tensão acumulada. Mas era um cansaço diferente — não o cansaço do medo, e sim o de quem, pela primeira vez em muito tempo, havia passado o dia inteiro tentando simplesmente… existir.Ela se despiu com cuidado. Não usava mais as faixas. Jogara fora, como se jogar um pedaço de armadura significasse também deixar cair parte da guerra. Mas ainda levava os ombros curvados, como se o corpo não soubesse como ocupar espaço sem medo.A água na bacia estava morna. Melody lavou o rosto, a nuca, a parte de trás do pescoço. A toalha pendurada cheirava a sabão simples e sol, o