Legado Sombrio I Criaturas Noturnas
Legado Sombrio I Criaturas Noturnas
Por: denisecuerva
| Prólogo |

Inverness, Escócia - 1852

Uma terrível tempestade caía desde o fim da tarde. Nuvens densas, da cor do carvão, cobriam o céu na hora mais escura da noite, envolvendo-o como uma mortalha. O brilho das estrelas e a iluminação precária do luar foram apagados. O vento forte uivava em fúria, rumo ao norte, enquanto relâmpagos intensos retumbavam, criando uma dança espetacular de clarões brancos. Lindos de se ver, mas completamente letais.

Os habitantes de um vilarejo escondido nas montanhas eram reféns não apenas da fúria devastadora da mãe natureza, mas também de um terror inominável que os assombrava como uma maldição.

Pés descalços desciam uma escadaria pedregosa, esculpida secretamente nas profundezas de uma das montanhas de Krane. Cada degrau, interminável, levava a um refúgio que, apesar de distante, era o mais seguro. Descer novamente aquela escadaria profunda era como voltar ao passado na esperança de alterar o futuro.

― Aguentem... um pouco... mais... ― disse uma voz entrecortada, de uma mulher arfante. A saia branca de seu vestido de seda se erguia enquanto ela corria, desesperada contra o tempo e os obstáculos da noite, determinada a dar ao seu povo uma segunda chance.

Ela não falharia outra vez.

― Concentre-se, ― disse uma das criadas, ofegante, com a respiração entrecortada. Ela era franzina, de pequena estatura, com o coque grisalho balançando desajeitadamente na cabeça.

Marin estava visivelmente abalada com os acontecimentos daquela noite. Seus pensamentos oscilavam entre desespero, luto e tristeza. A qualquer momento, seu corpo, enfraquecido pela idade, cederia ao cansaço, mas ela não se entregaria. Continuaria lutando para ajudar sua menina, cumprindo o papel que lhe fora designado.

Sempre soubera do fardo que a pequena carregava nos ombros, embora nunca imaginasse que tal responsabilidade chegaria de forma tão rápida e cruel. Os gritos de angústia de seu povo foram silenciados pela distância, mas ecoavam em sua mente. Desesperados, sofridos, como almas sentenciadas à condenação eterna... Marin lamentou, sentindo um aperto profundo em seu peito, como uma espada de dois gumes. As vidas de todos jamais seriam as mesmas após aquela trágica noite, e ela sabia disso melhor do que ninguém.

Os passos de Evangeline foram interrompidos por uma pesada porta à sua frente, imensa, com o dobro de seu tamanho, bloqueando a passagem como uma barreira impenetrável. Esculpida na rocha, a porta guardava em seu interior o bem mais precioso dos Grievers e sua única chance de sobrevivência. Um suspiro de alívio escapou de sua garganta seca quando uma centelha de esperança se acendeu em seu interior.

― Con... ― tentou falar, mas sua voz se perdeu em outro suspiro áspero e profundo.

Com dificuldade, Evangeline avançou, apoiando-se na parede escorregadia. O alívio que sentiu também trouxe consigo uma onda de força residual que a impediu de cair. Finalmente, haviam chegado ao coração pulsante de seu povo. Ela trocou um olhar com Marin, carregado de significado, como se por um momento não soubesse exatamente o que fazer ou como agir. A criada meneou a cabeça, firme e decidida. Nada em seu semblante indicava dúvida; ao contrário das aulas de conjurações, Evangeline não poderia se esquivar dessa vez. Não havia espaço para fugir ou se esconder no armazém. Ela teria que colocar em prática tudo o que fora ensinada.

Evangeline assentiu, respirando fundo, reunindo as últimas forças para desobstruir a última passagem.

Era tudo ou nada. Vida ou morte.

"Vamos... vamos..." Repetia mentalmente, com o peito subindo e descendo, incapaz de sustentar o ar nos pulmões por muito tempo enquanto conjurava seu poder para desfazer o selo de proteção. Ondas magnéticas tocavam suavemente seus dedos, que formigavam sob a epiderme antes de desaparecerem. Não foi o suficiente. Apesar do esforço, a imensa porta não se moveu.

Exaurida, Evangeline se apoiou na parede, sem coragem de retribuir o olhar das criadas, que refletia a frustração de sua falha. Havia dor nos olhos delas, tanta dor...

Ela se curvou para frente, apoiando as mãos nos joelhos que latejavam sob o peso das camadas de pano do vestido molhado. Seus longos cabelos negros ocultavam seu rosto sofrido, enquanto observava os pingos de água caírem das pontas dos fios e se espalharem no chão em milhares de partículas. Logo, lágrimas quentes brotaram em seus olhos, e o aperto em seu peito se intensificou diante da visão de seu povo espalhado pelo solo, como animais feridos no abate.

Como sobreviver à fúria daquele terrível monstro? Como garantir que seu clã não fosse dizimado naquela noite? Como poderia pôr fim a aquele tormento se não conseguia sequer abrir uma porta?

Desde que nascera, foi incumbida de carregar os dons primordiais dos Grievers. Era a herdeira sucessora de seus antepassados. O peso de tal responsabilidade sempre fora a razão de seu ódio por ser quem era, de sua inveja por seu povo, até mesmo pelas criadas.

"Você deve guardar-se como uma pérola dentro de uma ostra", Asher, seu querido pai, costumava lhe dizer. Mas, naquele momento, Evangeline não sabia mais quem era. A jovem sacerdotisa se via perdida entre os cantos escuros do vilarejo, sua vida dividida entre as obrigações de sua função e os tumultuados sentimentos próprios da sua idade. Sentia como se fosse uma prisioneira de suas próprias emoções, uma batalha constante entre a liberdade e o peso das expectativas, que a forçavam a agir contra os princípios que seu pai tanto prezava. As práticas que ela tomava, agora, eram vergonhosas, manchando o nome da sua família e a honra do seu povo. A culpa que carregava, pesada e implacável, corroía cada parte de sua alma.

Ela se ergueu, com determinação renovada, secando as lágrimas que silenciosamente escorriam pelo seu rosto. O ódio, a raiva, e a dor transformaram-se em combustível para sua resistência.

O monstro não venceria.

APERIO. ― Evangeline murmurou, a cólera fazendo sua voz sair num grunhido rouco.

O selo de proteção se materializou diante de seus olhos: uma esfera brilhante, envolta em runas pulsantes, girava no sentido anti-horário, irradiando uma luz suave, antes de desaparecer num estalo. A porta, imensa e opaca, cedeu com um estrondo ensurdecedor, e uma fenda escura se abriu diante dela.

Com um último esforço, Evangeline empurrou a porta, seus nervos prestes a se despedaçar sob o peso da pressão.

― Procurem pelo altar! ― ordenou, a voz falha, mas firme.

Marin, sem hesitar, seguiu sua ordem. Cada segundo que passava diminuía suas chances de sucesso, e Evangeline sentia que o peso do destino caía sobre seus ombros. A luta estava longe de acabar.

Leonora apareceu à frente, sua lamparina tremendo em mãos trêmulas. A jovem, normalmente cheia de vitalidade, agora estava irreconhecível. Seu vestido amarelo estava manchado de sangue, a barra arrastando na lama, e seu rosto exibia uma expressão de pânico delirante. Balbuciando palavras desconexas, ela se arrastava, até encontrar a mão firme de Marin, sua mentora de ervas medicinais.

Agora, com suas servas em segurança, Evangeline se permitiu um suspiro profundo. Cada movimento de seu corpo exausto enfraquecia ainda mais seus poderes, e o medo de fechar os olhos e nunca mais abri-los ameaçava dominá-la. Mas, em meio à dor, o desejo de descansar parecia tentador. A noite se arrastava como uma eternidade.

― EVANGELINE… ― A voz grave e ecoante cortou o silêncio, arrastando-se pelo corredor, atravessando as paredes como um espectro. Era a voz da morte, como se ela mesma tivesse encontrado seu caminho até ali, em meio ao pensamento desesperado de Evangeline.

― VAMOS, MENINA! ― Marin a agarrou pelo braço, puxando-a com a urgência de quem sabe que o tempo está se esgotando. O gesto era o mesmo que ela usara tantas vezes antes, quando Evangeline ainda era criança e precisava ser levada a algum lugar, alheia às suas responsabilidades. ― Não temos mais tempo. ―

Com a última energia restante, Evangeline fechou a porta atrás de si, sabendo que o pior estava por vir. Com a ajuda de Marin e Leonora, bloqueou a passagem com um pesado pedaço de madeira, preso por bases de ferro. Mesmo assim, sabia que não seria suficiente. O monstro que se aproximava não seria deterido tão facilmente.

Refazer o selo de proteção exigiria mais poder do que ela tinha naquele momento. Não era isso que importava agora. Era preciso cumprir seu dever.

Com a lamparina de Leonora iluminando o ambiente, Evangeline permitiu-se uma análise cuidadosa do lugar. O recinto era vasto e circular, com o ar pesado e abafado, como se o próprio espaço estivesse à deriva no tempo. As paredes rochosas estavam cobertas por musgos, e enormes pilares de pedra sustentavam um teto engolido pela escuridão. Candelabros pendiam das estruturas, com velas derretidas até a metade, agora inúteis. O lugar tinha uma aura de desolação. Se pudesse nomeá-lo, chamaria de "sombrio", não apenas pela aparência, mas pela sensação que emanava de cada canto.

Evangeline não hesitou.

Incendium ― pronunciou com firmeza, e as velas, quase imperceptíveis à luz da lamparina, acenderam-se uma a uma.

Agora com uma fraca luz, ela se aproximou do centro da sala. Seus olhos se moviam rapidamente, buscando algo que deveria estar ali. O metal, como um ímã, chamou sua atenção, e logo avistou o altar. Um altar solitário, destruído e negligenciado, que um dia havia sido o símbolo da sua vitória. Feito de madeira apodrecida, o palanque de suporte parecia prestes a desabar, com cordas grosseiras prestes a se romper. Um buraco no segundo degrau, feito por uma goteira insistente, sugeria que o tempo não havia sido gentil com aquele espaço. O altar, que antes representava a força e a ressurreição da Sancta, agora parecia um eco de uma época que já não voltaria.

Subir naquele altar parecia uma ideia insana. O abandono e a decadência estavam evidentes em cada parte daquele objeto de fé. Nada mais parecia suportar o peso de sua presença ali, nem mesmo a madeira que um dia sustentara o peso de sua liderança. Não havia mais força naquelas estruturas; o mesmo poderia ser dito de seu povo, suas crenças, e talvez até de si mesma.

O púlpito de madeira polida era a única parte preservada em todo aquele espaço deteriorado. Duas runas entalhadas nas laterais reluziam com uma energia sutil, quase reverente: proteção e conservação. Em cima dele, um cálice de ouro adornado com diamantes vermelhos e fitas de prata repousava ao lado do coração dos Grievers. Evangeline, agora com a ajuda vacilante da luz das velas, avistou o objeto sagrado. Era ele. O Grimório, o mesmo que seu pai tanto descrevia em suas histórias, símbolo da essência de seu clã e da fonte do poder que carregava. Ela o havia visto uma única vez, durante seu ritual de sucessão, quando completou dezessete anos. Agora, diante dele, sabia que seria a última vez.

Sua melancolia foi abruptamente interrompida por um estrondo ensurdecedor, e a porta, que até então parecia intransponível, tremeu sob o impacto de uma força imensa.

SENHORA, O DEMÔNIO CHEGOU! ― Leonora gritou, os olhos arregalados de pavor. Seu rosto, normalmente jovial, estava deformado pelo terror. Amparada por Marin, a jovem se encolheu em seus braços como um animal indefeso.

Evangeline observou as duas com um olhar resignado. As chances de salvação haviam se esgotado. Marin, com um gesto suave, assentiu e abraçou Leonora, protegendo-a o melhor que podia, buscando refúgio nas sombras do canto.

Com uma determinação renovada, Evangeline subiu ao altar e posicionou-se de frente para o púlpito. Ela retirou a adaga de seu pai, que sempre carregara em seu corselete, e alisou a lâmina prateada, sentindo o peso da responsabilidade em suas mãos.

Agora, mais do que nunca, ela sabia que estava pronta para se redimir.

Ela estendeu a palma da mão esquerda e, com um movimento deliberado, cortou a linha do meio. A dor cortante ecoou por seu corpo, mas ela a ignorou enquanto o sangue jorrava para dentro do cálice dourado. Suas palavras, quase sussurradas, se perderam no estrondo crescente que agora preenchia o ar, como o som distante de mil cavalos troteando, cada batida uma ameaça a mais.

De repente, seus olhos se reviraram para trás e, com isso, uma onda de energia tão forte quanto fogo percorreu sua espinha, fazendo as velas bruxuleantes ao redor do altar se acenderem com uma intensidade ainda maior. A energia parecia ter vida própria, vibrando por seu corpo até se concentrar em sua mão cortada. Evangeline, com um grito abafado de esforço, fechou o punho sobre o Grimório. As páginas folhearam com violência, como se algo as empurrasse.

O sangue fluía de sua mão, se espalhando pelas páginas. Não foi necessário tinteiro nem pena. Seu próprio poder, visceral e incontrolável, se condensava ali, nas páginas, formando runas e símbolos que se selavam em um único ponto, como um feitiço que só ela poderia conjurar. No momento em que as formas começaram a se solidificar, um estrondo ensurdecedor preencheu o ar, e a porta finalmente cedeu.

O impacto foi retumbante, fazendo o chão tremer. Ele entrou. Não com a pressa de uma besta furiosa, mas com a graça de alguém que sabia o poder que tinha. O demônio se apresentou como um príncipe, belo em sua aparência, mas com olhos tão negros quanto o abismo. Ele a encontrou imediatamente. Um brilho cruel acentuou-se em seus olhos e uma sensação de escuridão se espalhou pelo ambiente, como se a própria luz recuasse diante dele.

― Querida Evangeline... O homem aproximou-se com elegância e curvou-se em reverência, sua voz aveludada sem um pingo de maldade à vista. Porém, cada palavra que ele proferia parecia uma mentira, uma máscara perfeita que escondia a monstruosidade que habitava dentro dele. Evangeline despertou de seu transe e encarou finalmente o rosto de seu pior inimigo. ― Finalmente te encontrei.

― Não o temo mais, demônio da noite. A resposta dela foi firme, sua voz grave com autoridade. Levantou o queixo, encarando-o sem medo. ― Pode matar-me se quiser, mas jamais terá meu poder.

Ele parou por um momento, como se ponderasse as palavras dela com um toque de prazer nas expressões. ― Acha mesmo que o que eu quero fazer é matar você? Logo você? Ele disse com uma suavidade que parecia até doce demais para alguém como ele. ― Existe outra forma de morrer em vida, e acredito que já a presenteei nesta noite.

As palavras dele chegaram como lâminas venenosas, penetrando a alma de Evangeline. Cada sílaba parecia cortar ainda mais fundo do que qualquer espada.

― Você vai pagar pelo que fez ao meu povo e a todos que cruzaram o seu caminho. Sofrendo em suas terríveis mãos. Ela disparou com raiva, abaixando a mão cortada ao lado do corpo, a dor e o ódio queimando em suas veias. ― Seu fim está tão próximo quanto o meu.

O sorriso do demônio ficou mais largo, uma expressão de diversão se espalhando por seu rosto.

― Então foi isso o que acabou de fazer? Prever o meu fim? ― Ele perguntou, sua voz carregada de zombaria. ― Não há ninguém capaz de me matar. Ele afirmou com uma confiança.

― Não agora, mas logo virá. Evangeline rebateu, sua voz cheia de convicção, como se soubesse que o destino dele já estava selado.

A troca silenciosa de olhares entre Evangeline e o demônio foi carregada de tensão, mas, ao mesmo tempo, de uma astúcia disfarçada. Ele, imponente e imperturbável, fixou seus olhos negros nela, buscando sinais de fraqueza, de desespero. Seus olhos, profundos e insondáveis, eram um abismo que queria puxá-la para dentro. Mas Evangeline, com o que restava de sua força, não desviou o olhar. Ao contrário, ela o encarou com uma calma desconcertante, como se o temesse menos a cada segundo que passava.

Foi um jogo silencioso, uma dança mental que se desenrolava sem palavras, mas com intenções claras. Ele queria se alimentar de seu medo, de sua dor, e ela estava pronta para dar-lhe o que ele não esperava: confiança.

Enquanto o demônio parecia absorver cada nuance de seu semblante, Evangeline usava essa troca de olhares para enganá-lo, esconder suas verdadeiras intenções. Seus olhos, agora focados e resolutos, transmitiam a ilusão de uma fragilidade prestes a ceder, mas, por dentro, ela estava arquitetando sua jogada final. A intensidade de seu olhar não dizia medo; dizia apenas paciência.

Ela sentia o poder do Grimório pulsando dentro dela, pronto para ser transferido, e sabia que esse era o momento exato para completar o ritual. O demônio, com sua arrogância de sempre, acreditava que ele tinha o controle da situação. Mas enquanto ele se perdia na leitura do que via, cada palavra, cada pensamento que ele acreditava que podia manipular, estava sendo desviado e absorvido pelo poder ancestral que ela agora dominava, selando as páginas sagradas. 

Os olhos dele brilhavam com a promessa de vitória, mas por trás daquela fachada, o que ele não via era a energia vital de Evangeline fluir silenciosamente para o Grimório. Evangeline, com um gesto imperceptível, concluiu a transferência de seu poder para as páginas do livro. Ela havia enganado o demônio com a mais poderosa das armas: o silêncio. O que ele não sabia era que o olhar dela não era de submissão, mas de total controle. Um simples gesto disfarçado, um leve movimento, e o ritual estava completo. Ela sentiu seu poder desaparecer e uma estranha sensação de peso nos ombros finalmente lhe deixar, lhe trazendo alívio.

Um sorriso sinuoso curvou os lábios de Evangeline, sua expressão, até então tensa, transformando-se em um reflexo triunfante.

Antes que ela pudesse dar outro passo, o vulto de seu inimigo a envolveu. Em um instante, seus pés se afastaram do chão, e ela se viu pressionada contra a parede gélida e ser suspensa pelo pescoço em um aperto implacável. O ar lhe faltava; cada centelha de oxigênio desaparecia à medida que sua traquéia era esmagada pela força fria e incansável de Maundrell.

— O que fez, Evangeline? — Ele ordenou, sua voz grave e desprovida de qualquer emoção, como se estivesse fazendo uma simples pergunta.

Seus pulmões queimavam, prestes a sucumbir à falta de ar, mas ela resistiu. Ele poderia destruí-la de mil formas, mas jamais quebraria sua determinação. No fundo, ela sabia que ele, o predador, estava mais perto da morte do que jamais imaginou. A ideia de vê-lo temer a morte pela primeira vez a alimentava com um prazer sombrio.

— Vá para... o inferno... Maundrell... — Sua voz, ainda audível apesar da dificuldade, era cheia de desdém. A visão ao seu redor turvava, e seus olhos começavam a rolar sem controle.

Maundrell aumentou a pressão, os dedos pálidos cravando-se mais fundo em seu pescoço. O desejo de exterminá-la parecia consumir cada centímetro de seu ser, mas algo o fez hesitar. Uma dor lancinante atravessou suas costas. Ele largou Evangeline abruptamente, e ela caiu pesadamente no chão e resfolegou desesperada em busca de ar. Com dificuldade, ela ergueu a cabeça e viu, de esguelha, o cabo de uma adaga cravada nas costas de Maundrell.

Quando ele se virou, a figura de Marin se revelou, firme e resoluta, com o olhar determinado de quem enfrentaria qualquer coisa para proteger Evangeline.

O rosto de Maundrell se contorceu de surpresa, sua arrogância quebrada pela inesperada resistência. Marin, embora trêmula, não vacilou ao falar, sua voz cortante como uma lâmina.

— Tire suas mãos imundas da minha menina. — Exclamou, desafiadora. — Você jamais será digno de tocá-la!

O repúdio estampado no rosto de Marin apenas fortaleceu o que Maundrell cultivara ao longo dos meses — uma aversão implacável ao clã dos Grievers e a todos que se opuseram ao seu único pedido. O desmerecendo por ser quem era e por subestimar a distinção de sua raça. Ela e todo seu clã pagariam por tamanha arrogância. Pelo desprezo que eles nutriam por sua linhagem e pela crença inabalável de que ela representava uma ameaça à sua supremacia. O ódio transpareceu em cada palavra que ele proferiu.

Ainda não exterminei todos vocês? — a voz dele carregava uma frieza mortal, suas palavras como lâminas afiadas.

O sorriso perverso que se formou em seus lábios era a marca registrada de sua crueldade. Com um gesto abrupto, ele arrancou a adaga cravada em seu ombro, observando sem emoção o sangue escorrendo pela lâmina. Para ele, aquilo não era nada mais do que um simples sinal de sua superioridade, mais uma lembrança de sua capacidade de destruir.

A cor no rosto de Marin desapareceu instantaneamente, como se a vida tivesse se esvaído de seu corpo num piscar de olhos. Sem hesitar, Maundrell a perfurou com a lâmina, cravando-a profundamente no abdômen. O som do impacto foi abafado pelo grunhido de dor que escapou de Marin, antes de ela cair ao chão com um baque surdo, já sem vida.

Evangeline, observando a cena, fechou os olhos com força, tentando sufocar a dor e o arrependimento que ameaçavam consumir sua alma. A perda de Marin foi um golpe devastador, mas ela não podia se permitir ceder à dor. Não ainda.

O grito de Leonora cortou o silêncio que se seguiu, estridente e cheio de desespero. Evangeline, ainda de olhos fechados, sentiu a presença da jovem se aproximando, impulsiva e sem entender a gravidade da situação. Quando Maundrell se virou, ela estava ali, saindo das sombras como uma presa incauta indo diretamente para a morte. Antes que qualquer movimento fosse feito para evitar o desastre, Maundrell se adiantou com rapidez sobre-humana e, num gesto brutal, torceu o pescoço de Leonora, que sucumbiu instantaneamente, seu corpo caindo inerte no chão, um som seco e macabro ecoando pela sala.

A morte de Leonora foi tão rápida quanto silenciosa. Uma das últimas testemunhas da resistência de Evangeline e seus aliados agora estava perdida, e o demônio olhava para ela com um olhar gélido, como se tudo aquilo fosse parte de um jogo ao qual ele já soubera a resposta há muito tempo.

Inconformada com a tragédia que havia consumido seu povo, Evangeline se abaixou, seus dedos trêmulos tocando a lâmina da adaga de seu pai, ainda manchada de sangue. A dor e a perda esmagavam seu peito, mas dentro dela, uma última chama de determinação queimava com fúria silenciosa. Ela havia cumprido seu destino, mas ao custo de tudo o que amava. O peso de sua missão, de sua linhagem, a forçava a agir, não havia mais nada a fazer. O fim que lhe restava, porém, seria marcado pela mais profunda escolha.

O grimório, a relíquia ancestral de sua linhagem, repousava a seus pés, seu poder diluído e desaparecido com a última palavra de seu encantamento. Evangeline, com os olhos sem brilho, segurou a lâmina com as mãos firmes, sentindo o metal gélido, e, por um breve momento, tudo ao seu redor silenciou.

Ela observou o grimório, sua alma dividida entre o amor que sentia por seu povo e o alívio por ter cumprido sua missão. Com um suspiro, seus lábios finalmente se moveram, pronunciando o feitiço final.

Evanesco.

A relíquia de seu clã se desfez no ar, como um último suspiro de um legado perdido.

Com um olhar resoluto, a dor da perda pesada em seu coração, ela se forçou a pronunciar suas últimas palavras com uma clareza cortante.

A morte virá ao seu encontro, Maundrell. Assim como você trouxe a morte a todos nós... E você viverá o resto de seus dias com o medo do fim que se aproxima.

Sua voz, apesar de fraca, ainda carregava a autoridade de quem conhecia o preço daquilo que sacrificava.

Maundrell não respondeu, seu semblante impassível, mas seus olhos, agora inquietos, refletiam o desconforto de algo que não poderia controlar. Evangeline, sentindo o peso de seu último ato, não hesitou. Ela fechou os olhos com um suspiro, sentindo as lágrimas quentes queimando seu rosto. A lâmina da adaga encontrou seu coração com uma precisão dolorosa, e, ao fazer isso, uma quietude desceu sobre seu corpo. O sangue, quente e espesso, jorrou pela lâmina, manchando a espada e as mãos de Evangeline. Mas o que lhe restava não era mais o medo ou a dor, apenas uma quietude resignada.

Em seu último suspiro, uma última memória de seu clã a envolveu. O símbolo dos Grievers em seu antebraço esquerdo começou a desaparecer, seu brilho se apagando como a própria vida de Evangeline.

Maundrell, por um instante, observou a sacerdotisa com uma serenidade sombria. Ela havia cumprido seu destino, e, com isso, o peso de sua presença parecia desaparecer junto com ela, como se sua missão estivesse finalmente concluída. Ele sabia, no fundo de sua alma, que ele também estava agora selado em sua própria condenação.

O símbolo dos Grievers que se desfez era mais que uma marca de um clã extinto. Era um lembrete, uma sombra crescente que se ergueria sobre ele, uma maldição que ele teria de carregar enquanto vivesse. Ele não temia a morte de Evangeline, mas agora, diante de sua última palavra, ele sentiu pela primeira vez o peso da sua própria morte se aproximando, como uma presença ameaçadora, prestes a se revelar.

Maundrell agora sabia: sua vida já não lhe pertencia. O fim que ele havia causado a tantos, e que um dia pareceu tão distante, agora o aguardava. Ele não fugiria dele. E o temor do inevitável se espalhou pelo seu corpo como um veneno, algo que nunca imaginara sentir.

Evangeline, mesmo em sua morte, o havia derrotado de uma forma muito mais profunda do que a simples destruição. Ela havia plantado nele a semente do medo, o medo de um fim que chegaria, mais cedo ou mais tarde, para cobrar o preço do que ele causou.

Quando Evangeline partiu, o silêncio no recinto foi absoluto.

A morte, para ela, era não apenas uma fuga, mas uma condenação eterna lançada sobre seu inimigo.

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