Inverness, Escócia 1752
Uma tempestade descomunal rugia desde o cair da tarde, banhando o mundo em um manto de trevas inquietantes. Nuvens pesadas e densas, de um cinza profundo como o carvão, tomavam o céu, apagando qualquer vestígio de luz. A lua e as estrelas, impotentes, foram obliteradas por essa cortina de desespero. O vento, feroz e inclemente, bradava em uivos que carregavam a essência da fúria, enquanto relâmpagos riscavam o firmamento com uma luz branca e crua, cada clarão como uma lâmina que feria os olhos. Beleza e perigo entrelaçados, anunciando que a noite não pertencia mais aos homens, mas às forças que os superavam.
No vilarejo aos pés das Montanhas de Krane, a tempestade não era a única ameaça. Os moradores, encurvados sob o peso da calamidade, enfrentavam algo muito mais antigo e terrível que a ira da natureza. Um terror sombrio, quase inominável, pairava sobre eles como uma maldição, espreitando nos cantos mais profundos de suas mentes e corações.
Evangeline cambaleava sob a chuva incessante. Suas mãos se apoiavam nos joelhos trêmulos, que latejavam com o peso do vestido encharcado. Os fios negros de seu cabelo caíam como um véu, escondendo o rosto marcado pela exaustão e o sofrimento. Gotas d’água escorriam pelas pontas, estilhaçando-se no solo como pequenos cristais liquefeitos. Mas eram as lágrimas quentes e silenciosas que traíam o verdadeiro fardo que carregava — o medo e a culpa por não ter conseguido proteger seu povo.
Aos seus pés, os corpos jaziam como folhas tombadas pelo vento. Homens, mulheres e crianças, abatidos como animais, a maioria ainda agarrada a um fio tênue de vida. Seus gemidos e olhares vazios eram um lembrete cruel da sua impotência. Evangeline cerrou os punhos, e o aperto em seu peito tornou-se quase insuportável. Os pés descalços encontrando o chão frio e escorregadio de uma escadaria que serpenteava para as profundezas das montanhas. Cada degrau era um desafio, um retorno ao passado e uma esperança de moldar o futuro. Ao seu lado, Marin, a fiel criada, lutava para acompanhar. Seu pequeno corpo franzino tremia, mas a determinação em seus olhos cansados era inabalável. O coque grisalho balançava desordenadamente, enquanto os gritos da vila, agora distantes, ainda ecoavam em sua mente.
― Vamos, minha menina... mais um pouco. Não ceda agora... ― sussurrou Marin, ofegante, mas firme.
Evangeline mal podia responder. Seus lábios moviam-se em palavras inaudíveis, sua energia drenada pela luta incessante contra a desesperança. No final da escadaria, uma porta colossal bloqueava o caminho. Esculpida na própria rocha da montanha, sua superfície era adornada por runas antigas que brilhavam com uma luz etérea, pulsando em um ritmo quase vivo. Por trás dela, o coração do povo dos Grievers pulsava.
Ali estava sua última chance.
Ela estendeu as mãos, tremendo de exaustão, e sentiu as runas reagirem ao seu toque. Ondas de energia vibraram sob sua pele, mas, apesar do esforço, a porta permaneceu imóvel. Evangeline deixou escapar um soluço de frustração, apoiando-se na parede úmida. Marin e Leonora, a outra criada, trocavam olhares inquietos. A tensão no ar era sufocante.
Como sobreviver à fúria daquele terrível monstro? Como garantir que seu clã não fosse dizimado naquela noite? Como poderia pôr fim a aquele tormento se não conseguia sequer abrir uma porta?
― Você consegue. ― sussurrou Marin, com um olhar que carregava a força de todas as gerações passadas. ― Não pode falhar agora.
Evangeline cerrou os olhos, buscando nas profundezas de si mesma a força que acreditava já ter perdido. As palavras de encantamento fluíram por seus lábios em um murmúrio hesitante, enquanto as runas pulsavam com maior intensidade. No entanto, o peso da magia era como uma maré contrária, resistindo ao seu comando. Seu corpo vacilou, os joelhos fraquejaram, e ela tombou contra a pedra fria. Lágrimas ardiam em seus olhos, enquanto o silêncio momentâneo era preenchido apenas pelo som da chuva e pelo murmúrio das montanhas.
― Não... não posso... ― sussurrou, mas suas mãos ainda buscavam a runa mais próxima, como se recusassem desistir.
A noite estava longe do fim, e a esperança, ainda que diminuta, brilhava como um farol distante. Mas para alcançá-la, Evangeline teria que enfrentar algo mais terrível do que tempestades ou monstros. O medo de si mesma.
Desde o momento em que viera ao mundo, Evangeline fora marcada pelos dons primordiais dos Grievers, um legado inescapável que a transformava em símbolo e esperança de seu povo. Mas ser a herdeira de tamanha responsabilidade era uma carga que ela nunca aceitara de bom grado. O peso das expectativas era um fardo constante, sufocante, e a fazia desejar ser qualquer outra pessoa. Por vezes, invejara até mesmo aqueles que a serviam. Marin e Leonora, apesar de sua posição humilde, pareciam livres das correntes invisíveis que aprisionavam Evangeline.
"Você deve guardar-se como uma pérola dentro de uma ostra." As palavras de Asher, seu pai, ressoavam como um eco distante em sua mente. Ele sempre fora sua fortaleza, um homem austero, mas justo, cuja fé nos dons da filha jamais vacilara.
Ainda assim, Evangeline se sentia perdida, uma sacerdotisa sem direção, dividida entre o chamado de seus deveres e as incertezas de uma jovem que nunca tivera permissão de descobrir quem era além do título que carregava.
Seu coração estava em conflito. Havia mágoa por aquilo que lhe fora imposto, mas havia também culpa. Uma culpa que crescia como ervas daninhas, sufocando cada pensamento, cada tentativa de ser livre. Ela sabia que, nas sombras, cometera erros, escolhas imprudentes que manchavam a honra de sua linhagem. Mas a vergonha que a consumia agora era pequena diante do que estava em jogo.
Ela se ergueu novamente e com um suspiro, ela secou as lágrimas no rosto.
“Agora não.” pensou, reprimindo as emoções que, por vezes, ameaçavam afogá-la. Ali, diante da imensa porta, ela sentiu o ódio e a dor transformarem-se em algo diferente: uma força que a inflamava por dentro, um combustível para resistir.
― APERIO! ― A palavra de poder escapou de seus lábios como um rugido abafado, reverberando nas profundezas da câmara.
As runas que protegiam a entrada cintilaram em um último protesto antes de se desfazerem em uma chuva de fagulhas brilhantes. O selo, uma barreira antiga e complexa, cedeu, revelando a escuridão do santuário além da porta. Com um estrondo que fez as paredes tremerem, a passagem se abriu, e um vento gelado escapou dali, como se os próprios segredos das montanhas respirassem aliviados.
― Rápido, procurem pelo altar. ― ordenou Evangeline, sua voz trêmula, mas carregada de autoridade.
Marin e Leonora não hesitaram. Seus passos apressados ecoaram pela câmara escura, enquanto a lamparina nas mãos de Leonora projetava sombras irregulares nas paredes de pedra. O recinto era vasto, circular, e carregado por um silêncio pesado, como se o próprio tempo tivesse esquecido aquele lugar. O ar era denso, quase sufocante, impregnado com o odor de pedra úmida e madeira em decomposição. As paredes rochosas estavam tomadas por musgos espessos, enquanto enormes pilares de pedra sustentavam um teto perdido na escuridão. Candelabros enferrujados pendiam precariamente, suas velas derretidas e inutilizadas pelo passar das eras. A atmosfera pulsava com uma aura de desolação; se pudesse nomear aquele espaço, chamaria-o de "sombrio". Não apenas por sua aparência, mas pela opressiva sensação que exalava de cada canto.
Evangeline avançou sem hesitar.
― Incendium ― sua voz cortou o silêncio como um comando firme.
As velas que restavam acenderam-se uma a uma, revelando de forma tímida os contornos da sala. À medida que a luz tremulante expandia seu alcance, ela se aproximou do centro do recinto, os olhos atentos buscando o que sabia estar ali: o altar.
Ele repousava solitário, um monumento ao esquecimento. Feito de madeira apodrecida e parcialmente colapsada, o altar, outrora símbolo de legaso, agora era um eco frágil de tempos passados. O palanque de suporte estava à beira de ceder, as cordas que o prendiam prestes a se romper. Um buraco profundo no segundo degrau, criado por anos de goteiras persistentes, testemunhava o descaso e o inexorável desgaste do tempo. O altar, que um dia sustentara o peso de esperanças e orações, agora parecia incapaz de carregar até mesmo sua própria existência.
Subir naquele altar seria um ato insano; a decadência era evidente em cada centímetro de sua estrutura. Ele era o reflexo de tudo o que havia sido perdido: a força de seu povo, a crença em seus ideais, e talvez até a própria resiliência de Evangeline. O contraste com o púlpito central, no entanto, era notável. Estranhamente intacto, ele era esculpido em madeira polida e preservada, como se o tempo tivesse poupado aquela única peça. Duas runas entalhadas nas laterais brilhavam com uma energia discreta, mas ainda poderosa: proteção e conservação.
Sobre ele, repousava o objeto que exalava um magnetismo quase sobrenatural. O Grimório. O livro sagrado de seu clã, a essência viva dos Grievers. Sua presença era inconfundível. Evangeline o reconheceu de imediato, mesmo após tantos anos. Fora apresentado a ela apenas uma vez, no dia em que se tornara sucessora de sua linhagem, e agora, diante dele novamente, sabia que seria a última vez.
A melancolia que a envolvia foi subitamente interrompida por um estrondo ensurdecedor. A porta, que até então parecia impenetrável, tremeu como se atingida por uma força colossal. O impacto ecoou pelo recinto como o som de mil cascos batendo contra o chão, um prelúdio de algo inevitável, cada vela tremeu com a vibração, como se até a luz sentisse a ameaça que se aproximava.
Marin e Leonora se entreolharam, o medo escancarado em seus rostos.
Evangeline permaneceu imóvel, o coração disparado como um tambor de guerra.
― Evangeline… ― Uma voz ecoou de algum lugar entre as paredes, feito um fantasma. Era grave e cruel, carregada de um peso que quase a fez paralisar. O monstro sabia que ela estava ali, sabia o que ela aguardava. ― Você acha que pode escapar do destino? Que pode salvar estes vermes que te chamam de líder?
A provocação a atingiu como uma lâmina, mas Evangeline cerrou os punhos. Não era hora de hesitar.
― Ele está perto demais… ― Leonora sussurrou, recuando alguns passos, apertando a lamparina com tanta força que seus dedos ficaram brancos. A jovem criada estava irreconhecível; sua usual vivacidade fora substituída por uma expressão de pânico e exaustão. Seu vestido, antes de um amarelo vibrante, estava manchado de lama e sangue, a barra rasgada pela violência da noite.
Marin, apesar da idade e do corpo frágil, se posicionou entre Evangeline e a porta, como se sua mera presença fosse suficiente para deter o inevitável.
― Termine o que começou, menina ― disse, sua voz resoluta, mas baixa o suficiente para que a sacerdotisa soubesse que era um apelo.
Evangeline subiu no altar. Cada degrau rangeu sob o peso de seus pés, a madeira se dobrando, mas resistindo. Diante do Grimório, sua respiração tornou-se irregular, como se a proximidade do artefato drenasse suas últimas forças. A aura que emanava dele era poderosa, opressora, e parecia exigir mais do que ela tinha para dar. Era agora ou nunca. A capa do Grimório estava fria ao toque, mas ao abri-lo, uma onda de calor percorreu seu corpo. O Grimório parecia vivo, pulsando com uma energia ancestral que reconhecia seu toque. Símbolos brilhavam nas páginas, vivos como estrelas, organizando-se em padrões que ela reconhecia, mas não compreendia completamente. O poder do livro invadiu sua mente, sua alma, e por um instante, ela sentiu que poderia controlar a própria tempestade lá fora, moldar o mundo como quisesse.
A sacerdotisa estendeu a mão, hesitante. A adaga de seu pai parecia mais pesada do que nunca quando Evangeline a retirou de seu corselete. O metal frio refletia a luz tremeluzente das velas ao redor, e seus dedos, agora firmes, percorreram a lâmina prateada. Ela sentia o peso de toda uma linhagem em suas mãos, uma responsabilidade que não poderia mais adiar. Com um suspiro profundo, ela estendeu a palma da mão esquerda, seu olhar fixo e determinado. Um movimento deliberado cortou a linha do meio, e a dor aguda subiu por seu braço como uma corrente elétrica. Mas Evangeline não cedeu. Ignorou o ardor, focando no sangue que agora escorria em um fluxo escarlate para dentro do Grimório. Suas palavras vieram baixas, quase um sussurro, mas carregadas de uma força que parecia ressoar no tecido da própria realidade.
O Grimório brilhou com intensidade crescente, seus símbolos se desprendendo das páginas e flutuando no ar. Ondas de energia se espalharam pela sala, empurrando as criadas para trás e fazendo as velas se apagarem. Evangeline sentiu a magia consumir seu corpo, cada palavra roubando um pedaço de sua força, mas ela continuou. O ar ao redor vibrou. Primeiro suave, depois um fragor crescente. As velas ao redor do altar dançaram violentamente até explodirem em labaredas mais intensas, iluminando o ambiente com uma luz sobrenatural. Então, de repente, os olhos de Evangeline reviraram. Um grito silencioso de energia percorreu sua espinha, e uma onda de calor pulsante a dominou. As páginas começaram a girar furiosamente, como se comandadas por um vento invisível. O sangue que escorria de seus dedos fluía para o livro, espalhando-se como raízes vivas, traçando runas ancestrais com precisão assombrosa. Os símbolos arcanos brilhavam com um tom carmesim antes de serem absorvidos pelas páginas. O feitiço estava quase completo.
Atrás dela, a porta cedeu com um rugido monstruoso. O impacto reverberou pelo chão de pedra e o ar foi tomado por uma pressão sufocante. Pedaços de madeira voaram pelo ar, atingindo uma parede próxima.
Marin tropeçou para trás, instintivamente empurrando Leonora para longe.
― EVANGELINE! ― gritou, a voz impregnada de desespero e coragem.
Ele entrou. Não com fúria, mas com uma confiança elegante, quase cruel. O vampiro não precisava de pressa, e cada passo era um lembrete do poder que carregava. Sua figura era tão imponente quanto bela, um paradoxo que fascinava e aterrorizava ao mesmo tempo. O rosto perfeito contrastava com os olhos, duas esferas negras que refletiam o abismo.
Ele a encontrou de imediato. Um sorriso se formou em seus lábios, um gesto de triunfo revestido de crueldade. A escuridão no ambiente parecia dobrar-se em torno dele, sugando até a chama das velas.
― Querida Evangeline... ― Sua voz era melodia e ameaça, suave como seda, mas cortante como uma lâmina. Ele parou, inclinando-se em uma reverência quase zombeteira, seus olhos cravados nos dela. ― Finalmente te encontrei.
Evangeline, ainda com a mão sobre o Grimório, despertou de seu transe. Endireitou-se, mesmo diante da presença esmagadora, e ergueu o queixo com dignidade. O medo, que outrora a consumira, era agora uma lembrança distante.
― Não o temo mais, demônio da noite. ― Sua voz era firme, cada palavra carregada de autoridade. ― Pode matar-me se quiser, mas jamais terá meu poder.
Ele arqueou uma sobrancelha, como se aquelas palavras fossem uma surpresa agradável. Uma expressão de prazer sádico dançou em seus traços enquanto ele se aproximava mais, a passos lentos e calculados.
― Matar você? ― Ele riu suavemente, e sua voz soou doce demais para esconder a monstruosidade que carregava. ― Acha mesmo que quero matar logo... você? ― Ele parou a poucos passos dela, os olhos negros brilhando com uma satisfação sombria. ― Há mortes que acontecem ainda em vida. E acredito que já concedi essa dádiva a você nesta noite.
As palavras de Maundrell chegaram a Evangeline como flechas envenenadas, cada sílaba cortando mais profundamente do que qualquer espada jamais poderia. O peso da provocação, impregnado de escárnio e crueldade, parecia querer esmagar o que restava de sua força.
― Você pagará por tudo que fez ao meu povo e a todos que cruzaram o seu caminho. ― Sua voz tremeu, mas não de medo; era de fúria contida. Sua mão ferida pendia ao lado do corpo, e o calor do sangue que escorria parecia alimentar a chama de sua indignação. ― Seu fim está mais próximo do que imagina... tão certo quanto o meu.
O sorriso de Maundrell se alargou em um gesto quase teatral, uma expressão de diversão sombria e inabalável. Ele inclinou ligeiramente a cabeça, como um predador entretido pela resistência de sua presa.
― Então foi isso o que acabou de fazer? Prever o meu fim? ― Ele perguntou com uma voz repleta de zombaria, cada palavra impregnada de uma confiança fria e inumana. ― Não há força, mortal ou divina, capaz de me destruir. ― Sua afirmação ressoou, ecoando como uma verdade incontestável no silêncio que se seguiu.
Evangeline ergueu os olhos, o fogo em seu olhar desafiando a escuridão que emanava dele.
― Não agora, talvez. ― Ela respondeu, cada palavra proferida com uma certeza férrea. ― Mas logo virá.
Por um breve instante, algo passou pelos olhos do vampiro — uma sombra imperceptível de dúvida, talvez. Ele rapidamente a mascarou com sua usual arrogância, mas Evangeline percebeu. E isso foi suficiente para reacender sua convicção. Ele, imponente e imperturbável, fixou seus olhos negros nela, buscando sinais de fraqueza, de desespero. Seus olhos, profundos e insondáveis, eram um abismo que queria puxá-la para dentro. Mas Evangeline, com o que restava de sua força, não desviou o olhar. Ao contrário, ela o encarou com uma calma desconcertante, como se o temesse menos a cada segundo que passava.
Foi um jogo silencioso, uma dança mental que se desenrolava sem palavras, mas com intenções claras. Ele queria se alimentar de seu medo, de sua dor, e ela estava pronta para dar-lhe o que ele não esperava: confiança. Enquanto o demônio parecia absorver cada nuance de seu semblante, Evangeline usava essa troca de olhares para enganá-lo, esconder suas verdadeiras intenções. Seus olhos, agora focados e resolutos, transmitiam a ilusão de uma fragilidade prestes a ceder, mas, por dentro, ela estava arquitetando sua jogada final. A intensidade de seu olhar não dizia medo; dizia apenas paciência.
Ela sentia o poder do Grimório pulsando dentro dela, pronto para ser transferido, e sabia que esse era o momento exato para completar o ritual. O demônio, com sua arrogância de sempre, acreditava que ele tinha o controle da situação. Mas enquanto ele se perdia na leitura do que via, cada palavra, cada pensamento que ele acreditava que podia manipular, estava sendo desviado e absorvido pelo poder ancestral que ela agora dominava, selando as páginas sagradas.
Os olhos dele brilhavam com a promessa de vitória, mas por trás daquela fachada, o que ele não via era a energia vital de Evangeline fluir silenciosamente para o Grimório. Ela, com um gesto imperceptível, concluiu a transferência de seu poder para as páginas do livro. Ela havia enganado o demônio com a mais poderosa das armas: o silêncio. O que ele não sabia era que o olhar dela não era de submissão, mas de total controle. Um simples gesto disfarçado, um leve movimento, e o ritual estava completo. Ela sentiu seu poder desaparecer e uma estranha sensação de peso nos ombros finalmente lhe deixar, lhe trazendo alívio.
Um sorriso sinuoso curvou os lábios de Evangeline, sua expressão, até então tensa, transformando-se em um reflexo triunfante.
Antes que ela pudesse arriscar um passo, a sombra de Maundrell a envolveu com uma velocidade sobrenatural. Em um instante, seus pés se afastaram do chão, e ela foi lançada contra a parede gélida. Sua mão pálida e impiedosa envolveu seu pescoço como um grilhão, erguendo-a no ar com facilidade desumana. O ar lhe faltava; cada suspiro era arrancado de seus pulmões, enquanto a pressão esmagadora ameaçava quebrar sua traquéia.
— O que fez, Evangeline? — Ele ordenou, sua voz grave e desprovida de qualquer emoção, como se estivesse fazendo uma simples pergunta.
A dor queimava em seus pulmões, o mundo ao seu redor se tornando um borrão indistinto. Mas, mesmo diante da morte iminente, Evangeline manteve-se firme. Ele podia destruí-la de mil maneiras, mas nunca quebraria sua alma. No fundo, ela sabia: Maundrell, o predador, estava mais próximo de sua ruína do que jamais imaginava. A simples ideia de vê-lo enfrentar o próprio fim alimentava um prazer sombrio dentro dela.
― Vá... para o inferno... Maundrell... ― Sua voz saiu arranhada, quase inaudível, mas carregada de desdém. Seus olhos ardiam enquanto a visão se desfazia em trevas.
Os dedos de Maundrell apertaram ainda mais, cravando-se na carne dela como garras. Ele parecia consumir-se no desejo de exterminá-la, o ódio transparecendo em cada fibra de seu ser. Mas, então, algo inesperado o fez hesitar. Uma dor aguda cortou suas costas, atravessando-o como uma lâmina incandescente. Com um grunhido furioso, ele largou Evangeline, que caiu ao chão como uma marionete cujas cordas foram cortadas, arfando desesperadamente em busca de ar.
Evangeline, ainda ofegante, ergueu a cabeça com dificuldade. Seus olhos captaram o brilho de uma adaga cravada nas costas de Maundrell, o cabo vibrando levemente com o impacto recente. Quando ele se virou, os olhos dele encontraram a figura de Marin. Ela estava ali, firme e destemida, o olhar inflamado por uma determinação inabalável.
O semblante de Maundrell, sempre impenetrável, contorceu-se em surpresa. A presença de Marin parecia desestabilizar sua arrogância. Embora sua mão tremesse ao lado do corpo, ela se manteve firme, e sua voz cortou o silêncio.
― Tire suas mãos imundas da minha menina. ― Marin declarou, a fúria em seu tom ofuscando qualquer medo. ― Você jamais será digno de tocá-la!
Maundrell observou Marin com um misto de ódio e desprezo, suas palavras reacendendo uma antiga chama de aversão que ele nutria pelos Grievers. Para ele, aquele clã era o ápice da insolência: desmerecendo e subestimando-o por ser quem era. Ele nunca os perdoaria pelo desprezo que nutriam por sua linhagem e pela crença inabalável de que ele representava uma ameaça à sua supremacia.
O ódio transpareceu em cada palavra que ele proferiu.
― Ainda não exterminei todos vocês? ― Sua voz era um sussurro cortante, carregado de uma frieza mortal.
Sem perder tempo, Maundrell agarrou o cabo da adaga cravada em seu ombro. Com um gesto brutal, ele a arrancou, e o som do metal deslizando por sua carne ressoou no ar. O sangue escorreu pela lâmina, mas ele parecia alheio à dor, como se aquilo não fosse nada além de um lembrete de sua própria força. Ele ergueu a adaga, o sorriso cruel que brotou em seus lábios sendo uma promessa de destruição iminente. A terror era tão palpável como o prelúdio de uma tempestade que estava prestes a desabar.
O rosto de Marin empalideceu instantaneamente, como se a própria vida tivesse se esvaído num único e cruel momento. Maundrell, sem hesitar, moveu-se com a precisão de um carrasco. A lâmina em sua mão perfurou o abdômen de Marin com uma força impiedosa. O som abafado do impacto misturou-se ao gemido de dor que escapou de seus lábios antes de seu corpo ceder. Ela caiu ao chão com um baque surdo, sua vida esvaindo-se em segundos.
O silêncio que seguiu foi ensurdecedor, como se o mundo tivesse prendido a respiração. Evangeline observava a cena, os olhos arregalados de horror e impotência. Cada fibra de seu ser gritava em agonia, mas ela se recusava a deixar a dor consumir o que restava de sua determinação. Marin, sua guardiã, havia partido, e a ferida aberta em sua alma queimava.
Um grito estridente reverberou no ar. Leonora, impulsiva e tomada pelo desespero, irrompeu das sombras, movendo-se com uma mistura de coragem e ingenuidade fatal. Evangeline tentou gritar, detê-la, mas as palavras morreram em sua garganta. Maundrell já estava em movimento, sua rapidez sobre-humana transformando a cena em um borrão de horror. Antes que Leonora pudesse sequer reagir, o demônio a alcançou. Com um gesto brutal e frio, ele torceu o pescoço da jovem. O estalo seco ecoou pela sala como um aviso cruel do destino que aguardava qualquer um que ousasse desafiá-lo. O corpo de Leonora tombou no chão, inerte, o som de sua queda tão vazio quanto o futuro que ela jamais teria. A sala mergulhou em outro silêncio pesado, quebrado apenas pela respiração irregular de Evangeline.
Diante da tragédia que havia consumido tudo o que amava, Evangeline abaixou-se, os dedos trêmulos tocando a lâmina da adaga de seu pai. O aço frio ainda exalava a essência do sacrifício, manchado com o sangue daqueles que caíram antes dela. A dor e a perda eram insuportáveis, um peso esmagador que quase dobrava seus joelhos. Mas dentro dela, uma última chama de determinação ardia. Não havia mais para onde recuar. O fim estava diante dela, e seria marcado por sua escolha final.
O Grimório, a relíquia ancestral que tanto protegera, repousava ao seu lado, o brilho enfraquecido das runas sendo consumido lentamente pela escuridão ao redor. Evangeline o encarou com olhos opacos, a alma dilacerada entre o dever cumprido e o vazio da destruição que restava. Com um gesto solene, ela estendeu a mão para o livro, seu toque ativando uma última centelha de poder.
― Evanesco.
A palavra saiu de seus lábios como um sussurro carregado de despedida. O Grimório começou a se desfazer, dissolvendo-se no ar em um feixe de luz dourada, como se seu próprio espírito estivesse partindo junto com ele. Foi o último suspiro de um legado que, embora destruído, jamais seria esquecido. Ela se ergueu, lenta, mas determinada. Seu olhar encontrou o de Maundrell.
― A morte virá ao seu encontro, Maundrell. Assim como você trouxe para todos nós. — Sua voz, embora marcada pela exaustão, ainda carregava a autoridade de quem conhecia o preço do sacrifício. — E você viverá o resto de seus dias com o medo do fim que se aproxima.
Maundrell permaneceu imóvel, sua expressão fria como mármore, mas seus olhos, antes inabaláveis, tremeram por um instante. Uma fagulha de desconforto cruzou seu olhar — uma fração de segundos em que o predador vislumbrou a sombra do algoz.
Evangeline fechou os olhos, permitindo que as lágrimas silenciosas traçassem caminhos ardentes em sua pele. Seu corpo, cansado e ferido, segurou o cabo da adaga com uma precisão inexorável. O aço penetrou seu coração, e, com ele, uma quietude quase sagrada desceu sobre ela. O sangue quente e rubro, escorreu de seu peito, manchando a adaga e o chão sob seus pés. Mas, naquele instante, não havia mais medo. Apenas uma resignação profunda e uma força silenciosa que transcendia a morte.
Enquanto sua vida se esvaía, o símbolo ancestral dos Grievers, gravado em seu antebraço, começou a desaparecer. O brilho que outrora representara gerações inteiras se apagou lentamente, como uma vela consumida pelo próprio fogo. Maundrell observava a cena em silêncio, sua expressão intocada pela emoção, mas seus olhos refletindo algo novo — algo inconfundível. Não era dor, nem arrependimento. Era o peso de uma maldição.
O símbolo que desaparecia não era apenas a marca de um clã extinto; era um aviso. Um lembrete. Uma promessa. Maundrell, pela primeira vez em sua existência, sentiu o eco de algo que jamais pensou conhecer: o medo. Não da morte de Evangeline, mas do que ela havia deixado para ele. Uma sombra crescente, invisível, mas palpável, que pairava sobre ele, esperando.
O temor tomou forma em seu interior, enraizando-se como um veneno. Ele sempre acreditou ser imune ao destino, mas agora sabia que sua vida não lhe pertencia mais. A morte, que ele distribuiu com tanta facilidade, finalmente estendia suas garras em sua direção. E o pior de tudo? Ele sabia que não poderia escapar.
O silêncio que se seguiu era absoluto, como se o próprio universo tivesse segurado a respiração. O corpo de Evangeline jazia imóvel, mas seu sacrifício ecoava, vivo, em cada sombra do recinto. A morte não era apenas sua redenção; era o início da ruína de Maundrell. E, enquanto ele se mantinha ali, estático, o peso do que ela deixara começou a envolvê-lo, como uma presença invisível e implacável, que o perseguiria até o fim.
Parte I "Nada há de oculto que não se torne manifesto, e nada em segredo que seja conhecido e venha a luz do dia.— Evangelho de Lucas 8,17✥Adeus.Indicação de despedida; sinal, palavra, gesto ou acontecimento que assinala a partida de alguém.Uma palavra que carrega um significado tão profundo quanto o amor, a morte e o perdão. Há momentos em que nos preparamos para a partida iminente de alguém, mas e quando a morte nos pega de surpresa? Quando chega sem aviso e nos obriga a aceitá-la, levando aqueles que, por mais mortais que sejam, deveriam ser eternos? Como saber quando estamos finalmente prontos para dizer adeus e retirar a atadura que cobre a ferida em nossos corações? O tempo não cura; ele apenas ameniza a dor, tornando as lembranças mais suaves, embora a tristeza persista, apertando nosso peito até nos sufocar. As lágrimas, então, caem, e a dor se torna mais visível.Já se passaram sete anos desde que comecei a conviver com essa dor profunda e a passar a detestar a data do m
A noite estava agradavelmente fresca após um dia de calor intenso. O céu, salpicado de estrelas prateadas e iluminado pela lua crescente posicionada no centro, conferia um brilho pálido ao colégio, cuja arquitetura vitoriana lembrava um castelo dos filmes de Drácula — visão que sempre me fascinava.Pouco depois da partida de Karyn, Edgar, o segurança, liberou minha passagem pelo portão de ferro. O letreiro "Jardim Prata", forjado em arco no alto das lâminas que coroavam o portão, tornava a instituição ainda mais imponente. Ao longe, pude ver alunos dispersos pelo campus, aproveitando o frescor noturno antes do toque de recolher. Eu sabia que Evelyn estaria entre eles, pois nunca perdia a chance de sentir a liberdade efêmera além das paredes imponentes do colégio.Como esperado, encontrei-a sob a luz amarelada de um poste colonial, sentada de frente para o jardim e de costas para o edifício que nos aprisionava diariamente. Aquele era nosso refúgio favorito, onde podíamos contemplar a be
Meu corpo saltou da cama em um espasmo. O ar voltou aos meus pulmões de forma brusca e dolorida, enquanto meu peito arfava, tentando lidar com a batida frenética do meu coração. A adrenalina pulsava em minhas veias.— Foi só um pesadelo... — pensei, ainda com a mente turva. — Um pesadelo horrível e assustador...Respirei fundo, tentando acalmar o tremor nas mãos. Meus olhos correram pelo quarto, reconhecendo aos poucos os objetos familiares que pareciam, de alguma forma, distantes. O abajur apagado, a janela aberta pela metade, as cortinas afastadas, deixando os raios de sol dourados banharem o ambiente com uma claridade morna. Peguei o celular virado para baixo sobre o criado-mudo e toquei na tela. Oito e quinze da manhã.Um novo dia começava, mas algo ali estava errado.Olhei ao redor do quarto, a desconfiança crescendo como um pressentimento ruim. Minha mente se forçava a entender como e quando eu havia voltado para casa e me deitado ali. Era como tentar ver através de uma neblina e
Na manhã seguinte, acordei com as batidas firmes na porta do quarto, seguidas pela voz impaciente de Kathryn, avisando que eu a faria atrasar para o trabalho. Levantei, ainda sonolenta, e encontrei o café da manhã já pronto sobre a mesa. Sentei em silêncio e encarei a tigela de cereal com leite, o pedaço de torta de maçã e a xícara de café. Uma refeição mecânica, quase sem sabor, feita só para cumprir tabela.Karyn estava na sala, sentada no sofá, escondida atrás do jornal enquanto esperava por mim. Quando terminei, caminhamos até o carro em silêncio, como se cada palavra represada fosse uma ameaça àquela paz superficial. Dentro do carro, a rádio local preenchia o vazio com um locutor animado, falando sobre o calor do dia e a importância do protetor solar. A cada palavra dele, o silêncio entre nós se tornava mais denso. Kathryn dirigia com uma pressa calculada, como se quisesse me deixar logo para trás.Por um momento, pensei que talvez fosse mesmo uma boa ideia nos afastarmos por essa
Eu avistei a porta da biblioteca pelo corredor, mas meus pés se recusaram a avançar.Uma sensação gelada, como mãos invisíveis agarrando meeu corpo, me paralisou de imediato. Minhas costas grudaram na parede enquanto eu tentava, desesperadamente, me esconder. Minha respiração ficou presa na garganta, e meu coração batia como se quisesse fugir do meu peito. Senti um nó gelado se formar no estômago enquanto uma voz horrenda ecoava na minha mente: "Você jamais despertará." Minha determinação ruiu, abrindo espaço para o pavor se instalar, e eu me virei, voltando pelo caminho.Agora, eu estava sentada na arquibancada da quadra de basquete, fingindo interesse no treino para ganhar tempo. As líderes de torcida praticavam, repetindo pela milésima vez uma nova coreografia com gritos exagerados. Maureen, claro, liderava, dançando à frente com movimentos ensaiados ao som de I Love It da Icona Pop. Tinha que admitir: ela dançava bem. Seus passos eram graciosos, precisos, dignos de aplausos — mas n
Eve voltou pouco depois do anoitecer e, em poucas palavras, resumiu a visita ao pai. Um homem a quem chamava apenas de Sr. Willians, um tutor de fachada, cuja paternidade ela descrevia mais como um dever social do que um laço genuíno. Era um assunto que ela raramente discutia, como se deixasse os traumas da infância trancados a sete chaves. Tudo que eu sabia é que ele havia enterrado a paternidade junto com a esposa, trocando-a pelo bourbon e os charutos caros, até se casar anos depois com sua sócia, firmando de vez uma barreira afetiva entre ele e Eve.— Ele te obrigou a escolher uma faculdade? Mas... ainda falta um ano e meio para você terminar o colégio — questionei, surpresa.Eu estava sentada ao centro da cama, pernas cruzadas e cabelo úmido, enquanto esperava Eve terminar de se arrumar para irmos ao refeitório. A brisa noturna soprava pela janela aberta, trazendo um frescor sutil ao quarto.— É a maneira dele de garantir que vai continuar mandando na minha vida — respondeu, de de
O corredor estava lotado, como sempre. Alunos passavam apressados, tropeçando uns nos outros, livros escorregando de braços distraídos, risadas e conversas enchendo o espaço como um zumbido constante. Eu seguia em silêncio ao lado da Eve, tentando ignorar o peso crescente nos meus ombros, como se a noite passada ainda estivesse me puxando para trás.— Você não dormiu nada, né? — A voz de Eve cortou o barulho, casual, mas cheia de intenção. — Tá estampado na sua cara.Pisquei algumas vezes, como se isso pudesse mascarar o cansaço.— Só não consegui relaxar. — Minha voz soou baixa, quase abafada pelo movimento ao nosso redor.Eve parou por um momento para ajustar a alça da mochila e me olhou de canto de olho.— Não conseguiu relaxar ou tem alguma coisa te incomodando? — perguntou, insistindo com aquele jeito típico dela. — Ontem você tava tão estranha, até com a mensagem do Nate.Tentei rir, mas o som saiu estranho. Eu sabia que não conseguiria enganar Eve por muito tempo. Ela sempre foi