— Foi só um pesadelo... — pensei, ainda com a mente turva. — Um pesadelo horrível e assustador...
Meus olhos correram pelo quarto, reconhecendo aos poucos os objetos familiares que pareciam, de alguma forma, distantes. O abajur apagado, a janela aberta pela metade, às cortinas afastadas, deixando os raios de sol dourados banharem o ambiente com uma claridade morna. Peguei o celular virado para baixo sobre o criado-mudo e toquei na tela. Oito e quinze da manhã.
Um novo dia começava, mas algo ali estava errado.
Olhei ao redor do quarto, a desconfiança crescendo como um pressentimento ruim. Minha mente se forçava a entender como e quando eu havia voltado para casa e me deitado ali. Era como tentar ver através de uma neblina espessa — meus pensamentos voltavam aos muros do cemitério, às últimas palavras que troquei com Karyn sobre fantasmas. Mas depois... nada. Um vazio inexplicável pairava onde deveria estar a memória da tarde de ontem.
Lembrava-me vagamente do tom firme de Karyn insistindo que me levaria ao colégio, que me acompanharia até a entrada. Mas agora, sozinha em meu quarto o que me perturbava era a total falta de lembrança sobre como essa promessa havia sido deixada de lado. Não fazia sentido. Eu não conseguia me lembrar de nada que explicasse como ou por que tinha acordado em casa e, pior ainda, em meu pijama.
Um arrepio gelado percorreu minha espinha.
Pressionei meus dedos contra os cabelos bagunçados e me joguei de volta na cama, fixando os olhos no forro de madeira acima de mim. Em silêncio, repassei tudo o que acontecera desde meu regresso ao colégio até a imagem horrível da senhorita Maggie. Será que tudo não passara de um pesadelo perturbador?
Mas admitir isso parecia difícil. As lembranças pareciam reais demais: a garotinha com a mesma marca de nascença que eu, a cena horripilante do assassinato da bibliotecária, tudo tão vívido, como se fosse um filme de terror que se recusava a desaparecer. Meus nervos ainda vibravam com a memória desses momentos.
“Você não despertará, Griever…”
Cobri o rosto com as mãos, tentando afastar o som dessa voz. Esse nome de novo… Griever. Ele ecoava como uma marca sombria em minha mente.
“Você precisa despertar... Você não despertará…” As vozes distintas soaram, uma após a outra, em tons diferentes, cada qual mais perturbadora que a anterior.
Pressionei o espaço entre meus olhos, tentando aliviar a dor que latejava ali.
— O que está acontecendo? — sussurrei, uma sensação estranha e inquietante pulsando em meu peito, como se algo essencial escapasse ao meu entendimento.
“Não precisamos de fantasmas para piorar as coisas.”
As palavras de Karyn ecoaram por cima das vozes sombrias, como uma âncora que prendia minha mente à realidade, abafando momentaneamente as murmurações e acalmando a tempestade de pensamentos. O ranger suave da porta me tirou dos meus pensamentos, e logo ela entrou com passos silenciosos, segurando uma bandeja nas mãos. Vestia um short preto e uma camiseta de algodão branca, que deixava à mostra o contorno do sutiã preto. Seu rosto, limpo e sem maquiagem, trazia uma expressão de preocupação que se dissipou ao me ver acordada, dando lugar ao alívio.
— A Bela adormecida finalmente despertou. — ela brincou, a voz suave e acolhedora, enquanto fechava a porta com o calcanhar. — Trouxe o seu café da manhã, madame.
Não consegui evitar um sorriso. Karyn colocou a bandeja ao meu lado na cama, e o aroma de torradas quentes com geléia de amora subiu no ar, despertando meu apetite. Peguei uma torrada ainda quente e dei uma mordida, sentindo a crocância e o doce da geléia derretendo em minha boca. Karyn puxou a cadeira da escrivaninha e se sentou de frente para mim, observando-me atentamente.
— Achei que você não fosse mais acordar. — ela disse, a voz carregada de um leve traço de apreensão que me fez franzir o cenho, intrigada. Fiquei em silêncio, ainda mastigando, mas meus olhos a encorajavam a continuar.
— Precisei ir até a casa da frente e pedir para o doutor Harley vir te dar uma olhada. Você não acordava de jeito nenhum.
Ao ouvir isso, engoli a torrada rapidamente, mas ela desceu áspera e difícil, como se minha garganta se fechasse de leve. Um frio subiu pela minha espinha, e a sensação de inquietação voltou, me fazendo encarar Karyn em busca de respostas, mesmo sem saber exatamente qual pergunta fazer.
— Como assim eu não acordava de jeito nenhum? — perguntei, repetindo as palavras, e levei o copo de suco de laranja aos lábios, tentando abafar o aperto no peito. — Você está dizendo que eu apaguei no carro, quando estávamos indo embora?
Karyn arqueou as sobrancelhas, o olhar dela agora mais sério do que eu esperava.
— Angie, eu te encontrei desmaiada no chão do cemitério.
Fiquei sem palavras. O ambiente ao meu redor pareceu se contrair, e de repente, as torradas e o suco não eram mais tão atraentes.
— Isso não é possível. — minha voz vacilou, uma contestação carregada de incredulidade. — Quero dizer... — pigarreei, tentando organizar os pensamentos. — Por que eu desmaiaria? Estava me sentindo tão bem... — completei, sem muita convicção ao lembrar da garota sinistra e a sua imagem em minha mente, perturbadora.
Karyn pareceu perceber a minha luta interna, respondendo com calma.
— O doutor Harley disse que sua pressão deve ter caído por causa do calor. — ela fez uma pausa, como se ponderasse suas palavras. — Esses dias quentes tem feito muito mal, e a umidade está baixíssima. A sensação térmica é quase como uma erupção vulcânica. Mas eu ainda acho que se esqueceram de fechar os portões de Hades.
Eu fiquei em silêncio, processando a explicação de Karyn, mas meu olhar dizia tudo, aquilo não fazia sentido. A ideia de desmaiar por causa do calor não me convencia. Eu não havia sentido nada tão grave... Até o momento em que aquelas imagens começaram a se infiltrar na minha mente, e a sensação de vertigem retornou.
— Você quer ir ao médico? — Karyn perguntou, seu tom agora mais sério, os olhos dela avaliando-me com cuidado. — Está sentindo dor de cabeça? Náuseas, fraqueza... algo assim?
Respirei fundo, tentando afastar a confusão crescente e o desconforto que parecia me dominar.
— Eu estou bem. — afirmar isso parecia mais uma forma de me convencer do que uma realidade. — Só preciso terminar o café e tomar um banho decente.
Karyn não parecia convencida, mas acenou com a cabeça. Ela passou a mão por seu cabelo, colocando uma mecha atrás da orelha, e uma expressão difícil de ler passou rapidamente por seu rosto. Parecia um misto de preocupação e algo mais. Eu não conseguia identificar o que exatamente, mas uma sensação inquietante me dizia que havia algo mais que ela não estava dizendo.
— Sabe, Angie... — ela disse com uma suavidade rara, ajeitando a franja que caía sobre sua testa. — O seu aniversário já é amanhã, e eu estava pensando que mal conseguimos passar um tempo juntas. — Karyn reconheceu isso com uma leveza na voz que me fez questionar se eu realmente estava acordada. — Estive tão focada em não deixar nada faltar, que acabei deixando de lado o que realmente importa na minha vida. Você.
As palavras dela ficaram suspensas no ar, e a minha reação — ou a falta dela — tornou o silêncio ainda mais profundo no quarto. Não consegui encontrar palavras. A boca fechada, a mente lenta, incapaz de processar a sinceridade nos olhos de Karyn. Presenciar esse tipo de abertura vinda dela não se comparava a nada que eu pudesse ter imaginado. Nenhuma de nós estava à beira da morte, nem prestes a fazer escolhas drásticas como mude país. Era apenas um dia comum, uma manhã de domingo qualquer, e Karyn ainda era Karyn; a fortaleza impenetrável, as palavras rápidas, diretas, e um rosto de expressão fechada.
— Você pode falar alguma coisa se quiser. — ela acrescentou, tentando suavizar o desconforto do silêncio que pairava entre nós.
Balancei a cabeça, um aceno desajeitado, sem saber o que dizer.
— Bem... Eu não esperava por isso logo de manhã.
— Eu sei, eu... — Karyn se calou, como se buscasse as palavras certas, algo que fosse suficiente, mas ainda não estivesse certa de como se expressar. A dificuldade dela em abrir o coração era palpável. — Não sou a pessoa mais aberta do mundo, e na maioria das vezes não demonstro que me importo com você...
Levantei a mão, interrompendo-a suavemente.
— Isso não é verdade. Você não só se importou como também cuidou de mim durante todos esses anos. — disse com uma calma que parecia surpreender até a mim mesma. Vi a expressão de Karyn relaxar um pouco. — Mas não precisa mais se esforçar tanto. Eu gostaria que você cuidasse mais de você agora. — continuei, tentando ser gentil, tentando trazer um pouco de leveza. — Como você mesma disse, eu já estou bem grandinha.
Karyn sorriu, um sorriso tranquilo, e assentiu com satisfação, como se algo tivesse se resolvido dentro dela.
— Está bem então, senhorita grandinha. — ela riu suavemente, beliscando um pedaço de torrada e levando-o à boca. Era estranho vê-la agir tão naturalmente, como nos velhos tempos, antes da tragédia moldá-la com uma personalidade mais fria, escondida atrás de um luto profundo. — Agora termine o seu café e sai debaixo dessas cobertas para tomar um banho, vou te levar a um lugar especial para comemorar o seu aniversário. — seus olhos cinzentos estavam fixos em mim, ansiosos, esperando uma reação.
Pisquei, confusa, ainda processando as palavras dela.
— Comemorar? — repeti, a dúvida evidente na minha voz. — Hoje?
Karyn franziu a testa, claramente estranhando minha reação vacilante.
— Algum problema?
— Problema nenhum... é que... — suspirei, tentando encontrar uma explicação para o que parecia uma regra não dita. — As pessoas costumam dizer que faz mal comemorar o aniversário antes da data.
Karyn cruzou os braços, visivelmente intrigada.
— As pessoas também costumam acreditar em outras baboseiras. — ela resmungou, claramente desconfortável com o tom excessivamente sério da minha resposta. — E quantos anos você tem? Cinco?
Levantei as mãos em defesa, incapaz de continuar o argumento. Karyn revirou os olhos, o que me fez soltar um suspiro silencioso e enfiar outro pedaço de torrada na boca. Ela se levantou, empurrando a cadeira de volta ao seu lugar, seu corpo estava rígido, mas havia algo mais no ar. Karyn parecia evitar o peso do silêncio que estava se formando.
Ela soltou um suspiro profundo e lento, suas mãos repousando no encosto da cadeira, a feição pensativa oscilava ao passo que ela se esforçava para não voltar a ter o humor sorumbático de uma idosa de oitenta anos. Ajustando a postura, ela deixou os braços caírem ao longo do corpo, e me lançou um olhar decidido.
— Espero que fique pronta em dez minutos, ou vou comemorar sem você. — a voz dela tinha um tom de leve ameaça, mas a suavidade que se escondia atrás de suas palavras ainda me fazia sorrir. Ela virou-se em direção à porta, sem esperar por uma resposta.
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O SUNSET CLUB definitivamente não era o tipo de lugar que se esperaria que alguém da minha idade frequentasse, muito menos um espaço que acolhesse uma bela família tradicional. Localizado fora dos limites da cidade, o bar possuía uma reputação questionável, construída a partir dos relatos de pais e educadores que apontavam o lugar como um ponto de encontro para atividades ilícitas, como a receptação de produtos furtados, tráfico de drogas e prostituição. No entanto, para minha surpresa, nada disso correspondia à realidade que encontrei. O ambiente, longe de ser decadente ou repleto de pessoas descontroladas, parecia um local comum, com uma aura peculiar, mas nada de mais.
Minha imaginação fértil, confesso, me traiu. Ao entrar, fui recebida por um ambiente que poderia ser facilmente confundido com qualquer outra lanchonete de bairro. Bancos estofados em tons pastéis, mesas bem organizadas e um nível de limpeza impecável. Quadros psicodélico adornava as paredes negras, e o piso, um tabuleiro de xadrez em preto e branco, completava a estética do lugar. O som suave da música fluía pelo ambiente, e a voz de George Thorogood em Bad to the bone parecia se encaixar perfeitamente na atmosfera descontraída e ao mesmo tempo excêntrica.
Karyn, que parecia conhecer o Sunset como a palma da mão, parecia à vontade com todos ao seu redor. Eu estava surpresa, não só por ela nunca ter compartilhado esse segredo comigo, mas principalmente por me revelar aquele lugar como um presente de aniversário. Sentamos em uma área reservada, longe das mesas vazias, mas perto de uma mesa de sinuca onde dois homens com roupas de motoqueiro jogavam bilhar, acompanhados por duas mulheres loiras vestindo couro e botas de cano alto. A empolgação com o jogo era visível em seus rostos, e a energia no ar era contagiante, algo bem diferente da imagem sombria que eu tinha do local antes de entrar.
― Bilhar ainda não é adequado para a sua idade. ― Karyn comentou, com o canudo do milkshake entre os lábios. Alguns fios de sua franja balançavam suavemente ao vento do ventilador de teto.
― Ainda estou tentando processar o fato de estar almoçando no Sunset Club e que você o frequenta. ― respondi, incrédula.
― Qual o problema? ― ela perguntou com uma leve despreocupação, devolvendo o copo de milkshake quase vazio à mesa. Envergonhada, meu rosto corou, mas o tom tranquilo de sua voz e o olhar impassível que me lançou me fizeram sentir boba.
― As pessoas não falam bem daqui. ― cochichei perto de sua orelha, como se temesse ser ouvida. ― Eu imaginei um lugar completamente decadente.
Apesar da calmaria aparente, meus sentidos ainda estavam alerta, esperando algum sinal de tumulto ou violência. A tranquilidade que pairava no ambiente parecia frágil, como se, num piscar de olhos, o lugar pudesse se transformar em um campo de batalha.
Karyn soltou um som de desdém e deu de ombros.
― As pessoas falam demais. ― comentou ela, com uma leveza que contrastava com minha apreensão.
Olhei novamente ao redor, notando a calmaria do bar e as poucas pessoas dispersas, claramente desinteressadas em brigas. Encostei minhas costas no estofado macio do banco, deixando um sorriso surgir involuntariamente ao observar Karyn, tão relaxada e à vontade no ambiente. Minha atenção se desviou para a mesa, que estava coberta por uma toalha branca com desenhos de balões vermelhos — uma exceção entre as outras mesas com toalhas de cores neutras. Em vez do tradicional bolo de aniversário, hambúrgueres e batatas fritas foram servidos por conta da casa. A atenciosa bartender se aproximou com um cupcake, com uma pequena vela acesa, e pronunciou palavras gentis antes de colocá-lo à nossa frente. O gesto simples, mas cheio de carinho, fez todo o meu amor por Karyn transbordar, reafirmando o vínculo inquebrantável de irmandade entre nós.
Nosso momento foi interrompido pelo som das bolas de bilhar batendo umas nas outras. Um dos rapazes, alto e de barba, comemorou com entusiasmo ao lado de uma loira de saia curta, que erguia uma caneca enorme de cerveja e depositava beijos em seu rosto enquanto seus amigos, ao lado, praguejavam e colocavam mais dinheiro na mesa.
― Karyn? ― chamei, e ela voltou seu olhar cinza na minha direção. ― Como você conheceu este lugar, afinal?
― A curiosidade nem sempre mata o gato. ― Karyn respondeu, com um sorriso enigmático, como se soubesse algo que eu não soubesse. Franzi a testa, confusa, e Karyn deixou um sorriso sutil surgir nos cantos dos lábios. ― Lester me apresentou ao Sunset quando completei dezoito anos.
Ergui as sobrancelhas, surpresa.
― Lester? O nosso Tio Lester?
Karyn assentiu brevemente.
― Regra número um do Sunset: só é bem-vindo quem for acompanhado ou indicado por um cliente de confiança. Não é qualquer um que pode entrar aqui. O risco de ser expulso com um tiro no traseiro é quase garantido.
Franzi a testa, sorrindo.
― Uma maneira interessante de dar as boas-vindas.
― Esse lugar tem que manter sua reputação para colocar as pessoas arrogantes em seu devido lugar. ― Karyn respondeu com um olhar sério. ― E o lugar delas não é aqui.
Olhei ao redor, observando as poucas pessoas dispersas no salão. Um homem de meia-idade usava uma jaqueta e calças camufladas, suas botas polidas reluziam sob a mesa. Ele folheava o jornal com calma, enquanto um copo de uísque e uma garrafa descansavam ao seu lado, acompanhados de um cinzeiro com um charuto queimando parcialmente. Atrás do balcão, a bartender secava copos com um pano branco enquanto conversava descontraidamente com um homem alto e de costas largas, que usava um boné azul surrado e uma camiseta de uma garota punk estampada nas costas, dando-lhe um ar de caminhoneiro de passagem.
Em uma mesa distante, perto de uma máquina de caça-níqueis, uma mulher de pele escura estava imersa em um livro, o cabelo longo caindo pelos ombros. Ela se curvava ligeiramente para frente, absorvendo a leitura. O deslumbrante vestido vermelho que usava realçava suas curvas e, entre o dedo indicador e médio, um cigarro queimava lentamente.
Cada um ali parecia desfrutar de um raro momento de paz, isolados em seus próprios mundos. O Sunset oferecia uma pausa àqueles que, frequentemente, escapavam de rotinas caóticas e desgastantes.
― Posso me acostumar a frequentá-lo. ― declarei com entusiasmo genuíno.
Karyn me fitou com uma expressão interrogativa.
― Se você deixar é claro. ― acrescentei, vendo o entusiasmo murchar um pouco.
Ela sorriu, mas com uma pitada de seriedade.
― Você já ganhou sua carta branca. Só não abuse. Não são todos que podem ou devem estar aqui. ― disse ela com um olhar firme, só se desfazendo dele quando concordei com um leve aceno de cabeça. ― Nada de Evelyn, Liam ou Nathan neste lugar. ― seu tom era claro e sem espaço para discussões.
― Meus amigos imaginários podem? ― brinquei, tentando aliviar a tensão.
― Estou falando sério, Angie.
― Isso já ficou bem claro. ― respondi, meu sorriso desaparecendo.
― Então é bom mantê-los bem longe. ― Karyn concluiu, seca, e a advertência estava estampada em cada palavra. ― Não quero me meter em problemas.
Com um suspiro profundo, virei para olhar pela janela. Do lado de fora, a estrada parecia deserta, sem vida, enquanto o céu azul, pontilhado de nuvens brancas, anunciava mais um dia quente. As folhas dos imponentes pinheiros que adornavam as margens da estrada estavam imóveis, sem a brisa do vento para sacudi-las. O capô dos carros estacionados brilhava sob a luz intensa do sol.
Mais adiante, um outdoor chamava atenção, suas cores vibrantes destoando do cenário monótono. A imagem de um parque recém-inaugurado estampava o enorme painel, acompanhado de letras garrafais: "Bem-vindos ao novo coração da cidade! Inauguração neste fim de semana!". O letreiro chamativo prometia uma novidade para quebrar a monotonia do lugar, ainda que a tinta recém-aplicada já começasse a desbotar sob o calor implacável.
Abaixo do anúncio, a estrada se estendia sem pressa, suas faixas desgastadas pelo tempo. Não havia movimento, nenhum carro passando, nenhum sinal de vida além da promessa do outdoor.
― O que eu não daria por uma boa xícara de café. ― ela resmungou, claramente impaciente. De canto de olho, percebi Karyn mexendo no resto do milk shake. O líquido marrom derretido balançava suavemente dentro do copo.
― O expresso será servido logo após as dezoito horas. ― uma voz feminina respondeu atrás de nós.
Senti o corpo de Karyn se tencionar ao meu lado, e seu semblante mudar instantaneamente. Olhei para trás, encontrando uma mulher caminhando em nossa direção. Era bonita, o físico alto e esguio, rosto de traços nórdicos e longos cabelos loiros divididos em duas tranças grossas, caíam suavemente sobre os ombros. Ela sentou-se no banco vazio à nossa frente com a naturalidade de alguém que sabia que seria esperada, e apanhou o milk-shake de Karyn, bebendo-o com um gesto seguro, até suas bochechas se afundarem. A jaqueta jeans sem mangas repousava sobre seus ombros como se fizesse parte dela há anos, os fios desfiados nas extremidades denunciando o tempo de uso. Por baixo, a regata cinza, já desbotada, grudava levemente ao corpo sob o calor intenso do dia. A calça jeans preta, ajustada e gasta nos joelhos, completava o visual despreocupado, mas com uma certa atitude.
― O que você faz aqui? ― Karyn perguntou, a dureza em sua voz evidente.
Ela largou o copo sobre a mesa com um estalo leve, passando a língua pelos lábios como se saboreasse até a última gota. Seu olhar deslizou entre nós com familiaridade, sem pressa, como se tivesse acabado de se juntar a uma conversa que nunca realmente parou.
― Usando minhas próprias palavras para me recepcionar? ― a mulher respondeu com um leve sorriso, como se estivesse apenas moderadamente surpresa. ― Lester ficaria orgulhoso de você.
― Lester já se orgulhou de mim por muito menos. ― Karyn rebateu, sua voz com um tom de admissão difícil de identificar, mas com uma dureza palpável. ― Infelizmente, ele não pode mais dizer o mesmo de você.
Algo em sua voz, talvez uma pontada de ressentimento, tornou suas palavras ainda mais afiadas.
A mulher ajustou sua postura sem pressa, emanando um aroma levemente agridoce. Seus braços repousaram sobre a mesa, e ela descansou o queixo nos dedos, claramente se divertindo com a conversa.
― O orgulho dele é algo que eu jamais vou precisar. ― ela arriscou um sorriso presunçoso, seu tom se tornando mais cortante. ― Você vai entender o que é isso quando aprender a caminhar com suas próprias pernas.
Um olhar cheio de significado foi lançado em direção a Karyn seus grandes olhos âmbar transmitiam uma aura de autoridade e indicava uma idade um pouco superior a dela. Esperava que ela reagisse de imediato, contestando com a rapidez habitual, mas ela não o fez. Os olhos cinzentos se desviaram para um ponto distante, e, ao perceber isso, um sorriso ainda mais largo se formou nos lábios da mulher, revelando dentes brancos e bem alinhados.
― Quem é você? ― perguntei, a voz direta e firme.
E ela fixou seus olhos nos meus, um brilho amarelado acentuando-se em seu olhar.
― Que falta de educação a minha. ― ela inclinou ligeiramente para frente, como se repreendesse a si mesma. Gotículas de suor brilhavam no topo de sua testa. ― Meu nome é Clarke, e sou uma velha... amiga da sua irmã. ― olhar passou para Karyn, que respirou fundo, claramente desconfortável.
Uma tensão palpável se espalhou entre elas, e, sem entender completamente o motivo, eu me preparei para defender minha irmã.
― Tem certeza? ― a minha voz saiu mais dura do que pretendia. ― Porque ela nunca me falou sobre você.
Em partes, era verdade.
Instantaneamente, o semblante de Clarke escureceu. Uma sombra atravessou seus olhos, apagando qualquer vestígio de prepotência.
― É claro que Karyn jamais contaria. ― ela passou a língua entre os dentes. ― Se há alguém que sabe esconder segredos, é a Kathryn. ― sua voz se suavizou, mas o tom era carregado de significado. ― Você já deveria saber disso, Angeline. ― o simples fato de me chamar pelo nome me fez olhar para Karyn, que, imóvel ao meu lado, não demonstrava intenção de refutar as palavras de Clarke.
― Dá o fora, Clarke. ― Karyn disse, a voz rispada e firme, como aço.
As duas ficaram trocando olhares desafiadores, uma batalha silenciosa que só elas pareciam compreender, até que Clarke, finalmente, desviou os olhos em minha direção.
― Mas, ao contrário de você, já ouvi muito sobre ao seu respeito.
Clarke levantou com o milk shake em mãos, mas antes de se afastar, ela lançou um sorriso cínico.
― Foi um prazer te conhecer, e parabéns pelo aniversário.
Ela se dirigiu para uma mesa próxima, que agora notei estar ocupada por um grupo maior. A conversa acalorada entre eles foi interrompida por um momento e alguns olhares rápidos se voltaram para nós quando Clarke se sentou. Um dos rapazes, um jovem da minha idade, olhou para nós e deu um sorriso cínico, acenando com os dedos por cima do ombro.
Karyn, com um gesto quase imperceptível, levantou a mão esquerda e mostrou o dedo do meio para ele
― Você realmente sabe como fazer amigos. ― comentei, observando-a com um sorriso divertido.
― Eles não são meus amigos. ― Karyn respondeu com simplicidade, sem se deixar abalar.
― Nem a Clarke?
A pergunta pareceu tocar uma corda sensível em Karyn, que desviou o olhar rapidamente, e por um instante, seu rosto se fechou.
― Tivemos um relacionamento breve. ― ela foi sucinta, não parecia querer entrar em detalhes. ― Nada que valesse a pena compartilhar.
― Está dizendo que... namoraram? ― perguntei, tentando entender o alcance da situação.
― Namorar é o que você e Nathan fazem há um ano e meio. Clarke e eu nunca chegamos a esse ponto. ― Karyn disse de forma casual, mas com uma leve acidez na voz.
― Ela sabia disso? ― questionei, mais pela curiosidade do que por qualquer outra coisa. Karyn me olhou com as sobrancelhas franzidas, como se não entendesse minha linha de raciocínio.
― Agora entendo o comportamento excessivamente solene. ― declarei, com um tom levemente irônico, imaginando que talvez estivesse sendo uma espécie de "sinal". ― É uma maneira clara de chamar sua atenção.
Karyn arqueou uma sobrancelha, aparentemente surpresa pela minha observação.
― Desde quando você entende sobre isso?
Suspirei dramaticamente, tentando aparentar sabedoria.
― Desde que comecei a conviver com adolescentes. Cheios de hormônios, claro.
Karyn balançou a cabeça, um sorriso baixo escapando de seus lábios.
― Meus pêsames. ― ela bateu o ombro dela contra o meu, um gesto leve e amigável.
Eu ri junto, não conseguindo evitar.
― Novo habitat, novas experiências. ― eu disse com um sorriso de cumplicidade.
― Prefiro passar o resto da minha vida servindo café. ― Karyn respondeu, mas não com rancor, apenas uma leve resignação.
― Há males que vêm para o bem. ― justifiquei, sem me preocupar em soar sábia demais. ― Ouvi dizer que terapeutas para casais não costumam cobrar barato.
― Estudar para resolver os problemas sentimentais dos outros? ― Karyn fez uma careta, como se a ideia fosse absurda. ― Aquela escola de almofadinhas não tem mais nada a oferecer?
― O patamar dos bolsistas é um tanto... limitado. ― respondi com uma leve ironia, fazendo-a torcer o nariz.
― De qualquer maneira, eu nunca quis que você fosse parar naquele lugar. ― Karyn murmurou, os pensamentos tornando-se distantes. ― Tudo aconteceu tão rápido, não tinha como saber. Nossos pais estavam mortos e nós duas, trancafiadas.
― Eu também não queria que fosse assim. ― eu disse suavemente, procurando transmitir conforto.
Karyn fechou a mão com força sobre a mesa, como se tentasse segurar algo que escapasse.
― Eu deveria ter impedido a saída deles.
― Como? Escondendo as chaves do carro? Dizendo que não podiam sair para um jantar sem nós? Não havia como prever o que aconteceria. ― tentei fazê-la ver a verdade, mas as palavras pareciam não ser suficientes.
Karyn ficou em silêncio, olhando para o nada, a expressão distante.
Por um momento, me perguntei se havia sido dura demais. Mas antes que pudesse dizer algo, ela soltou um suspiro longo e pesado.
― Você não entende. ― a frustração dela estava clara.
― Eu entendo que, mesmo nos momentos mais sombrios, tudo na vida acontece por um motivo. ― falei com firmeza, tentando ser a voz da razão.
― E que motivo seria esse, Angie? ― a amargura na pergunta de Karyn cortou o ar entre nós. ― Não existe uma razão para isso. Para pessoas como nós, não há finais felizes, nem paz à espera.
Eu me encolhi, sentindo as palavras dela como se atravessassem o meu peito, pesadas e dolorosas.
― Você fala como se estivéssemos amaldiçoadas. ― observei com um aperto no coração. ― Eu também gostaria que nossos pais ainda estivessem aqui. Mas fatalidades acontecem. Só nos resta seguir em frente.
Karyn deu uma risada seca, sem humor.
― Isso é uma grande besteira.
― Karyn... ― eu hesitei, tentando encontrar as palavras certas. ― Você precisa começar a se desprender desse luto.
Ela me olhou, os olhos frios e resolutos.
― E se eu não estiver disposta a isso?
Eu respirei fundo, tentando manter a calma.
― Então eu também perdi a minha irmã naquele acidente. ― minhas palavras saíram mais fortes do que eu pretendia, mas carregadas de uma verdade que precisava ser dita.
O desconforto no ar se tornou tangível, uma força imensurável que nos consumia em um silêncio pesado. Karyn me encarou, mas sua expressão não vacilou, e, de algum modo, isso me desorientou. Eu não sabia descrever o que via nela, ou talvez simplesmente não quisesse descobrir.
― Talvez você tenha razão. ― disse ela, fria, sem emoção, e se levantou da mesa com um olhar que não consegui decifrar.
Eu me vi incapaz de encontrar palavras que aliviassem o peso que se formava em meu peito. Frustração? Culpa? Mágoa?
Minhas lágrimas surgiram, quentes e traiçoeiras, ameaçando escapar. De repente, o ambiente no Sunset diminuiu, tornando-se um espaço claustrofóbico diante da imensidão da minha tristeza. Corri até o banheiro, ignorando os olhares enquanto atravessava o salão. Fechei a porta atrás de mim com mais força do que o necessário, tentando extravasar a raiva que se acumulava dentro de mim. As mãos se cerraram em punho, minhas unhas pressionando a palma, quase rasgando a carne para impedir que a raiva tomasse conta.
O reflexo no espelho me encarou, e foi como se fosse um rosto de um estranho. Meus olhos, os mesmos de meu pai, estavam embaçados pela dor, refletindo a tristeza que eu mal conseguia controlar. Quase senti vontade de correr atrás de Karyn, pedir desculpas, desmentir tudo o que havia dito. Mas, ao mesmo tempo, algo dentro de mim resistia a isso, não conseguia me arrepender das palavras que tinham saído da minha boca.
― Droga... ― murmurei entre os dentes, as palavras se perdendo na respiração entrecortada. Relaxe, Angeline, pensei para mim mesma. Meus dedos estavam vermelhos, queimando pela pressão que ainda exercia sobre eles. Limpei as lágrimas apressadamente com o dorso da mão e, inevitavelmente, a imagem de Karyn e a amargura que ela exalava voltaram à minha mente. O peso daquelas palavras ainda estava em mim, como uma sombra implacável.
Uma solidão fria se instalou ao meu redor, como se estivesse me envolvendo, esperando pacientemente que eu me rendesse. Meu coração apertou de novo, e mais lágrimas preencheram meus olhos. Eu não queria estar sozinha com aquilo, mas parecia que não havia outro caminho senão encarar a dor.
― Feliz aniversário, Angeline. ― disse com ironia, piscando contra as lágrimas que teimavam em cair.
Um som abafado em uma das cabines atrás de mim fez meu coração disparar. Endireitei-me apressada, engolindo o choro, e me inclinei sobre a pia de mármore para lavar o rosto. Quando ergui o olhar, através do espelho cercado de azulejos abstratos, vi a porta da cabine do meio se abrir. A mulher de vestido vermelho surgiu, seus olhos cravando-se nos meus por um breve instante. O eco de seus saltos altos batendo contra o piso aumentava o peso da tensão enquanto ela se aproximava, parando ao meu lado. Sem dizer uma palavra, ela abriu a torneira, derramou um pouco de sabonete líquido nas mãos e começou a esfregá-las calmamente.
Eu me apressei em puxar algumas toalhas de papel, secando meu rosto com a expressão tensa, tentando não olhar para ela. Mas era impossível não reparar na tatuagem de serpente que cobria seu braço esquerdo, a cabeça repousando nas costas de sua mão, com a boca aberta, prestes a atacar. Silenciosamente, usei sua indiferença como uma desculpa para evitar qualquer tipo de contato visual.
Mas meu próprio silêncio me traiu. Um soluço escapou antes que eu pudesse conter, e, através do reflexo no espelho, vi que ela me observava com curiosidade. Senti seu olhar, mas mantive os meus fixos em minhas mãos úmidas, incapaz de enfrentá-la.
― Algum problema, docinho? ― perguntou ela, sua voz aveludada contrastando com a dureza do olhar.
― Não, nada demais. ― respondi, esforçando-me para soar normal e joguei rapidamente os papéis úmidos na lixeira abaixo da pia.
― Problemas no paraíso? ― ela insistiu com um sorriso tênue, observando-me de soslaio. ― Eu sei que a Kathryn é osso duro de roer.
O nome me obrigou a encará-la, como se a simples menção de Karyn criasse uma faísca que eu não pudesse ignorar.
― Então você também a conhece. ― não foi uma pergunta; a familiaridade dela já era óbvia.
― Aqui no clube da Luluzinha todo mundo conhece todo mundo. ― a mulher inclinou-se ligeiramente, um sorriso enviesado surgindo no canto dos lábios. ― Aqueles 1,74 de altura intimidam qualquer um.
― Isso quer dizer que você também sabe quem sou eu.
Ela arqueou a sobrancelha com um ar de satisfação mal disfarçada.
― A irmãzinha protegida.
Eu tentei reprimir, mas um riso seco escapou.
― A Karyn é inacreditável.
― E, entre nós, também é difícil de lidar. ― a mulher comentou, como se partilhássemos um segredo. ― Mas, no fim das contas, você é uma garota de sorte.
Levantei as sobrancelhas, surpresa.
― Está brincando, só pode.
― E por que eu faria isso?
― Porque se me conhecesse de verdade, não diria uma coisa dessas.
Ela se afastou do espelho e virou de costas, apoiando-se contra a pia. O vestido vermelho caía perfeitamente, justo na cintura e curto, revelando suas pernas longas e realçando o quadril. O cabelo liso descia até as costas, e seus olhos, intensos e felinos, me encaravam de forma penetrante. Era um olhar estranho e desconcertante, como se ela pudesse ver através de mim, atravessar minha máscara e acessar algo que eu tentava esconder.
Ou pior, como se ela enxergasse a bagunça dentro de mim com uma clareza que nem eu possuía.
― Sorte é só uma questão de perspectiva.
― Não quando se trata da minha família. ― respondi, com um toque de melancolia na voz.
Ela sorriu, inclinando-se ligeiramente.
― Vocês duas não são tão diferentes quanto pensam. ― falou gentilmente, com um olhar que exalava uma compreensão inesperada. ― Posso ler sua mão?
A perguntei me pegou de surpresa. .
― Com todo respeito, eu não acredito nessas coisas. ― mudei o peso de uma perna para a outra, hesitante
― Considere uma cortesia da casa. ― ela sorriu de novo, tentando me tranquilizar. ― Além disso, gostei de você.
Depois de um momento de hesitação, sorri de volta. Talvez uma leitura amigável pudesse trazer um pouco de leveza, ainda que eu não acreditasse realmente. Eu estava cansada de tanto pessimismo.
― Tudo bem. ― estendi minha mão esquerda.
Vi suas sobrancelhas franzirem levemente, uma expressão quase indecifrável cruzando seu rosto antes que seus dedos quentes, quase febris, envolvessem minha mão.
― Vamos ver o que o seu futuro reserva.
Nesse instante, a porta do banheiro se abriu, e Karyn entrou. Um silêncio pesado se instaurou entre nós, enquanto nos entreolhávamos, todos cientes da estranha tensão no ar.
― Estou interrompendo algo? ― a voz de Karyn soou baixa e afiada. Ela ignorou meu olhar e se voltou diretamente para a mulher ao meu lado. ― Ava?
― Angeline e eu estávamos apenas nos conhecendo. ― respondeu Ava, soltando minha mão devagar e alisando o tecido do vestido com um gesto calmo e calculado. Juntei minhas mãos e baixei os olhos, esperando pela bronca que, de algum modo, eu sabia que viria.
― Deixa-me adivinhar. ― Karyn continuou com sarcasmo. ― Você leu a mão dela e viu gnomos verdes, fadas e unicórnios?
Ava manteve o sorriso, com a tranquilidade de quem sabe exatamente o efeito de cada palavra.
― Como você é cruel. ― respondeu suavemente. ― Sua irmã não é tão cética quanto você.
Karyn olhou para mim com uma expressão inesperadamente branda, bem diferente de antes.
― Vamos embora, Angeline.
Sem dizer nada, passei pela porta, mas antes que eu pudesse ir muito longe, ouvi a voz de Karyn soar baixa e cortante atrás de mim, carregada de um aviso implícito.
― É melhor você ficar longe dela.
Algo no tom sombrio de Karyn enviou um calafrio pela minha espinha, e, por um instante, senti que essa recomendação não era apenas um conselho, mas uma ordem inegociável.
NA MANHÃ SEGUINTE, acordei com as batidas firmes na porta do quarto, seguidas pela voz impaciente de Karyn, avisando que eu a faria atrasar para o trabalho. Levantei, ainda sonolenta, e encontrei o café da manhã já pronto sobre a mesa. Sentei em silêncio e encarei a tigela de cereal com leite, o pedaço de torta de maçã e a xícara de café. Uma refeição mecânica, quase sem sabor, feita só para cumprir tabela.Karyn estava na sala, sentada no sofá, escondida atrás do jornal enquanto esperava por mim. Quando terminei, caminhamos até o carro em silêncio, como se cada palavra represada fosse uma ameaça àquela paz superficial. Dentro do carro, a rádio local preenchia o vazio com um locutor animado, falando sobre o calor do dia e a importância do protetor solar. A cada palavra dele, o silêncio entre nós se tornava mais denso. Karyn dirigia com uma pressa calculada, como se quisesse me deixar logo para trás.Por um momento, pensei que talvez fosse mesmo uma boa ideia nos afastarmos por essa sem
EU AVISTEI AS portas da biblioteca pelo corredor, mas meus pés se recusaram a avançar. O peso do livro em minhas mãos parecia dobrar, como se, de repente, ele carregasse algo muito maior do que simples páginas encadernadas. Meu peito apertou, e uma sensação gelada percorreu minha espinha quando dei mais um passo hesitante.Então, o pesadelo veio.Não como uma lembrança distante, mas como se estivesse acontecendo ali, naquele exato momento. A escuridão opressora, os sussurros indistintos, a sensação sufocante de estar sendo observada. Meus dedos se fecharam com mais força ao redor do livro, como se ele pudesse me ancorar na realidade, mas era inútil. O chão sob meus pés pareceu se dissolver, e o som ao meu redor se tornaram um zumbido distante.Respirei fundo, tentando me concentrar no presente. Era só um sonho. Só um sonho. Mas meu corpo não parecia convencido disso.Dei um passo para trás, depois outro. A biblioteca continuava ali, imóvel, inofensiva. E, ainda assim, não consegui atra
EVE VOLTOU POUCO depois do anoitecer e, em poucas palavras, resumiu a visita ao pai. Um homem a quem chamava apenas de Sr. Willians, um tutor de fachada, cuja paternidade ela descrevia mais como um dever social do que um laço genuíno. Era um assunto que ela raramente discutia, como se deixasse os traumas da infância trancados a sete chaves. Tudo que eu sabia é que ele havia enterrado a paternidade junto com a esposa, trocando-a pelo Bourbon e os charutos caros, até se casar anos depois com sua sócia, firmando de vez uma barreira afetiva entre ele e Eve.— Ele te obrigou a escolher uma faculdade? — observei, surpresa. — Mas... ainda falta um ano e meio para você terminar o colégio.Eu estava sentada ao centro da cama, pernas cruzadas e cabelo úmido, enquanto esperava Eve terminar de se arrumar para irmos ao refeitório. A brisa noturna soprava pela janela aberta, trazendo um frescor sutil ao quarto.— É a maneira dele de garantir que vai continuar mandando na minha vida — ela respondeu,
O CORREDOR ESTAVA lotado, como sempre. Alunos passavam apressados, tropeçando uns nos outros, livros escorregando de braços distraídos, risadas e conversas enchendo o espaço como um zumbido constante. Eu seguia em silêncio ao lado da Eve, tentando ignorar o peso crescente nos meus ombros, como se a noite passada ainda estivesse me puxando para trás.— Você não dormiu nada, né? — a voz de Eve cortou o barulho, descontraída, mas cheia de intenção. — Tá estampado na sua cara.Pisquei algumas vezes, como se isso pudesse mascarar o cansaço.— Só não consegui relaxar. — minha voz soou baixa, quase abafada pelo movimento ao nosso redor.Ela parou por um momento para ajustar a alça da mochila e me olhou de canto de olho.— Não conseguiu relaxar ou tem alguma coisa te incomodando? — perguntou, insistindo com aquele jeito típico dela. — Ontem você tava tão estranha, até com a mensagem do Nate.Tentei rir, mas o som saiu estranho. Eu sabia que não conseguiria enganar Eve por muito tempo. Ela semp
O RESTANTE DO DIA passou arrastado, como se o tempo estivesse conspirando contra nós. As aulas seguiram uma atrás da outra, drenando nossas energias como vampiros invisíveis sugando qualquer resquício de disposição. Quando finalmente o sinal tocou, anunciando o fim das aulas, eu só queria fugir o alojamento, mas o trabalho da professora Jia nos mantinha presas ali. Agora estávamos na biblioteca, espalhadas em uma mesa no canto mais silencioso. Eu, Eve, Liz e Sammy, tentando colocar alguma ordem na desordem que chamávamos de planejamento. O ambiente ao nosso redor parecia um santuário de conhecimento, com estantes altas que subiam até o teto, abarrotadas de livros que exalavam um cheiro familiar de papel antigo e madeira polida. O som ocasional de passos no chão encerado ou o farfalhar de páginas viradas era tudo que quebrava o silêncio quase reverente. A luz do fim de tarde atravessava as grandes janelas de vidro, criando padrões dançantes nas mesas de estudo. Maggie observava todo
O SOL JÁ ESTAVA começando a se esconder atrás das colinas, tingindo o céu de tons dourados e alaranjados. O vento, suave e fresco, soprava de vez em quando, fazendo as folhas da Acácia Mimosa balançar lentamente. Estava sentada na grama, recostada no tronco da árvore, sentindo o cheiro da terra misturado com o aroma doce das flores amarelas que caíam ao meu redor. O ambiente estava perfeito, tranquilo, como se o tempo tivesse desacelerado para nos deixar aproveitar aquele momento. Ao meu lado, Eve parecia perdida em seus próprios pensamentos, os olhos fixos no horizonte. Seus cabelos escuros estavam soltos, e o vento brincava com eles, o que me fez sorrir. Liam, como sempre, estava tentando animar todo mundo com suas piadas sobre o fim de semana, mas até mesmo ele parecia mais calmo hoje, como se o clima do lugar tivesse tocado a todos nós de alguma forma. Nate, sempre despreocupado, estava esticado na grama, com os braços para trás, apoiado nas mãos, observando as flores amarelas fl
― Angeline... ― uma voz ecoou no fundo da minha mente, arranhando minha consciência. Não! Não! Não! Não! ― ANGELINE! ― chamou-me novamente, mais alto desta vez. Meu corpo balançou como se o chão estivesse se movendo sob meus pés. ― ACORDA! O grito foi como um rompante, e despertei ofegante, como se tivesse sido sugada para fora de outra dimensão. Já era dia. ― Até que enfim. ― Eve exclamou em um sopro de voz, sua expressão um misto de alívio e exasperação. ― Que horas são? ― perguntei, me sentando na cama. Meu coração martelava no peito, enquanto um peso sufocante parecia apertar meus pulmões. ― Com quem você estava sonhando? Freddy Krueger? ― Eve ignorou minha pergunta, sentando-se de frente para mim na cama. Mas meus pensamentos permaneciam enevoados demais para responder. ― Você estava chorando e parecia apavorada. ― ela acrescentou, o tom cauteloso ao notar meu desconforto. ― Foi um pesadelo. ― sussurrei, tentando processar o que acabara de acontecer. Minha voz parecia dist
HAVIA UMA DORMÊNCIA no fundo dos meus olhos. Minhas pálpebras pesavam, teimando em não se abrir, como se fossem as portas de um cofre trancadas por dentro. O som das vozes ao meu redor era abafado, como se viesse de outro cômodo, mas, aos poucos, a nitidez surgia, trazendo palavras entrecortadas à tona. — Eu já disse que passei aqui antes de ir pra sala de aula. — insistia uma voz feminina, impregnada de impaciência. — E mandei ela me esperar no quarto. Não fazia ideia de que ela iria decidir vagar pelo colégio. A segunda voz era mais grave, cortante, como uma lâmina de aço. — Só estou dizendo que era mais fácil tê-la trazido logo, já que ela não estava se sentindo bem. Eu reconhecia os tons familiares, mas a dor surda na cabeça mantinha meu raciocínio arrastado, como uma marcha lenta sobre areia. Meus dedos se mexeram involuntariamente, um sinal do retorno à superfície. — Me compre algumas algemas e eu prometo amarrá-la ao pé da cama. Devolveu a voz feminina, desta vez car