Eve voltou pouco depois do anoitecer e, em poucas palavras, resumiu a visita ao pai. Um homem a quem chamava apenas de Sr. Willians, um tutor de fachada, cuja paternidade ela descrevia mais como um dever social do que um laço genuíno. Era um assunto que ela raramente discutia, como se deixasse os traumas da infância trancados a sete chaves. Tudo que eu sabia é que ele havia enterrado a paternidade junto com a esposa, trocando-a pelo bourbon e os charutos caros, até se casar anos depois com sua sócia, firmando de vez uma barreira afetiva entre ele e Eve.— Ele te obrigou a escolher uma faculdade? Mas... ainda falta um ano e meio para você terminar o colégio — questionei, surpresa.Eu estava sentada ao centro da cama, pernas cruzadas e cabelo úmido, enquanto esperava Eve terminar de se arrumar para irmos ao refeitório. A brisa noturna soprava pela janela aberta, trazendo um frescor sutil ao quarto.— É a maneira dele de garantir que vai continuar mandando na minha vida — respondeu, de de
O corredor estava lotado, como sempre. Alunos passavam apressados, tropeçando uns nos outros, livros escorregando de braços distraídos, risadas e conversas enchendo o espaço como um zumbido constante. Eu seguia em silêncio ao lado da Eve, tentando ignorar o peso crescente nos meus ombros, como se a noite passada ainda estivesse me puxando para trás.— Você não dormiu nada, né? — A voz de Eve cortou o barulho, casual, mas cheia de intenção. — Tá estampado na sua cara.Pisquei algumas vezes, como se isso pudesse mascarar o cansaço.— Só não consegui relaxar. — Minha voz soou baixa, quase abafada pelo movimento ao nosso redor.Eve parou por um momento para ajustar a alça da mochila e me olhou de canto de olho.— Não conseguiu relaxar ou tem alguma coisa te incomodando? — perguntou, insistindo com aquele jeito típico dela. — Ontem você tava tão estranha, até com a mensagem do Nate.Tentei rir, mas o som saiu estranho. Eu sabia que não conseguiria enganar Eve por muito tempo. Ela sempre foi
Inverness, Escócia 1752Uma tempestade descomunal rugia desde o cair da tarde, banhando o mundo em um manto de trevas inquietantes. Nuvens pesadas e densas, de um cinza profundo como o carvão, tomavam o céu, apagando qualquer vestígio de luz. A lua e as estrelas, impotentes, foram obliteradas por essa cortina de desespero. O vento, feroz e inclemente, bradava em uivos que carregavam a essência da fúria, enquanto relâmpagos riscavam o firmamento com uma luz branca e crua, cada clarão como uma lâmina que feria os olhos. Beleza e perigo entrelaçados, anunciando que a noite não pertencia mais aos homens, mas às forças que os superavam.No vilarejo aos pés das Montanhas de Krane, a tempestade não era a única ameaça. Os moradores, encurvados sob o peso da calamidade, enfrentavam algo muito mais antigo e terrível que a ira da natureza. Um terror sombrio, quase inominável, pairava sobre eles como uma maldição, espreitando nos cantos mais profundos de suas mentes e corações.Evangeline cambalea
Parte I "Nada há de oculto que não se torne manifesto, e nada em segredo que seja conhecido e venha a luz do dia.— Evangelho de Lucas 8,17✥Adeus.Indicação de despedida; sinal, palavra, gesto ou acontecimento que assinala a partida de alguém.Uma palavra que carrega um significado tão profundo quanto o amor, a morte e o perdão. Há momentos em que nos preparamos para a partida iminente de alguém, mas e quando a morte nos pega de surpresa? Quando chega sem aviso e nos obriga a aceitá-la, levando aqueles que, por mais mortais que sejam, deveriam ser eternos? Como saber quando estamos finalmente prontos para dizer adeus e retirar a atadura que cobre a ferida em nossos corações? O tempo não cura; ele apenas ameniza a dor, tornando as lembranças mais suaves, embora a tristeza persista, apertando nosso peito até nos sufocar. As lágrimas, então, caem, e a dor se torna mais visível.Já se passaram sete anos desde que comecei a conviver com essa dor profunda e a passar a detestar a data do m
A noite estava agradavelmente fresca após um dia de calor intenso. O céu, salpicado de estrelas prateadas e iluminado pela lua crescente posicionada no centro, conferia um brilho pálido ao colégio, cuja arquitetura vitoriana lembrava um castelo dos filmes de Drácula — visão que sempre me fascinava.Pouco depois da partida de Karyn, Edgar, o segurança, liberou minha passagem pelo portão de ferro. O letreiro "Jardim Prata", forjado em arco no alto das lâminas que coroavam o portão, tornava a instituição ainda mais imponente. Ao longe, pude ver alunos dispersos pelo campus, aproveitando o frescor noturno antes do toque de recolher. Eu sabia que Evelyn estaria entre eles, pois nunca perdia a chance de sentir a liberdade efêmera além das paredes imponentes do colégio.Como esperado, encontrei-a sob a luz amarelada de um poste colonial, sentada de frente para o jardim e de costas para o edifício que nos aprisionava diariamente. Aquele era nosso refúgio favorito, onde podíamos contemplar a be
Meu corpo saltou da cama em um espasmo. O ar voltou aos meus pulmões de forma brusca e dolorida, enquanto meu peito arfava, tentando lidar com a batida frenética do meu coração. A adrenalina pulsava em minhas veias.— Foi só um pesadelo... — pensei, ainda com a mente turva. — Um pesadelo horrível e assustador...Respirei fundo, tentando acalmar o tremor nas mãos. Meus olhos correram pelo quarto, reconhecendo aos poucos os objetos familiares que pareciam, de alguma forma, distantes. O abajur apagado, a janela aberta pela metade, as cortinas afastadas, deixando os raios de sol dourados banharem o ambiente com uma claridade morna. Peguei o celular virado para baixo sobre o criado-mudo e toquei na tela. Oito e quinze da manhã.Um novo dia começava, mas algo ali estava errado.Olhei ao redor do quarto, a desconfiança crescendo como um pressentimento ruim. Minha mente se forçava a entender como e quando eu havia voltado para casa e me deitado ali. Era como tentar ver através de uma neblina e
Na manhã seguinte, acordei com as batidas firmes na porta do quarto, seguidas pela voz impaciente de Kathryn, avisando que eu a faria atrasar para o trabalho. Levantei, ainda sonolenta, e encontrei o café da manhã já pronto sobre a mesa. Sentei em silêncio e encarei a tigela de cereal com leite, o pedaço de torta de maçã e a xícara de café. Uma refeição mecânica, quase sem sabor, feita só para cumprir tabela.Karyn estava na sala, sentada no sofá, escondida atrás do jornal enquanto esperava por mim. Quando terminei, caminhamos até o carro em silêncio, como se cada palavra represada fosse uma ameaça àquela paz superficial. Dentro do carro, a rádio local preenchia o vazio com um locutor animado, falando sobre o calor do dia e a importância do protetor solar. A cada palavra dele, o silêncio entre nós se tornava mais denso. Kathryn dirigia com uma pressa calculada, como se quisesse me deixar logo para trás.Por um momento, pensei que talvez fosse mesmo uma boa ideia nos afastarmos por essa