Como esperado, encontrei-a sob a luz amarelada de um poste colonial, sentada em um banco de frente para o jardim e de costas para o edifício que nos aprisionava diariamente. Aquele era o refúgio dela, onde podia contemplar a beleza do jardim e esquecer, mesmo que momentaneamente, a nossa realidade. Concentrada na tela do laptop Eve parecia alheia a tudo ao redor.
— Estou começando a acreditar que o Liam tem razão. — quebrei seu silêncio particular com um sorriso. — Ele encontrou um rival à altura.
Eve levantou os olhos, que brilharam em ver, e esboçou um sorriso.
— Da última vez que te vi, você estava com o rosto grudado nesse laptop. O que anda escrevendo? Livros adultos às escondidas?
Ela riu, entretida com a pergunta.
— Mesmo que eu até pareça ter talento para escrever essas histórias, não é bem assim. — retrucou, bem-humorada, dando de ombros. — Além do mais, estou só retribuindo o que sinto toda vez que ele me troca por aquele jogo ridículo de futebol de quadra.
Não contive o riso.
— Vingança é um prato que se come frio.
— Ele nem imagina. — Eve cantarolou com um brilho malicioso no olhar.
— Você está falando sério? — perguntei, desconfiada. — Achei que a Maureen fosse à verdadeira mestra da vingança por aqui.
— Pode acreditar que ela é. — garantiu Eve.
Diante da minha curiosidade evidente, Eve girou levemente o laptop em minha direção, oferecendo-me uma visão parcial da tela. Instintivamente, inclinei-me para frente, apoiando as mãos nos joelhos, mas antes mesmo de focar no que estava aberto no computador, meus olhos foram atraídos para algo ao lado dela.
Um livro repousava no banco, a capa de um tom profundo de verde oliva contrastando com o brilho frio da tela do notebook. As letras douradas no título pareciam levemente desgastadas, mas ainda legíveis: Canções de Inocência e Canções de Experiência, de William Blake. O exemplar tinha marcas de uso, as páginas levemente amareladas, e um marcador de tecido vermelho espreitava por entre as folhas, sugerindo que Eve o interrompera em algum ponto recente da leitura. Franzi a testa, uma sensação de familiaridade pairando na minha mente, como um eco distante que eu não conseguia alcançar. O pensamento quase tomou forma, mas desvaneceu antes que eu pudesse agarrá-lo. Deixei a dúvida de lado e voltei meus olhos para a tela. As palavras destacadas na barra de pesquisa — poetas românticos —brilharam sob a luz azulada do monitor, e então, como um estalo, a lembrança veio com força.
Nosso trabalho de literatura.
Como pude esquecer?
— Ah, que droga! — praguejei, levando as mãos à cabeça. — Esqueci totalmente do nosso trabalho! Eve, juro que não foi de propósito...
Ela me olhou com um sorriso compreensivo, fechando levemente o notebook.
— Calma, minha amiga, pois você já está perdoada. — sua voz era tranquila, quase divertida. — Eu sabia que sua cabeça não estava nas melhores condições por causa do aniversário de falecimento dos seus pais.
Soltei um suspiro longo, sentindo o peso daquilo se acomodar sobre meus ombros.
— Se fosse só por isso… — murmurei, endireitando a coluna e passando a mão pelos cabelos. — Minha mente anda fora de órbita há tempos.
Eve ergueu uma sobrancelha e, com um gesto dramático, abriu os braços como se estivesse diante de uma platéia invisível.
— E é por isso que você, Angeline Collins, foi oficialmente recrutada para a nave espacial dos jovens desajustados! — anunciou, imitando a voz de um apresentador de programa de auditório. — Onde nossa próxima parada é o hospício!
Uma risada escapou de mim, leve e sincera.
— Nada reconfortante, devo dizer.
— Bom, essa nem era a intenção. — ela riu, balançando a cabeça, o coque firme no topo nem se mexendo. Então, seu olhar suavizou um pouco. — Mas me conta… como foi a visita?
Sob o olhar convidativo de minha melhor amiga e o clima agradável, decidi me juntar a ela para aproveitar os últimos minutos antes do toque de recolher. De repente, a iluminação do poste oscilou quando eu me sentei ao lado e Eve, e trocamos um olhar rápido antes de ela voltar a me observar com curiosidade descarada.
— Foi difícil, como sempre. — confessei, em tom de segredo. — Voltar lá é como reviver o pior dia da minha vida. Às vezes, acho que nem é saudável continuar fazendo isso.
— Sinto muito. — disse Eve, colocando o laptop de lado. — Não sei se isso ajuda, mas, ao menos, você consegue visitá-los com sua irmã e pode se despedir sempre que puder. Nem todos têm a mesma sorte. — sua voz suavizou, marcada por uma mágoa que tentou disfarçar.
Dei-lhe uma cutucada nas costelas.
— Ei, nada de ficar cabisbaixa, viu? Já basta eu por aqui. — declarei, e seu rosto se iluminou com um sorriso. — Ou vamos acabar chorando aqui.
— Você está certa. — Eve balançou a cabeça, e seus olhos voltaram a sorrir tranquilo como antes. — Essa é a sua semana, então aproveite enquanto pode.
— Muito obrigada. — agradeci com um sorriso crescendo. — Embora, na verdade, não tenho muito que aproveitar. — acrescentei e Eve franziu as sobrancelhas. — Quero dizer, lamentamos o rumo das nossas vidas desde sempre.
— E o que mais podemos fazer neste lugar? — ela suspirou com desgosto. — Eu só vejo meu Desmond uma vez por mês e nem posso chamá-lo de família.
— Mas, em compensação, você tem a mim e a Karyn — afirmei sorrindo suavemente, e vi um brilho inesperado nos olhos dela. Talvez não esperasse ouvir aquilo. — Apesar de que lidar com o humor da minha irmã é como andar sobre um campo minado.
Eve olhou para cima, pensativa.
— Isso é algo com que posso me acostumar. — ela considerou, e rimos juntas. — E me recuso a acreditar que o humor dela seja tão terrível assim. Não pode ser pior que o da inspetora Auclair.
— Cruzes! Nunca mais diga isso. — protestei, franzindo o cenho enquanto Eve ria. — E, para ser justa, ela nem estava tão ranzinza assim.
— Eu sabia que ela não me decepcionaria. — respondeu Eve, erguendo o queixo com fingido orgulho, antes de adotar uma expressão pensativa. — Por que não aproveitou e pediu para ficar em casa? Amanhã já é sábado.
— Eu até tentei, mas você conhece a Karyn... Ela ainda acha que tenho nove anos e me trata como tal. — suspirei, deixando a frustração transparecer na minha voz. — A superproteção dela me impede de ficar sozinha. Então, é melhor ficar aqui com você e minhas outras amigas imaginárias do que ser madura o suficiente para ficar em casa sozinha, como qualquer adolescente normal.
Eve assobiou baixo.
— Não vá dizer que eu exagerei.
— Se quer saber, acho que ela não percebe o quanto a protege. — Eve a defendeu, seus olhos negros expressando sinceridade. — Ela perdeu tudo, e você é a única coisa de valor que lhe restou. Não me espanta que queira te cercar de cuidados.
Suspirei, inflando as bochechas.
— Sabe que tenho razão ou já teria dito tudo isso a ela.
Era verdade.
A proteção de Karyn me sufocava em todos os sentidos, mas eu ainda não tinha coragem de olhar nos olhos dela e dizer a verdade. Não conseguia confessar que sua forma de cuidado não era saudável e que me fazia sentir aprisionada.
Desarmei-me, sentindo a frustração crescer.
— Odeio quando você tem razão.
— E quando não tenho? — rebateu Eve com um sorriso astuto.
— Quer uma lista ou foi pergunta retórica? Porque eu posso começar a listar.
Eve estreitou os olhos para mim.
— Muito engraçada, Angie. Onde aprendeu a ser assim? — um sorriso cínico surgiu nos cantos de seus lábios.
Não pude conter o riso.
— Você é uma peça rara, sério.
Eve estava prestes a se gabar com aquele sorriso convencido quando o som dos alto-falantes ecoou pelo colégio como um alarme de incêndio. A expressão dela mudou num instante, assumindo uma carranca assustadora.
— Sério que já vão nos trancafiar no calabouço? — exclamou, indignada. — ÀS VEZES ESQUEÇO QUE ISSO É UMA PRISÃO DISFARÇADA DE COLÉGIO INTERNO! — gritou para quem quisesse ouvir.
— Continue assim e vão te colocar na solitária. — falei, me levantando.
— Querida, este colégio é a própria solitária. — disse ela, pegando seus pertences. — Nave espacial dos jovens desajustados, lembra?
— Esquecer seria um privilégio.
Caminhamos preguiçosamente em direção à fortaleza do colégio. A construção imponente se erguia a nossa frente, sua fachada de pedra clara desgastada pelo tempo, mas ainda ostentando um ar de grandiosidade. As janelas altas e arqueadas eram adornadas por molduras detalhadas, cada uma contando silenciosamente uma história esculpida há décadas. Pequenas torres pontiagudas coroavam o edifício, conferindo-lhe um charme quase gótico, como se pertencesse à outra época. A entrada principal, marcada por um arco elegante, parecia convidar tanto à admiração quanto ao respeito. Degraus de pedra levavam até a grande porta de madeira maciça que reforçavam a imponência do prédio.
— Que droga! — exclamou Eve, dando um tapa na testa assim que entramos no salão principal.
O salão circular estava movimentado, com alunos em pequenos grupos, conversando distraidamente, ignorando o toque de recolher e aproveitando o frescor da noite. Meu olhar vagava por entre eles, buscando Nate. Uma parte de mim queria surpreendê-lo, ver seu sorriso e sentir seu abraço, que sempre parecia afastar as nuvens pesadas sobre a minha cabeça.
Eve suspirou ao meu lado com uma irritação crescente.
— O que foi, Eve Williams? — arqueei uma sobrancelha. — Desembucha.
— Esqueci de devolver o livro na biblioteca. — ela balançou o volume de capa verde no ar, frustrada. — Passei o dia inteiro carregando isso pra cima e pra baixo para não esquecer, e o que aconteceu? Esqueci! Sou uma tonta, Angie. Pode me dar o Prêmio Nobel da burrice.
— Calma, é só um livro, e não a fórmula mágica da paz mundial — brinquei, ainda espiando a multidão. — Amanhã você pode devolver...
— Não dá! — ela praticamente gritou, chamando a atenção de alguns alunos. — Maggie foi clara, quem não devolver a tempo vai ficar sem reservas por dois meses. Dois meses, Angie!
— Então vamos devolver agora. — sugeri sem pensar, ao ver a aflição dela, ainda que um pouco exagerada.
Eve me lançou um olhar cético, hesitando.
— Você sabe que isso é loucura, não sabe?
Dei de ombros, e Eve suspirou, irritada, imitando meu gesto.
— Há essa hora não deve ter mais ninguém na biblioteca. — ela especulou. — E se a inspetora Auclair estiver patrulhando por lá? Ela sempre está checando cada canto dos corredores para garantir que todo mundo obedeça.
— Vamos torcer que ela esteja bem longe. Além disso, o salão ainda está cheio. — Me coloquei à frente dela, convencida. — Não seremos as únicas a nos arriscar.
— Pensando por esse lado… — Eve hesitou, mordendo o lábio. Respirou fundo e finalmente deu um sorriso, ainda insegura. — Mas, ainda assim, é arriscado, Angie. Se a Auclair nos pegar, é certeza de advertência, e Desmond vai me matar.
Olhei para meus tênis vermelhos, enquanto minha mente trabalhava rapidamente em busca de uma solução. Não podia — e não iria — deixar Eve na mão depois de todo o esforço que ela teve para concluir nosso trabalho sozinha.
Como um lampejo, surgiu uma ideia.
— Então eu vou devolver. — declarei, antes que hesitasse.
— De jeito nenhum! — Eve contestou de imediato. — Não vou te encrencar por causa de um vacilo meu.
— Vacilo nosso. — corrigi, estendendo a mão. — E é o mínimo que posso fazer, já que você fez o trabalho inteiro sozinha.
Eve hesitou, e vi a dúvida passar por seu rosto.
Mas quanto mais tempo ficávamos na indecisão, menos chance teria de devolver o livro sem ser pega. Levantei as sobrancelhas em uma pergunta silenciosa e mexi os dedos, insistindo para que ela me entregasse o livro.
Com um suspiro resignado, ela cedeu, colocando o livro em minha mão.
— Mas não demora...
Antes que terminasse, já estava me movendo.
— Não vou! — garanti, acelerando o passo pelo corredor.
O corredor n°04 estava vazio e silencioso, bem diferente do que eu imaginava. Com o coração acelerado, começava a duvidar se havia sido uma boa ideia convencer Eve a me deixar fazer isso. Ainda que eu tivesse uma desculpa pronta — a justificativa de que devolvia o livro tão tarde por estar ausente o dia todo — o risco era imenso. Eu precisava contar com a sorte de encontrar Maggie na biblioteca e torcer para que ninguém mais aparecesse.
Continuei pelo corredor, que parecia se estender eternamente, e virei à direita, avistando a porta dupla da biblioteca fechada. Todas as outras portas das salas de aula estavam fechadas e com as luzes apagadas, deixando o caminho deserto e silencioso. A vontade de sair dali o mais rápido possível batia forte, mas, como de costume, ignorei meu instinto de recuo e segui adiante até alcançar as portas da biblioteca. Espiei pela pequena janela de vidro; Maggie não estava à vista.
Suspirei, sentindo a confiança escorrer pelos dedos.
— Droga, Angeline... — murmurei para mim mesma.
Abandonar o livro agora não era uma opção. Olhei para a maçaneta, depois para o livro, enquanto um pensamento arriscado surgia em minha mente.
— Você já está aqui, não é mesmo? — murmurei outra vez como se isso pudesse me encorajar. Com um suspiro praticamente imperceptível, girei a maçaneta devagar.
A porta soltou um leve rangido que ecoou pelo corredor vazio. Meu coração parecia estar pulando na garganta, e eu mal ousava respirar. Entrei num impulso, fechando a porta atrás de mim. A biblioteca estava mergulhada na penumbra, iluminada apenas pela luz suave do luar que entrava pelas janelas no andar superior. As sombras projetavam-se pelo ambiente, e eu sentia como se algo me observasse, escondido atrás das estantes silenciosas.
Aproximei-me da mesa onde Maggie geralmente ficava, guiada pela luz pálida da lua que iluminava a cadeira vazia. Havia pilhas de livros e papéis espalhados. Coloquei o livro sobre os outros, esperando que ela o notasse na manhã seguinte. Vasculhei rapidamente os papéis, tentando encontrar a ficha de reservas. Havia de tudo ali: listas de entrada e saída de livros, requisições... encomendas para o próximo semestre e até uma receita de muffins. O nervosismo me fez soltar um suspiro trêmulo, e comecei a cogitar a ideia de deixar o livro e sair dali o quanto antes. Mas, antes que pudesse me decidir, vi uma folha caída ao chão. Agachei-me para pegar a mais próxima e, enquanto meus olhos escaneavam o título “Financiamentos Futuros,” minha atenção foi capturada por um movimento rápido em minha visão periférica.
Franzi a testa, olhando para o corredor das estantes escuras. Perto do chão, alguns livros estavam fora de lugar, caídos de forma descuidada. Algo ali parecia errado. Tirei meu celular do bolso e liguei a lanterna, movendo-me devagar na direção das estantes. A escuridão parecia absorver o feixe de luz e me engolir a qualquer instante. O medo se fez presente, como se eu estivesse prestes a descobrir algo que deveria permanecer oculto.
Mais livros espalhados. Passei pela terceira estante na seção de ciências, logo abaixo da escada de ferro que levava ao segundo andar, e então parei. Na penumbra, algo rubro manchava a madeira da estante, deslizando como se alguém tivesse apoiado uma mão ensanguentada ali para se equilibrar.
A visão me paralisou. Meu coração acelerou como um tambor ensurdecedor, e cada fibra do meu corpo gritou para sair dali. Desobedeci, avançando mais dois passos e levantei a lanterna. A luz revelou uma figura encurvada ao final do corredor.
Maggie.
Ela estava sentada no chão, a cabeça caída para frente, os cabelos loiros, quase brancos, cobrindo o rosto. Uma quantidade absurda de sangue manchava seu pescoço e braços e seu vestido azul, formando uma poça crescente ao seu redor. Livros encharcados de vermelho pareciam abandonados ao seu lado, talvez usados em uma tentativa desesperada de se defender.
Um grito horrendo escapou de mim, cortando o silêncio pesado da biblioteca, antes que eu pudesse abafar o som com a mão. O cheiro metálico do sangue misturava-se ao odor familiar dos livros, e o horror de ver o corpo de Maggie me deixou entorpecida. A consciência de que o assassino poderia estar ali, escondido nas sombras, preencheu minha mente com um pânico aterrador.
FUJA, ANGELINE! minha mente gritava.
AGORA!
Com um esforço supremo, forcei minhas pernas a se moverem. Mas, antes que eu pudesse dar um passo, senti algo gelado segurar meus tornozelos. Um arrepio congelante percorreu minha espinha. Olhei para baixo, amedrontada, e encontrei o olhar de Maggie — seus olhos completamente negros e inumanos.
— Você jamais despertará Griever. — a sua voz ecoou em minha mente, vazia e sombria. Senti meu corpo colapsar, um choque de dor ao atingir o chão, enquanto Maggie me puxava para a escuridão.
MEU CORPO SALTOU da cama em um espasmo. O ar voltou aos meus pulmões de forma brusca e dolorida, enquanto meu peito arfava, tentando lidar com a batida frenética do meu coração. A adrenalina pulsava em minhas veias. Respirei fundo, tentando acalmar o tremor nas mãos.— Foi só um pesadelo... — pensei, ainda com a mente turva. — Um pesadelo horrível e assustador...Meus olhos correram pelo quarto, reconhecendo aos poucos os objetos familiares que pareciam, de alguma forma, distantes. O abajur apagado, a janela aberta pela metade, às cortinas afastadas, deixando os raios de sol dourados banharem o ambiente com uma claridade morna. Peguei o celular virado para baixo sobre o criado-mudo e toquei na tela. Oito e quinze da manhã.Um novo dia começava, mas algo ali estava errado.Olhei ao redor do quarto, a desconfiança crescendo como um pressentimento ruim. Minha mente se forçava a entender como e quando eu havia voltado para casa e me deitado ali. Era como tentar ver através de uma neblina e
NA MANHÃ SEGUINTE, acordei com as batidas firmes na porta do quarto, seguidas pela voz impaciente de Karyn, avisando que eu a faria atrasar para o trabalho. Levantei, ainda sonolenta, e encontrei o café da manhã já pronto sobre a mesa. Sentei em silêncio e encarei a tigela de cereal com leite, o pedaço de torta de maçã e a xícara de café. Uma refeição mecânica, quase sem sabor, feita só para cumprir tabela.Karyn estava na sala, sentada no sofá, escondida atrás do jornal enquanto esperava por mim. Quando terminei, caminhamos até o carro em silêncio, como se cada palavra represada fosse uma ameaça àquela paz superficial. Dentro do carro, a rádio local preenchia o vazio com um locutor animado, falando sobre o calor do dia e a importância do protetor solar. A cada palavra dele, o silêncio entre nós se tornava mais denso. Karyn dirigia com uma pressa calculada, como se quisesse me deixar logo para trás.Por um momento, pensei que talvez fosse mesmo uma boa ideia nos afastarmos por essa sem
EU AVISTEI AS portas da biblioteca pelo corredor, mas meus pés se recusaram a avançar. O peso do livro em minhas mãos parecia dobrar, como se, de repente, ele carregasse algo muito maior do que simples páginas encadernadas. Meu peito apertou, e uma sensação gelada percorreu minha espinha quando dei mais um passo hesitante.Então, o pesadelo veio.Não como uma lembrança distante, mas como se estivesse acontecendo ali, naquele exato momento. A escuridão opressora, os sussurros indistintos, a sensação sufocante de estar sendo observada. Meus dedos se fecharam com mais força ao redor do livro, como se ele pudesse me ancorar na realidade, mas era inútil. O chão sob meus pés pareceu se dissolver, e o som ao meu redor se tornaram um zumbido distante.Respirei fundo, tentando me concentrar no presente. Era só um sonho. Só um sonho. Mas meu corpo não parecia convencido disso.Dei um passo para trás, depois outro. A biblioteca continuava ali, imóvel, inofensiva. E, ainda assim, não consegui atra
EVE VOLTOU POUCO depois do anoitecer e, em poucas palavras, resumiu a visita ao pai. Um homem a quem chamava apenas de Sr. Willians, um tutor de fachada, cuja paternidade ela descrevia mais como um dever social do que um laço genuíno. Era um assunto que ela raramente discutia, como se deixasse os traumas da infância trancados a sete chaves. Tudo que eu sabia é que ele havia enterrado a paternidade junto com a esposa, trocando-a pelo Bourbon e os charutos caros, até se casar anos depois com sua sócia, firmando de vez uma barreira afetiva entre ele e Eve.— Ele te obrigou a escolher uma faculdade? — observei, surpresa. — Mas... ainda falta um ano e meio para você terminar o colégio.Eu estava sentada ao centro da cama, pernas cruzadas e cabelo úmido, enquanto esperava Eve terminar de se arrumar para irmos ao refeitório. A brisa noturna soprava pela janela aberta, trazendo um frescor sutil ao quarto.— É a maneira dele de garantir que vai continuar mandando na minha vida — ela respondeu,
O CORREDOR ESTAVA lotado, como sempre. Alunos passavam apressados, tropeçando uns nos outros, livros escorregando de braços distraídos, risadas e conversas enchendo o espaço como um zumbido constante. Eu seguia em silêncio ao lado da Eve, tentando ignorar o peso crescente nos meus ombros, como se a noite passada ainda estivesse me puxando para trás.— Você não dormiu nada, né? — a voz de Eve cortou o barulho, descontraída, mas cheia de intenção. — Tá estampado na sua cara.Pisquei algumas vezes, como se isso pudesse mascarar o cansaço.— Só não consegui relaxar. — minha voz soou baixa, quase abafada pelo movimento ao nosso redor.Ela parou por um momento para ajustar a alça da mochila e me olhou de canto de olho.— Não conseguiu relaxar ou tem alguma coisa te incomodando? — perguntou, insistindo com aquele jeito típico dela. — Ontem você tava tão estranha, até com a mensagem do Nate.Tentei rir, mas o som saiu estranho. Eu sabia que não conseguiria enganar Eve por muito tempo. Ela semp
O RESTANTE DO DIA passou arrastado, como se o tempo estivesse conspirando contra nós. As aulas seguiram uma atrás da outra, drenando nossas energias como vampiros invisíveis sugando qualquer resquício de disposição. Quando finalmente o sinal tocou, anunciando o fim das aulas, eu só queria fugir o alojamento, mas o trabalho da professora Jia nos mantinha presas ali. Agora estávamos na biblioteca, espalhadas em uma mesa no canto mais silencioso. Eu, Eve, Liz e Sammy, tentando colocar alguma ordem na desordem que chamávamos de planejamento. O ambiente ao nosso redor parecia um santuário de conhecimento, com estantes altas que subiam até o teto, abarrotadas de livros que exalavam um cheiro familiar de papel antigo e madeira polida. O som ocasional de passos no chão encerado ou o farfalhar de páginas viradas era tudo que quebrava o silêncio quase reverente. A luz do fim de tarde atravessava as grandes janelas de vidro, criando padrões dançantes nas mesas de estudo. Maggie observava todo
O SOL JÁ ESTAVA começando a se esconder atrás das colinas, tingindo o céu de tons dourados e alaranjados. O vento, suave e fresco, soprava de vez em quando, fazendo as folhas da Acácia Mimosa balançar lentamente. Estava sentada na grama, recostada no tronco da árvore, sentindo o cheiro da terra misturado com o aroma doce das flores amarelas que caíam ao meu redor. O ambiente estava perfeito, tranquilo, como se o tempo tivesse desacelerado para nos deixar aproveitar aquele momento. Ao meu lado, Eve parecia perdida em seus próprios pensamentos, os olhos fixos no horizonte. Seus cabelos escuros estavam soltos, e o vento brincava com eles, o que me fez sorrir. Liam, como sempre, estava tentando animar todo mundo com suas piadas sobre o fim de semana, mas até mesmo ele parecia mais calmo hoje, como se o clima do lugar tivesse tocado a todos nós de alguma forma. Nate, sempre despreocupado, estava esticado na grama, com os braços para trás, apoiado nas mãos, observando as flores amarelas fl
― Angeline... ― uma voz ecoou no fundo da minha mente, arranhando minha consciência. Não! Não! Não! Não! ― ANGELINE! ― chamou-me novamente, mais alto desta vez. Meu corpo balançou como se o chão estivesse se movendo sob meus pés. ― ACORDA! O grito foi como um rompante, e despertei ofegante, como se tivesse sido sugada para fora de outra dimensão. Já era dia. ― Até que enfim. ― Eve exclamou em um sopro de voz, sua expressão um misto de alívio e exasperação. ― Que horas são? ― perguntei, me sentando na cama. Meu coração martelava no peito, enquanto um peso sufocante parecia apertar meus pulmões. ― Com quem você estava sonhando? Freddy Krueger? ― Eve ignorou minha pergunta, sentando-se de frente para mim na cama. Mas meus pensamentos permaneciam enevoados demais para responder. ― Você estava chorando e parecia apavorada. ― ela acrescentou, o tom cauteloso ao notar meu desconforto. ― Foi um pesadelo. ― sussurrei, tentando processar o que acabara de acontecer. Minha voz parecia dist