Parte I - Segredos Revelados
"Nada há de oculto que não se torne manifesto, e nada em segredo que seja conhecido e venha a luz do dia.
— Evangelho de Lucas 8,17
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Adeus.
Indicação de despedida; sinal, palavra, gesto ou acontecimento que assinala a partida de alguém.
Uma palavra que carrega um significado tão profundo quanto o amor, a morte e o perdão. Há momentos em que nos preparamos para a partida iminente de alguém, mas e quando a morte nos pega de surpresa? Quando chega sem aviso e nos obriga a aceitá-la, levando aqueles que, por mais mortais que sejam, deveriam ser eternos? Como saber quando estamos finalmente prontos para dizer adeus e retirar a atadura que cobre a ferida em nossos corações? O tempo não cura; ele apenas ameniza a dor, tornando as lembranças mais suaves, embora a tristeza persista, apertando nosso peito até nos sufocar. As lágrimas, então, caem, e a dor se torna mais visível.
Já se passaram sete anos desde que comecei a conviver com essa dor profunda e a passar a detestar a data do meu aniversário. Sete anos em que minha vida deu uma volta de trezentos e sessenta graus, e uma nova realidade se estabeleceu — uma realidade onde a saudade e o luto são companheiros constantes. O sorriso por trás da tristeza se tornou uma rotina, e agora, o lugar mais próximo que encontro de meus pais é diante de seus túmulos.
Meu olhar percorreu as gravuras nas duas lápides. Ler os nomes de Anthony e Lillian Collins em cada uma delas era uma realidade difícil de aceitar, especialmente toda vez que me encontrava ali, na data das mortes, três dias antes do meu aniversário. As lágrimas estavam presas na minha garganta, e eu ainda não ousava deixá-las cair. Queria ser forte, permanecer forte, como Karyn parecia ser.
Pelo menos, ela demonstrava ser...
Por minha causa...
Ela sempre sofreu em silêncio.
Na primeira semana após o sepultamento, minha irmã passou a agir como se a tragédia que havia devastado nossas vidas fosse algo enterrado junto com nossos pais. Eu me perguntava: Por que ela não estava mais triste? Por que não chorava mais pela perda deles? Será que a dor que eu sentia era algo só meu? Ou ela não os amava o suficiente para continuar em luto?
Essa indiferença me incomodava a tal ponto que, numa noite qualquer, decidi confrontá-la.
Com toda a autoridade que acreditava ter, tomei coragem para acusá-la de estar varrendo o luto para debaixo do tapete, seguindo em frente como se nada tivesse acontecido. Mas foi através da porta entreaberta do seu quarto que minha coragem desmoronou. Vi Karyn, sozinha, chorando silenciosamente na madrugada. Ela estava deitada na cama, em posição fetal, com o rosto escondido pelos cabelos longos. No silêncio da noite, o pranto de Karyn era o único som, abafado pela penumbra que a cercava, como se ela estivesse escondida do mundo... e de mim.
Ela se isolava todas as noites para lamentar nossa perda, enquanto, de algum modo, cuidava de mim. Nunca falei sobre aquela noite, nem de tantas outras em que a vi chorar. Nunca tive coragem de contar a verdade, mesmo quando ela tentava se mostrar inabalável. Uma parte de mim sempre acreditou que, com o tempo, ela se abriria, mas os anos passaram, e com o afastamento inevitável, ela construiu uma fortaleza em torno de si, escondendo todos os sentimentos que a tornariam vulnerável. Eu sabia que essa fortaleza precisava cair. O luto que ela guardava, há tanto tempo reprimido, precisava ser exposto. Eu não era mais a criança que precisava ser protegida; estava pronta para oferecer o mesmo apoio que ela sempre me deu.
Olhei para ela com atenção. Karyn encarava o espaço vazio entre as lápides, o semblante sério, como o de alguém que travava uma batalha interior, buscando respostas que sabia que jamais encontraria. Não havia expressão alguma em seu rosto; suas mãos estavam cerradas em punho e sequer relaxavam. O suor escorria de sua testa, e alguns fios de cabelo grudavam na pele úmida. Já fazia um bom tempo que estávamos ali, imersos em um silêncio desolador, enquanto as lembranças preenchiam nossas mentes.
Uma após a outra.
Como era de costume, levamos um buquê de gardênias para nossa mãe, suas flores favoritas. Também trouxemos uma garrafa de uísque para nosso pai, e brindamos na única ocasião em que ela me deixou beber depois dos dezesseis. O belo líquido âmbar de Old Parr foi derramado sobre o túmulo, o uísque que ele tanto apreciava. Se eu fechasse os olhos agora, poderia vê-lo sentado em sua poltrona reclinável, com as pernas esticadas sobre a mesinha de centro, em uma postura relaxada, saboreando o drink antes do jantar.
A lembrança trouxe um sorriso involuntário aos meus lábios.
— Vamos embora. — Karyn disse, a voz rouca pela falta de uso, seus olhos fixos nas lápides. — Ainda tenho que te deixar no colégio.
— Ou podemos voltar pra casa. — sugeri, tentando manter um tom descontraído. — Não me importaria de passar o resto do dia comendo pipoca e assistindo filmes.
Claro que não estava realmente pensando nisso.
Karyn colocou as mãos na cintura e, com um suspiro, ponderou sobre minhas palavras. Seus ombros estavam levemente curvados, o rosto marcado pela exaustão, e as pálpebras um pouco pesadas.
Ela estava mais cansada do que tentava mostrar.
— Não seria uma má ideia... se eu não tivesse que trabalhar hoje.
— Posso esperar você voltar.
Karyn levantou as sobrancelhas, surpresa.
— Só vou voltar amanhã de manhã. — Ela suspirou. — Estou cobrindo os turnos da Anna até o filho dela receber alta do hospital.
— Ele ainda está internado?
Karyn assentiu com a cabeça.
— Pelo que disseram, o Christopher vai continuar em observação até saírem os resultados de um novo exame. — Ela explicou com calma. — Mas o lado bom é que, com o dinheiro extra, posso quitar a dívida do carro e ainda comprar um presente decente pra você.
— Isso é o que menos me importa. — Respondi, com um sorriso forçado. — Não sou mais criança, sei bem como andam nossas finanças.
Karyn esboçou um sorriso, embora ele tenha durado apenas um instante.
— Você está bem crescidinha mesmo. — Karyn comentou, juntando nossos ombros e comparando nosso tamanho. — Já está quase da minha altura. Mas isso não significa que você precise ficar sozinha à noite inteira por minha causa. — Ela sentenciou com um tom suave, evitando o meu olhar. — Pelo menos no colégio você tem a companhia da Evelyn e dos seus amigos.
Havia uma preocupação velada nas palavras dela, algo que ela tentou esconder. Suspirei, compreendendo que, mais uma vez, minha irmã evitava me deixar sozinha. Eu sabia que ela não me daria a chance de argumentar, especialmente hoje, em meio ao luto renovado pela lembrança dos nossos pais.
Não que eu tivesse muito espaço para escolha.
— Como você quiser... — foi tudo o que consegui dizer.
Karyn respirou fundo, aliviada, e limpou o suor da testa. O silêncio desconfortante se espalhou ao nosso redor, denso como uma nuvem escura. Eu não queria que brigássemos, muito menos tornar o momento ainda mais tenso, então, como sempre, cedi à sua vontade, que mais parecia uma ordem disfarçada. A atenção de Karyn se desviou para o gramado ao redor dos túmulos. O abandono do local, mais evidente a cada ano, estava claro em seu olhar.
— Preciso falar com o coveiro desse lugar. Não posso aceitar tanto descaso. — Ela resmungou, lançando um olhar severo ao nosso redor. — Isso é uma falta de respeito com eles. Você pode esperar no carro, se quiser, não vou demorar. — Karyn me entregou a chave do carro antes de seguir, passos rápidos e impacientes, pelo caminho pavimentado. Sem dizer nada, fiquei ali, observando-a se afastar, até desaparecer na curva pequena, entre os arbustos.
Suspirei, sentindo o peso da dor apertar meu peito. Meu olhar, sombrio, se fixou nas lápides à minha frente. Ajoelhei com cuidado, sentindo as pedrinhas pequenas pressionando meus joelhos.
— Eu preciso que vocês me ajudem com a Karyn. — A voz saiu quase inaudível, as palavras pesando como pedras na garganta. — Não é que ela esteja fazendo algo errado... é que eu... — Respirei fundo, lutando contra o nó na garganta. — Estou preocupada. O humor dela tem sido tão... diferente, desde que vocês se foram. E eu... — Um soluço escapou, seguido de lágrimas que insistiam em brotar. — Acho que ela ainda não conseguiu seguir em frente. O que eu faço? — A pergunta saiu sufocada, o choro ameaçando me dominar.
Eu sabia que não haveria resposta. Não importava o quanto esperasse.
Fechei os olhos, deixando as lágrimas descerem, não me importando em mostrar a dor que ainda me consumia. Permitir-me chorar naquele momento parecia ser a única maneira de seguir em frente. O silêncio, tão familiar em minha vida, envolvia tudo ao meu redor. Absorvia cada fragmento de dor e de paz que aquele instante me oferecia. A brisa suave da tarde tocou minha pele quente, aliviando o desconforto que eu sentia. De alguma forma, aquele vento, tão gentil e refrescante, parecia uma resposta silenciosa dos meus pais — um lembrete de que, mesmo distantes, eu não estava sozinha.
Respirei profundamente, passando os dedos pela grama amassada sob meus joelhos.
A deterioração ao nosso redor era impossível de ignorar. Embora as lápides de mármore cinza ainda estivessem em perfeito estado, a negligência do cemitério parecia se expandir ao redor delas. O nome deles, entalhado com perfeição, contrastava com o estado de abandono do lugar. Eu me concentrei nas datas e números, um amargo sentimento de inconformidade me invadindo. Oito anos haviam passado tão rapidamente que, naquele instante, eu quase podia acreditar que estava ali pela primeira vez, ainda tentando aceitar a nova realidade que a vida impôs a mim.
— Logo faço dezessete anos... — Eu disse, sem entusiasmo, a voz baixa. — Se alguém me oferecesse um desejo, eu pediria para voltar àquela noite... e mudar tudo.
Meus olhos se encheram novamente de lágrimas, e o peso da dor apertou meu peito. O luto, afinal, era algo que eu não podia controlar. Era diferente de apenas vivê-lo, era ter que enfrentá-lo constantemente, imaginar como nossas vidas seriam se a morte não tivesse nos arrancado tudo tão cedo. Minha vida teria sido outra, e Karyn teria sorrido mais. Não haveria esse peso constante que carregamos, dia após dia.
O vento bagunçou meus cabelos, empurrando-os para o rosto, enquanto as folhas das árvores ao redor do cemitério dançavam ao ritmo da brisa. Fechei os olhos, aproveitando o frescor súbito. O farfalhar das folhas era reconfortante, como uma melodia suave, quase como um sussurro.
— Não se pode alterar o passado. — Uma voz doce, mas firme, me pegou de surpresa.
Meu coração deu um salto. Levantei rapidamente, o medo pulsando nas veias.
A poucos passos de mim, uma menina observava os túmulos. Seu rosto, tão pálido quanto porcelana, estava marcado por um cenho franzido, um traço de preocupação inusitado para alguém tão jovem — ela não devia ter mais que oito ou nove anos. Usava um vestido branco de saia godê, uma fita vermelha na cintura e sapatilhas vermelhas que combinavam com as meias brancas até os tornozelos. Seus cabelos lisos e negros caíam suavemente por suas costas, enquanto uma franja cobria sua testa.
— O que você disse? — Perguntei, a voz mais suave do que pretendia, tentando disfarçar o desconcerto.
— O que está feito, está feito. — Ela virou lentamente a cabeça, os olhos negros fixos em mim, tão pequenos e impassíveis que causaram um arrepio na minha espinha. — Os males estão chegando, e você esteve dormindo todo esse tempo, Angeline. — Sua voz, apesar da infância, carregava uma certeza assustadora, como se soubesse exatamente do que estava falando.
A confusão tomou conta de mim.
Como ela sabia meu nome?
— Está na hora de despertar. — Ela disse, mais uma vez sem hesitar.
Aquelas palavras mexeram comigo, como se um ninho de aranhas subisse pela minha pele. Um calafrio gelado desceu pela minha garganta, engolindo o ar que faltava em meus pulmões. Eu não conseguia ler a expressão dela, nem compreender o que estava acontecendo, e a sensação de desorientação aumentava a cada segundo.
— Do que você está falando? — Forcei a voz a sair, embora tremesse.
A menina estendeu a mão esquerda, com os dedos finos e magros. No seu pulso, havia um sinal de nascença quase imperceptível, um desenho que se curvava em linhas fluidas, formando um laço que não tinha fim. O símbolo... era familiar.
O símbolo do infinito.
Meu estômago se revirou. Relutante, estendi a mão para tocá-la. Quando a minha pele tocou a dela, uma força inesperada me agarrou. Seus dedos, firmes como metal, me prenderam com uma força incomum para alguém tão pequeno.
— O que você está fazendo? — Tentei puxar meu braço, mas sua mão não cedeu. — ME SOLTE! — Gritei, o pânico crescendo em mim. O céu, que antes estava claro, escureceu de repente. Nuvens pesadas se formaram rapidamente, e uma tempestade parecia iminente. O vento tempestuoso se misturava com vozes que ecoavam na minha cabeça. Gritos torturantes e agudos, como se o inferno estivesse sendo projetado diretamente na minha mente. Mas em vez de calor, tudo o que eu sentia era um frio cortante, profundo.
— Encontre suas raízes, Angeline Griever. — A menina disse, sua voz agora decidida, inabalável. — Está na hora de você despertar. — Ela repetiu, com um olhar firme que não vacilava.
Todo o meu corpo ficou rígido, como a corda de um arco prestes a lançar sua flecha. Um calafrio percorreu minha espinha e uma dor aguda surgiu no meu antebraço, como se algo estivesse queimando sob a minha pele. O que estava acontecendo? Minha mente disparou, o coração acelerando em um frenesi de medo. Eu estava desesperada o suficiente para desejar que tudo aquilo fosse um pesadelo, que desaparecesse com o simples movimento de fechar os olhos.
Com um esforço, puxei meu braço de volta, o aperto da criança ainda persistente. Quando finalmente me soltei, meus olhos se abriram, cegados pela luz do sol que retornava.
Instintivamente, fechei os olhos, abafando a dor que ainda queimava em mim. Minhas mãos estavam suadas, trêmulas, e eu senti o calor implacável que ainda dominava o ar ao redor. O céu, agora laranja e tingido de um crepúsculo suave, ainda não oferecia alívio. A sensação de calor persistia, mas, ao mesmo tempo, algo sombrio parecia me envolver.
Respirei fundo, tentando recompor meus pensamentos. O que aconteceu?
"Era como se eu tivesse despertado de um transe..." — pensei, balbuciando para mim mesma.
— Você quer ajuda para andar? — A voz de Karyn me tirou da minha espiral de pensamentos. Seus olhos me encaravam com uma preocupação que eu raramente via nela. — Se for desmaiar, é melhor avisar...
— Eu estou bem, Karyn, não se preocupe. — Interrompi-a, apressando o passo para alcançá-la. A sensação de que algo poderia surgir a qualquer momento me fazia olhar para todos os lados, sempre em alerta.
O céu começava a escurecer com as primeiras estrelas surgindo, e os portões do cemitério pareciam se aproximar mais a cada passo. Pela primeira vez, desde que essas visitas se tornaram parte de nossa rotina, eu me sentia aliviada por finalmente deixar aquele lugar para trás. Mesmo com o que havia acontecido ainda borbulhando em minha mente, eu desejava que tudo aquilo fosse apenas um pesadelo, algo que logo iria se dissipar.
— Conseguiu falar com o coveiro? — Perguntei, tentando afastar as imagens da menina e do sussurro no vento.
Karyn assentiu, mas havia algo em seu olhar que não me passou despercebido.
— Fizemos um acordo. Ele vai cortar a grama ao redor dos túmulos e plantar algumas mudas para manter o lugar mais bonito.
— Algo me diz que ele não aceitou de bom grado... O que você fez? Ameaçou enterrá-lo vivo? — Perguntei, com um sorriso travesso, curiosa sobre o que teria sido dito.
— Não vou negar que isso passou pela minha cabeça. — Ela respondeu, esboçando um sorriso discreto, mas não pude deixar de perceber a preocupação ainda visível em sua testa. — Ele cobrou uma quantia mais alta do que imaginei, mas vou dar um jeito.
— Manter esse lugar não vai ser nada fácil, vai? — Falei mais suavemente, como se temesse ofendê-la. — Se tivéssemos um pouco mais de dinheiro...
— Eu vou dar um jeito. — Karyn falou com firmeza, não me deixando continuar a frase.
Balancei a cabeça, sem dizer nada. Seria inútil contrariá-la. Karyn nunca aceitava ajuda. Ela preferia carregar o mundo nas costas do que admitir que não dava conta de tudo sozinha. Eu queria ajudar, mas ela se recusava a permitir.
— Estou pensando em pedir para transformar minhas horas extras em horário fixo, sabe? — Karyn disse, interrompendo meus pensamentos.
Ela parou no meio do caminho, e eu a encarei, surpresa com o que ela sugeria. Karyn tinha uma expressão séria, mais forte do que o habitual. Seus olhos cinzentos estavam tão implacáveis quanto o céu acima de nós.
— Você não pode estar falando sério. — Minha voz saiu mais dura do que eu pretendia. — Já parou para pensar o quanto está se sacrificando pelo trabalho? Você passa a maior parte do seu tempo naquela m*****a cafeteria, esquecendo de si mesma. — Cruzei os braços, com um nó se formando na garganta. — Eu sei que as coisas estão difíceis, mas não vai adiantar nada se você se matar de trabalhar, Karyn.
— Em primeiro lugar, não exagere. — Karyn riu, mas seus olhos estavam tensos. — E em segundo lugar, se eu morrer, pelo menos você não vai precisar se preocupar com as dívidas.
Quase senti a necessidade de rir na cara dela
— Em compensação, vou herdar as dívidas do seu funeral. — Respondi com mais amargor do que eu gostaria. — Não vejo muita diferença.
— Já pode me enterrar aqui se quiser. — Karyn retrucou, arqueando uma sobrancelha desafiadora, provocando-me como sempre.
Eu queria rir, mas, de alguma forma, suas palavras me atingiram de forma mais profunda do que eu esperava. Esforcei-me para manter o controle.
— Não teve a menor graça. — Respondi, tentando disfarçar o que sentia.
— Claro que teve. — Ela respondeu com um sorriso travesso. — Você é que não sabe interpretar a piada.
— Deve ser porque esse seu lado piadista só aparece uma vez por ano.
— Haha! Isso sim não teve graça nenhuma. — Ela riu, mas o alívio na sua expressão foi breve.
Os seus olhos semicerraram em mim, e ficamos paradas, olhando uma para a outra. A situação parecia quase cômica, dado o confronto silencioso de nossas posturas. Eu, com os braços cruzados, e ela, com as mãos na cintura, como se estivéssemos prontas para defender nossos argumentos em um duelo de olhares. Karyn foi a primeira a ceder, soltando um sorriso que ameaçou sair de seus lábios, e o mesmo aconteceu com os meus. Quando sorria, mesmo cansada, o rosto dela se iluminava, um reflexo da nossa mãe. Os cabelos pretos e lisos, os olhos incisivos e os lábios rosados, tão parecidos com os de nossa mãe, a tornavam uma versão moderna e irreverente daquela imagem doce. Mas sua personalidade era completamente diferente. Karyn era mais tempestade do que calma, um tipo de força que ninguém ousaria desafiar.
Com a tensão desfeita, voltamos a caminhar, os portões do cemitério logo à frente. Karyn limpou o suor da testa e xingou o calor com palavras ásperas, como se pudesse fazê-lo desaparecer. Ri consigo mesma, mas o formigamento em meu pulso fez meu sorriso desaparecer. O sinal de nascença queimava, um incômodo que eu não conseguia ignorar. Apertei a mão em punho, desejando que aquilo fosse apenas uma lembrança do calor e não algo mais... algo de outro lugar.
— Odeio o verão. — Karyn resmungou, sem perceber o quanto eu estava absorta.
— Eu gosto. — Respondi, forçando o tom de leveza. — Praias, sorvetes, passeios ao ar livre.
Karyn revirou os olhos e acelerou o passo ao ver seu Chevy Cavalier estacionado do lado de fora. Segui atrás, mantendo o ritmo para não me distanciar.
— O que foi? Tem medo de esbarrar com algum fantasma por aqui? — Ela me olhou com a testa franzida.
— Você acredita em fantasmas? — Perguntei sem pensar, o frio repentino subindo pela espinha.
Karyn riu, uma risada seca e rápida.
— Claro que não. E você? Acredita nessas coisas?
A pergunta fez meu estômago revirar. O calafrio ainda não tinha ido embora.
— Eu... não sei. Acho que não. — Falei, tentando afastar a sensação estranha que ainda pairava sobre mim, mas as palavras pareciam um eco do que havia sentido no cemitério. — Mas acreditar ou não, não significa que não existam.
Karyn olhou para mim, agora mais intrigada do que antes.
— Pode até ser... — Ela refletiu. — Mas o mundo já é cheio de coisas ruins. Fantasmas são só mais uma história pra assustar as pessoas.
Eu a observei, pensativa. A frase dela parecia mais pesada do que um simples comentário sobre o calor ou os fantasmas. Algo nela parecia... distante. Como se, por um momento, ela também estivesse pensando em algo além da nossa conversa. O pensamento de Karyn, sempre tão focado, agora parecia vagar por um espaço escuro e desconfortável.
— Você não acha que foi um pouco... reflexiva? — Perguntei, buscando alguma resposta para o olhar dela, que agora parecia perdido em algum lugar distante.
Karyn deu de ombros, mas havia algo em seu gesto que me deixou inquieta.
— É... talvez... — Ela respondeu, a voz baixa, quase como se estivesse falando mais para si mesma do que para mim.
A conversa parecia terminar ali, mas o vazio que ficou no ar não me deixou em paz. Algo estava prestes a acontecer. E, embora eu tentasse não pensar nisso, uma sensação estranha começava a tomar conta de mim novamente.
A noite estava agradavelmente fresca após um dia de calor intenso. O céu, salpicado de estrelas prateadas e iluminado pela lua crescente posicionada no centro, conferia um brilho pálido ao colégio, cuja arquitetura vitoriana lembrava um castelo dos filmes de Drácula — visão que sempre me fascinava.Pouco depois da partida de Karyn, Edgar, o segurança, liberou minha passagem pelo portão de ferro. O letreiro "Jardim Prata", forjado em arco no alto das lâminas que coroavam o portão, tornava a instituição ainda mais imponente.Ao longe, pude ver alunos dispersos pelo campus, aproveitando o frescor noturno antes do toque de recolher. Eu sabia que Evelyn estaria entre eles, pois nunca perdia a chance de sentir a liberdade efêmera além das paredes imponentes do colégio.Como esperado, encontrei-a sob a luz amarelada de um poste colonial, sentada de frente para o jardim e de costas para o edifício que nos aprisionava diariamente. Aquele era nosso refúgio favorito, onde podíamos contemplar a be
Meu corpo saltou da cama em um espasmo. O ar voltou aos meus pulmões de forma brusca e dolorida, enquanto meu peito arfava, tentando lidar com a batida frenética do meu coração. A adrenalina pulsava em minhas veias.— Foi só um pesadelo... — pensei, ainda com a mente turva. — Um sonho ruim e assustador...Respirei fundo, tentando acalmar o tremor nas mãos. Meus olhos correram pelo quarto, reconhecendo aos poucos os objetos familiares que pareciam, de alguma forma, distantes. O abajur apagado, a janela aberta pela metade, as cortinas afastadas, deixando os raios de sol dourados banharem o ambiente com uma claridade morna. Peguei o celular virado para baixo sobre o criado-mudo e toquei na tela. Oito e quinze da manhã.Um novo dia começava, mas algo ali estava errado.Olhei ao redor do quarto, a desconfiança crescendo como um pressentimento ruim. Minha mente se forçava a entender como e quando eu havia voltado para casa e me deitado ali. Era como tentar ver através de uma neblina espessa
✥Na manhã seguinte, fui despertada com batidas insistentes na porta do meu quarto e com uma Kathryn impaciente resmungando que iria atrasá-la para o trabalho. Fui obrigada a descer de qualquer jeito. Bem, na verdade, meu cabelo era a única coisa em mim que precisava de fato ser ajeitado. O volume das mechas onduladas estava decididamente inclinados em não me obedecer, tanto que decidi deixar como estavam, caindo em longas cascatas em meus ombros e costas.O café da manhã já estava posto à mesa e em silêncio fiz minha refeição. Cereal com leite na tigela, um pedaço de torta de maçã e uma xícara de café era o que eu poderia chamar de café da manhã aborrecido.Minha irmãliaintencionalmente o jornal no sof
✥ O livro em cima cama parecia me observar de uma forma indireta, com um poder intimidador e invisível, me deixando acuada e sob pressão. Eu me sentia vítima de uma piada de mau gosto do universo. Ficar andando de um lado para outro pensando na hipótese de pisar na biblioteca para devolvê-lo se tornou a tarefa mais difícil do meu dia. Havia uma briga absurda dentro de mim que não fazia sentido algum. A parte racional do meu cérebro insistia que não tinha razões para tal comoção e que tudo estava como costumava ser, com a calmaria habitual alinhada as normas de conduta e de exigências do colégio. Porém, toda vez que eu decidia dar ouvidos a essa parte racional e deixava a infantilidade de lado. Um medo crescente tomava espaço em meu ser, os pelos do meu corpo eriçavam friamente e um novo nó voltava a se formar em meu estômago com a voz horrenda disparando dentro da minha cabeça de que eu jamais despertaria. Em meu último ato de coragem sai do quarto sem pestanejar, rumando em direção
✥ Eve retornou pouco tempo depois de anoitecer e resumiu em poucas palavras o assunto que a levou até a casa de seu pai. Homem a quem ela intitulava como seu tutor, sempre se referindo a ele como sr. Desmond, um alguém que exercia o papel da paternidade apenas pelo dever moral perante o status social. Eu não conhecia muito sobre o passado dela e não é como se ela gostasse de dividir os detalhes mais conflitantes de sua infância. Tudo o que me permitia saber era que o homem, cujo um dia havia sido seu pai, enterrou a paternidade junto com a esposa e se tornou um carrasco amargurado dependente de altas doses de brandy e charuto caros. Casando-se anos mais tarde com a sócia e afastando de vez qualquer possibilidade afetiva de pai e filha. — Não acredito que ele te intimou a escolher uma faculdade. Quero dizer... — meu cenho se franziu. — Ainda falta um ano e meio para você terminar o colégio. Por que a pressa? Estava sentada no meio da minha cama com as pernas em posição de yoga, pent
✥Cada partícula do meu corpo parecia reagir pela necessidade de ver Nate. Minhas mãos formigavam, meu estômago se agitava como se borboletas estivessem voando dentro e meu coração batia forte. Serpenteando pela trilha de arbustos floríferos podados, vou adentrando cada vez mais para dentro do jardim e deixando o enorme edifício para trás. O céu estava escuro e a lua muito branca e redonda em volta das centenas de estrelas, observava silenciosamente o meu caminho. A vontade de ficar nos braços de Nate consumia meus pensamentos e me faziam esquecer os últimos acontecimentos. Eu poderia estar ficando maluca por ignorar o que tinha acontecido do refeitório e talvez, inconscientemente essa fosse a minha vontade. Eu quero estar livre de qualquer preocupação e aproveitar a chance de estar ao lado dele. Mesmo que para isso, tenha que passar por cima de uma das regras disciplinares. O jardim do colégio é gigantesco, a grama em todo lugar é bem aparada e sempre verde. Postes coloniais ilumina
Inverness, Escócia - 1852Uma terrível tempestade caía desde o fim da tarde. Nuvens densas, da cor do carvão, cobriam o céu na hora mais escura da noite, envolvendo-o como uma mortalha. O brilho das estrelas e a iluminação precária do luar foram apagados. O vento forte uivava em fúria, rumo ao norte, enquanto relâmpagos intensos retumbavam, criando uma dança espetacular de clarões brancos. Lindos de se ver, mas completamente letais.Os habitantes de um vilarejo escondido nas montanhas eram reféns não apenas da fúria devastadora da mãe natureza, mas também de um terror inominável que os assombrava como uma maldição.Pés descalços desciam uma escadaria pedregosa, esculpida secretamente nas profundezas de uma das montanhas de Krane. Cada degrau, interminável, levava a um refúgio que, apesar de distante, era o mais seguro. Descer novamente aquela escadaria profunda era como voltar ao passado na esperança de alterar o futuro.― Aguentem... um pouco... mais... ― disse uma voz entrecortada, d