Capítulo 2

Contudo, foi somente quando já estava com meus quinze anos é que vim a descobrir todo o horror do dia em questão. E compreendi que aquela não era uma estória a ser contada ao garotinho influenciável que eu era, quando descobri o segredo da minha família.

Esse caso sempre me fascinou e acredito ter influenciado minha vida a ponto de tomar a decisão de prestar vestibular para Artes Visuais e Cinema. Como minha primeira leitura, aquele velho jornal apurou meu gosto para todo tipo de literatura detetivesca, do qual sou fã até hoje. Leio tudo o que me cai às mãos. Meu primeiro filme, ainda na faculdade, foi um curta sobre o Assassino do Cinema. Meu grupo trabalhou no roteiro e eu dirigi. Foi mágico ver o Alan (o assassino) entrando no escuro do cinema, sentando-se ao lado de uma jovem inocente (Alessandra) e colocando a mão em sua boca, sufocando-a, enquanto encenava um beijo apaixonado, para depois deixar o local como se nada tivesse acontecido.

Hoje meu trabalho como diretor melhorou muito e, talvez por isso, tenha recebido a visita de Tia Eneida — minha tia avó — me presenteando com um calhamaço de papéis, fotos, certidões, laudos, matrículas de propriedades, interrogatórios e tudo mais relacionado às manchetes de 1930. Seu trabalho foi tão minucioso que poderia ser transformado em livro, contudo, ela não quis. Disse que não tinha aptidão para a escrita — modesta minha tia — e que eu deveria limpar o nome da família numa tela, para que todos soubessem o que realmente aconteceu naquela noite de maio.

— O que aconteceu naquela noite, tia?

— Não sei ao certo e talvez ninguém nunca saiba, Albertinho. Mas posso dizer com toda a certeza do mundo que havia mais alguém com eles naquele noite. Que os fatos foram negligenciados e que aquele veredito foi incorreto.

Em seus olhos havia tanto brilho e tanta certeza, que lhe prometi estudar cada palavra daqueles documentos e fazer jus ao que ela me pedia. E mais uma vez, como o garoto descobridor do mundo através das palavras, sentei-me no sofá da sala e me pus a devorar todo o material, na esperança de que pudesse desvendar o ocorrido naquela casa. É claro que não seria nada fácil depois de tantos anos. Tinha noção de que seria como tentar encontrar uma agulha no palheiro, entretanto, levei aquilo como uma missão e não iria descansar até dar sossego à nossa família, principalmente à tia Eneida. Agradeci à ela por ter confiado seu tesouro a mim, mesmo tendo dúvida se era a pessoa certa para fazer aquilo.

Devorei as páginas amareladas em menos de seis horas, estudando cada detalhe, cada foto. Tia Eneida esmiuçou tudo o que lhe foi possível saber sobre o caso durante toda a vida. Posso vê-la debruçada na velha escrivaninha de nogueira, deslizando a caneta em folhas brancas de almaço, inclinando a letra para a direita com floreios simpáticos de uma professora primária. Em cada foto — as mesmas que me cansei de olhar quando menino — uma observação perspicaz. Outras, das quais não fazia ideia de que existiam, queimavam em minha mão e o velho e sombrio sentimento do mistério daqueles últimos instantes de vida dos irmãos, me arrebatou mais uma vez.

Pus-me a pensar no casarão da Rua Conde do Pinhal, esquina com a Avenida São Paulo, aqui em São Carlos, hoje completamente abandonado. Talvez pela tragédia sucedida ali, muitos o digam assombrado. Mas não creio nas invencionices do povo, pelo menos não nesse caso em particular. Cheguei a ver alguns vídeos, postados por curiosos com câmeras de celulares, filmando-os na calada da noite, mas não me surpreenderam. Tudo aquilo pode ter sido efeitos de luzes lançadas sobre as sombras.

Confesso que estive na Fazenda Santa Clara. Meu pai fez questão de nos levar — mamãe e a mim — para um almoço de fogão à lenha no restaurante da antiga estação de trem, alguns metros longe da sede. A casa que o irmão do meu bisavô construiu foi preservada pelo CONDEPHAAT (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo). Ainda havia os mesmos quadros, de molduras escuras e rostos austeros de senhoras, nas paredes. Talvez o quadro da matrona?  Não sei. Nos quartos, as mesmas camas de uma época onde a madeira era de verdade, escura e sólida, com cadeiras de balanço, jarro de água com sua bacia de porcelana pintada à mão e o penico abraçado a ela. Sem falar dos espelhos sombrios que guardavam o passado em suas sombras.

Na sala de música o velho gramofone, ainda funcionando, tocando discos gordos e pesados de músicos mortos. Cadeiras que mamãe chamava de namoradeira, com assentos vermelhos. Segundo ela, não bastavam para deixar os jovens enamorados longe dos flertes ousados, quando um dos pais cochilava com as mãos atadas ao colo, num sono sem vigília. Na sala da frente o que mais me chamou a atenção, pela beleza encerrada na paisagem do horizonte verde, foram as estantes de vidro com livros raros.

Não fosse meu pai gemendo impropérios contra o governo que tomou da família o precioso bem, aquele passeio teria sido mágico. De certa forma acabou sendo. Formou em mim a junção das peças que hoje trago na memória e que se encaixam no cenário da minha mente. Aqui faço um parênteses dos meus sentimentos ao entrar na casa. Toda ela respirava como se viva. A qualquer momento talvez pudesse ver Ângelo e Augusto entrando naqueles cômodos, com suas botas negras reluzentes, caminhando por entre eles com destreza e graça. Dona Afonsina gritando ordens para as empregadas arejarem os lençóis brancos, livrando-os da poeira vermelha que sopravam das janelas baixas.

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