O que havia me inspirado a começar o roteiro da obra, se apagou como vela em frente a uma rajada de vento. Estava tudo em minhas mãos, contudo, a falta de uma finalização me deixava angustiado. Não queria terminar apenas para dizer que colocara no papel tudo o que sabia. Queria mais. Queria descobrir a verdade. Talvez essa inquietude se devesse ao sobrenome da minha família. Ninguém gosta de ter um palco de tragédia pairando sobre sua cabeça. E quanto mais me aprofundava no assunto, mais dúvida tinha. O que realmente aconteceu àquela família? Gente que não conheci, mas que pareciam viver ao meu lado, me instigando. Fechei os olhos e me deixei levar pelos fatos, formando imagens onde os protagonistas se tornavam pessoas reais, tendo que lidar com sentimentos e ressentimentos. Cheguei quase a me transportar para aquela época, tal o grau de envolvimento em que me encontrava, como se a qualquer momento pudesse surgir o fio que iniciava tudo, quando ouvi um martelar agressivo na porta. Levantei-me abruptamente, sentindo-me atordoado.
— Ei! Por acaso você estava dormindo? Estou batendo há horas nessa porta. — Resmungou Marina, exasperada.
— Oi, Marina. Também estou bem — disse, sarcástico, esperando por sua reação que não veio — Estava pensando.
— Nossa! Você está ficando fissurado. Como vão as coisas? Já terminou o texto?
— As coisas não são tão simples assim.
— O que houve? Ontem chegou a escrever tanto!
— Pois é. Parece que tive um bloqueio. São tantas situações. Mas na verdade não sei como terminar a estória. E isso está me matando! Não quero criar um final baseado nas minhas intuições e nem mesmo faltar com a verdade. Realmente não sei o que fazer.
— Bom, estou aqui. Podemos, juntos, passar ponto por ponto e ver se chegamos a uma conclusão. Assim me dá chance de entender como tudo se deu baseado nos relatos que tem em mãos.
— Talvez dê certo. Confesso que já passei os olhos tantas vezes por essa papelada que não sei se há algum ponto que tenha ficado despercebido.
— Talvez seja esse o problema. Quando a gente fica muito tempo numa única coisa, acaba não enxergando o que está bem diante dos olhos.
— Você pode ter razão. Vem. Sente-se aqui. Vou buscar uma taça de vinho e aí começamos a leitura.
— Beleza. E podemos fazer observações em cada capítulo. Vamos começar logo, Alberto. Estou curiosíssima.
Diante de tal incentivo, como não encontrar esperanças de fazer um excelente trabalho? Sentei-me ao seu lado, sentindo o cheiro da colônia que Marina usava e, após sorver um gole do vinho seco, me pus a ler para ela, que ouvia fascinada.
São Carlos, Junho 1.929.
Eles estavam voltando do cemitério Nossa Senhora do Carmo, cada um dos filhos segurando os braços da mãe enlutada. O pai, Enzo Corvecchio, agrônomo, proprietário da fazenda Santa Clara e de outras tantas propriedades no pequenino centro de São Carlos, acabara de falecer. Enfartou após erguer uma saca de café que havia caído da pilha que seria embarcada para o porto de Santos, rumo à Europa. Apesar dos seus setenta e oito anos, era um homem vigoroso. Alto, robusto, nunca sequer havia ficado seriamente doente. Aquela dorzinha que ia e vinha fora relegada ao excesso de carne de porco que ingerira no almoço. Nada como uma boa caminhada pelo cafezal para eliminar o desconforto estomacal, que ele acreditava ser o causador dos malditos gases que lhe subia pelo peito.
Deixou dois filhos — Augusto e Ângelo Corvecchio — os legítimos herdeiros, de seu casamento com dona Afonsina. Augusto, o filho mais velho, então com seus trinta e dois anos, vê-se como o responsável pelos bens da família: várias casas na cidade, armazém de secos e molhados, beneficiadora de arroz, Cine São Carlos e, inusitadamente, ações do jornal Correio de São Carlos, fundado em 1898, um ano após o seu nascimento. Seguiu os passos do pai e formou-se na Escola Superior de Agricultura Luiz de Queirós, na cidade de Piracicaba, com honras. Desde tenra idade andava com o pai por entre os pés de café, aprendendo sobre os grãos, moagem, tendências, preços da arroba, exportação e tudo mais que era preciso. Seu pai e mestre — herdeiro de uma grande família de latifundiários — havia sido enviado à Europa, como de costume à época, para estudar na Escola de Agricultura de Grignon, na França.
Fora criado na fazenda em meio aos pássaros e à lagoa, cuja água servia para girar o monjolo para a moagem do café. Não que seu pai não quisesse tê-la modernizado com o advento da energia elétrica, mas para que gastar dinheiro se o mecanismo ainda funcionava tão bem, movido pelas águas escuras da lagoa? Augusto adorava ver a roda gigante girando ao lado do prédio onde a moedora ficava. Quantas vezes tentou pular naquelas pás de madeira, acompanhando o percurso da água que descia rente ao teto do edifício de pedra, até o encontro com o solo, apenas para girar junto com a roda e se deixar cair no chão.
É claro que Augusto brincava no monjolinho escondido da mãe. Se ela o pegasse agarrado àquelas pás, ficaria de castigo por dias sem sair do quarto. Aprendera a brincadeira na roda com José, filho do caseiro de confiança da família. Os dois se divertiam à beça correndo atrás dos patos e galinhas, armando arapuca pra pegar passarinho e pisando nos grãos de café que secavam no terreiro, acima do prédio onde fora colocada o moinho de café.Havia uma casa na cidade onde ele era obrigado a ficar durante o período escolar, no “Grupo Escolar Coronel Paulino Carlos”. Mas era na fazenda que ele se sentia livre e feliz. Se pudesse não deixaria aquele lugar por nada do mundo. Houve um certo desconforto quando soube que a mãe lhe daria um irmão. Afinal ele já estava com sete anos, bastante acostumado a ser filho único e receber to
Ângelo, que acabara de chegar da América do Norte, observava o irmão pelo canto do olho. Sabia que estava sofrendo. Todos estavam. Sentia medo pela mãe, por quem era extremamente devotado. Por tê-lo tido em idade tardia e quase perdido aquela criatura pequenina e frágil, ela o mimara. Estragara o menino, dizia o pai. Não que ele não estivesse sentindo sua morte, contudo, ainda tinha a mãe. Ela era o seu esteio. Não era tão próximo do irmão quanto gostaria, mas, se a vida não quis que fosse assim, nada podia ser feito. Sabia que o pai preferia o irmão e não se ressentia disso. Não muito, pelo menos. Não era um homem do mato como Augusto e sim, sua preferência era a cidade e seus encantos. Suas mulheres e festas. Podia circular pela aristocracia Paulistana à vontade, quando estava no País. Era sempre o primeiro a ser chamado para as rodas do C
Da cadeira onde estava, perscrutando o irmão, Ângelo pensava se teria alguma chance agora que o pai se fora. Era óbvio que Augusto não deixaria a rentável fazenda em suas mãos, contudo, talvez pudesse convencer o irmão a investir no mercado automobilístico ou, quem sabe, na indústria têxtil. Talvez precisasse que a mãe o ajudasse e nisso não via problema, já que, com certeza, os bens seriam divididos entre eles. Era nisso que ele acreditava enquanto esperava a presença do Dr. Villas Boas, o advogado da família. Mesmo que Augusto não aceitasse mergulhar em novos investimentos, ideias não lhe faltavam para usufruir de sua parte na herança. Sabia tudo o que estava acontecendo na Europa, com a ajuda de seus amigos dos tempos das Belas Artes, assim como em Nova York, já que acabara de chegar de lá. Não trazia boas notícias, entretanto, n&
Casaram-se com pompa na Igreja de São Pedro da Sé no ano de 1887. Ele a levara para morar na Fazenda Santa Clara, entretanto, Afonsina era visivelmente uma moça da cidade. Não que não gostasse do ar puro do campo. Apenas gostava de passeios de braços dados com o marido pelas ruas empoeiradas da cidade. Enzo entendeu a necessidade da moça. Era ainda muito jovem. Construiu um casarão para ela no centro da jovem São Carlos. Não poupou esforços em fazê-lo. Influenciado pela construção do Palacete Conde do Pinhal, a mando de Antônio Carlos de Arruda Botelho, empolgado com a vinda da Família Imperial à cidade, contratou o mesmo engenheiro, Davi Cassinelli, que faria o casarão do Conde. Tudo para agradar a jovem esposa. É claro que a sua construção não fora tão esplendorosa quando à do Conde, contudo, ladrilhos e
Enzo sentiu-se traído. O mundo se abria a seus pés, esperando-o mergulhar em suas entranhas até se afogar, sem encontrar algo em que se apoiar.— Tenho certeza de que papai não fez por mal, Enzo — disse Enrico, acanhado, enquanto rodava o chapéu nas mãos. — Ele só não esperava morrer tão cedo.— E eu não esperava que meus próprios irmãos se comportassem como dois abutres!Afonsina tudo ouvia na sala ao lado. Mesmo que quisesse fazer o que a etiqueta mandava — não ouvir a conversa dos outros atrás da porta — tornou-se impossível. Três italianos discutindo era como rugido de três leões famintos.— Não vou vender a fazenda — Grunhiu Enzo, esmurrando a mesa.— Não devia ter feito sociedade com papai. Agora temos que vender. Quero minha parte no espólio. &md
Ela me encarou com o queixo erguido, desafiando-me.— Bom, — disse estalando a língua — creio estar certa em relação a esse Ângelo. Acho que só pensa em se divertir. Realmente tem algo nele que me incomoda. — Concluiu, voltando ao seu normal, visivelmente querendo mudar de assunto.— Estamos apenas no começo, Marina. Muita água vai rolar. Se ficar quietinha, posso continuar.— Não é de o meu feitio ficar calada. Lembre-se, estou aqui para ajudar.— Eu sei, querida. — Não resisti em pegar-lhe a mão e olhar profundamente em seus belos olhos. Sorri, diante de seu constrangimento, continuando com a leitura. As coisas começavam a ficar divertidas. Sabia que estava em um jogo em que poderia sair perdedor. Precisava arriscar, para minha própria saúde mental. Viver um amor platônico é interessante por
Augusto encara Ângelo, de cenho franzido. O rumo daquela conversar o incomoda.— Do que exatamente está falando? Estamos exportando café como nunca.— Isso tende a acabar.— Como pode saber? Por acaso agora se tornou adivinho? — Desdenhou Augusto.— Não. Não me tornei — encarou o irmão com olhos apertados — Se você se desse ao trabalho de me considerar um homem de negócios, e não apenas um moleque gastador de dinheiro, saberia que não estou dizendo bobagem.— Você? Um homem de negócios?— Se a fazenda também não fosse minha eu bem que deixaria você se arrebentar inteiro. — Disse Ângelo, ruborizado.— A fazenda será sua depois que trabalhar nela!— Estamos correndo o risco de perdê-la! Eu sei o que estou dizendo. Se vendê-la agora, fi
Sorri diante da perspicácia de Marina.— Posso continuar? — Perguntei virando a próxima folha.— Claro que sim. Agora quero saber tudo.— Então não me interrompa.— Não dá! Esse cara me dá nos nervos. — Por quê?— Pode chamar de instinto. Não confio nele.— Ainda nem comecei a falar dele! Em que se baseia? Meramente no instinto ou tem algo mais?— Não sei, Alberto. Tirando o fato de ele ser um homem extremamente bonito, tenho impressão de que vai aprontar alguma.— Qual o problema em ser um homem bonito? — perguntei desconfiado — Desde quando a beleza define o caráter de um homem? — Não define. Apenas não confio em homens bonitos. Eles sempre se julgam o máximo, sempre acham que todas as mulheres estão