Ângelo, que acabara de chegar da América do Norte, observava o irmão pelo canto do olho. Sabia que estava sofrendo. Todos estavam. Sentia medo pela mãe, por quem era extremamente devotado. Por tê-lo tido em idade tardia e quase perdido aquela criatura pequenina e frágil, ela o mimara. Estragara o menino, dizia o pai. Não que ele não estivesse sentindo sua morte, contudo, ainda tinha a mãe. Ela era o seu esteio. Não era tão próximo do irmão quanto gostaria, mas, se a vida não quis que fosse assim, nada podia ser feito. Sabia que o pai preferia o irmão e não se ressentia disso. Não muito, pelo menos. Não era um homem do mato como Augusto e sim, sua preferência era a cidade e seus encantos. Suas mulheres e festas. Podia circular pela aristocracia Paulistana à vontade, quando estava no País. Era sempre o primeiro a ser chamado para as rodas do Clube e nos bailes. O Clube era seu maior passatempo. Os negócios estavam bem na mão do pai e do irmão. Não havia espaço para ele. Sendo assim, podia fazer o que mais gostava: gastar o dinheiro do pai. É claro que isso fora motivo de longas discussões e ameaça por parte do velho. Bastava apenas um sorriso de covinhas para a mãe e tudo se resolvia.
Ao contrário de Augusto, fora criado na cidade. Sempre fora o primeiro da turma no Grupo Escolar, e em tudo que se propunha a fazer. Isso também se dava nas traquinagens. E Deus o abençoara com uma beleza gritante. Olhos estreitos e azuis, enquanto os do irmão eram cinza e opacos. Cabelos negros, sobrancelhas grossas e marcantes, dono de um sorriso de covinhas que deixava até a mais rabugenta das professoras encantada com seu charme. E isso ele tinha de sobra. Essa era a sua arma. E assim tudo conseguia. Desde cedo aprendera a arte da lisonja. O beijo dado na mão de todas as damas, não importando a idade, resultando na ruborização das maçãs do rosto dos referidos alvos, era-lhe como mel atraindo formigas. Ah! E as moçoilas! Como negar-lhes o que tanto queriam? Quantos beijos roubados, quantos olhares espichados e quantas propostas de casamento! Recusara todas, para desgosto do pai.
Poderia ter feito um bom casamento acrescentando mais status à família. Assim o pai queria, contudo, esse gosto não lhe daria. Se a sua família tivesse que se unir à outra da sociedade paulistana, que fosse através do irmão, que já estava passando da hora de se casar. Entretanto, Augusto só pensava em terra, terra e mais terra. Até parece que nunca se divertia com nada. Passava os dias na fazenda, só voltando à noite para conferir os balancetes e lhe dar broncas severas sobre seu comportamento.
Mas fazer que se tinha um espírito livre? A noite era sua testemunha. E ele a adorava. Adorava as mesas de jogo, bebidas, mulheres e as motocicletas. Estava sempre competindo no Club Atlético, em São Paulo, com sua Harley Davidson JD. Era em cima dela que se sentia livre de todas as amarras que seu sobrenome impunha. Como pensar em sossegar se a vida lhe era tão boa? Não que se desinteressava pelos negócios da família. Apenas o seu autossuficiente irmão jamais permitiria que ele o ajudasse em algo, mesmo sendo um dos melhores alunos de arquitetura do Real Instituto Superior de Belas Artes, em Roma. É claro que tinha algumas ideias. Gostava de conversar com investidores, analisar o mercado de ações. Até tinha feito alguns negócios, escondido do irmão, e se dado bem.
Nos primeiros anos de sua vida, Ângelo fora uma criança doente. Nascera mirradinho e quase não sobrevivera. Entretanto, dona Afonsina se recusara a deixar que isso acontecesse. Abraçou o menino e não arredava o pé de perto dele; não permitindo que ninguém sequer o pegasse no colo. Aquele menino viveria e seria grande. As preces da mãe sofrida foram atendidas e ele se fez belo e doce. Talvez por ter sido extremamente protegido pelas mãos da mãe que não deixava “seu anjinho” — referia-se a ele assim, fazendo Augusto e o pai revirarem os olhos — sair de casa sobre nenhum pretexto, aprendera a se distrair com lápis e papel. No começo desenhava as coisas que via pela janela. Flores, árvores, muros. Aos poucos fora ganhando destreza e a habilidade fluíra como água jorrando pelas mãos. Mesmo com pouca idade fez um retrato da mãe, enquanto a observava bordar, sentada na sala, de onde, de certa forma, era um prisioneiro do tempo e da saúde.
Assim que não foi mais possível mantê-lo dentro de casa, Ângelo fora para escola. Para mãe, uma tortura, acostumada à sua presença constante. Para ele, a liberdade. Quis ir para a Europa estudar pintura na Velha Escola. Acostumara-se aos elogios e a ter algumas moças mais desenvoltas como modelos de corpos nus. O pai não permitiu. Essas coisas de desenho, pintura, não davam em nada. Só o faria tornar-se um fanfarrão, um libertino, e ele jamais sustentaria uma profissão tão desqualificada quanto aquela. Ele teria que seguir o exemplo do irmão e...
Trancou-se no quarto aborrecido e aquela talvez fosse a primeira vez que a mãe não fora a seu favor. Ela não poderia conceber a ideia de perdê-lo para o mundo. Com muito jeito aconselhou-o a continuar com os desenhos, mas também com algo que deixaria o pai orgulhoso. Foi assim que, depois de muito choro e vela, foi embora para Itália estudar Arquitetura. Vieram as plantas, mas os desenhos de nus femininos continuaram. Alias, aumentaram, e ele levou o curso com imensa alegria, contrariando Augusto que via um desperdício de dinheiro manter o irmão em outro país, quando deveria seguir seu exemplo e trabalhar na fazenda com ele e o pai.
Da cadeira onde estava, perscrutando o irmão, Ângelo pensava se teria alguma chance agora que o pai se fora. Era óbvio que Augusto não deixaria a rentável fazenda em suas mãos, contudo, talvez pudesse convencer o irmão a investir no mercado automobilístico ou, quem sabe, na indústria têxtil. Talvez precisasse que a mãe o ajudasse e nisso não via problema, já que, com certeza, os bens seriam divididos entre eles. Era nisso que ele acreditava enquanto esperava a presença do Dr. Villas Boas, o advogado da família. Mesmo que Augusto não aceitasse mergulhar em novos investimentos, ideias não lhe faltavam para usufruir de sua parte na herança. Sabia tudo o que estava acontecendo na Europa, com a ajuda de seus amigos dos tempos das Belas Artes, assim como em Nova York, já que acabara de chegar de lá. Não trazia boas notícias, entretanto, n&
Casaram-se com pompa na Igreja de São Pedro da Sé no ano de 1887. Ele a levara para morar na Fazenda Santa Clara, entretanto, Afonsina era visivelmente uma moça da cidade. Não que não gostasse do ar puro do campo. Apenas gostava de passeios de braços dados com o marido pelas ruas empoeiradas da cidade. Enzo entendeu a necessidade da moça. Era ainda muito jovem. Construiu um casarão para ela no centro da jovem São Carlos. Não poupou esforços em fazê-lo. Influenciado pela construção do Palacete Conde do Pinhal, a mando de Antônio Carlos de Arruda Botelho, empolgado com a vinda da Família Imperial à cidade, contratou o mesmo engenheiro, Davi Cassinelli, que faria o casarão do Conde. Tudo para agradar a jovem esposa. É claro que a sua construção não fora tão esplendorosa quando à do Conde, contudo, ladrilhos e
Enzo sentiu-se traído. O mundo se abria a seus pés, esperando-o mergulhar em suas entranhas até se afogar, sem encontrar algo em que se apoiar.— Tenho certeza de que papai não fez por mal, Enzo — disse Enrico, acanhado, enquanto rodava o chapéu nas mãos. — Ele só não esperava morrer tão cedo.— E eu não esperava que meus próprios irmãos se comportassem como dois abutres!Afonsina tudo ouvia na sala ao lado. Mesmo que quisesse fazer o que a etiqueta mandava — não ouvir a conversa dos outros atrás da porta — tornou-se impossível. Três italianos discutindo era como rugido de três leões famintos.— Não vou vender a fazenda — Grunhiu Enzo, esmurrando a mesa.— Não devia ter feito sociedade com papai. Agora temos que vender. Quero minha parte no espólio. &md
Ela me encarou com o queixo erguido, desafiando-me.— Bom, — disse estalando a língua — creio estar certa em relação a esse Ângelo. Acho que só pensa em se divertir. Realmente tem algo nele que me incomoda. — Concluiu, voltando ao seu normal, visivelmente querendo mudar de assunto.— Estamos apenas no começo, Marina. Muita água vai rolar. Se ficar quietinha, posso continuar.— Não é de o meu feitio ficar calada. Lembre-se, estou aqui para ajudar.— Eu sei, querida. — Não resisti em pegar-lhe a mão e olhar profundamente em seus belos olhos. Sorri, diante de seu constrangimento, continuando com a leitura. As coisas começavam a ficar divertidas. Sabia que estava em um jogo em que poderia sair perdedor. Precisava arriscar, para minha própria saúde mental. Viver um amor platônico é interessante por
Augusto encara Ângelo, de cenho franzido. O rumo daquela conversar o incomoda.— Do que exatamente está falando? Estamos exportando café como nunca.— Isso tende a acabar.— Como pode saber? Por acaso agora se tornou adivinho? — Desdenhou Augusto.— Não. Não me tornei — encarou o irmão com olhos apertados — Se você se desse ao trabalho de me considerar um homem de negócios, e não apenas um moleque gastador de dinheiro, saberia que não estou dizendo bobagem.— Você? Um homem de negócios?— Se a fazenda também não fosse minha eu bem que deixaria você se arrebentar inteiro. — Disse Ângelo, ruborizado.— A fazenda será sua depois que trabalhar nela!— Estamos correndo o risco de perdê-la! Eu sei o que estou dizendo. Se vendê-la agora, fi
Sorri diante da perspicácia de Marina.— Posso continuar? — Perguntei virando a próxima folha.— Claro que sim. Agora quero saber tudo.— Então não me interrompa.— Não dá! Esse cara me dá nos nervos. — Por quê?— Pode chamar de instinto. Não confio nele.— Ainda nem comecei a falar dele! Em que se baseia? Meramente no instinto ou tem algo mais?— Não sei, Alberto. Tirando o fato de ele ser um homem extremamente bonito, tenho impressão de que vai aprontar alguma.— Qual o problema em ser um homem bonito? — perguntei desconfiado — Desde quando a beleza define o caráter de um homem? — Não define. Apenas não confio em homens bonitos. Eles sempre se julgam o máximo, sempre acham que todas as mulheres estão
Gloria o viu deixar a cozinha, soltando o ar devagar. Apaixonara-se por Augusto assim que o vira e não fora simplesmente porque a contratara, ou tratara-a de forma tão correta. Era um homem bonito, culto e decidido, bem diferente de outros coronéis que só pensavam em benefícios próprios, esquecendo-se de que só os tinha por causa dos que se matavam de sol a sol para isso. Augusto era diferente. Preocupava-se com todos os colonos. Achava graça na amizade sincera que ele tinha com Zezinho desde os tempos de criança.Sabia que ele não a via com os mesmos olhos que ela, contudo, sentia que um dia, talvez isso pudesse mudar.— Sonhando acordada de novo, menina? — Perguntou dona Helena, com um sorriso discreto nos lábios, ao entrar novamente na cozinha.— Não estou sonhando. — Respondeu com cara amarrada.— Sei. Já tomou café?&
Não nego que senti um tiquinho de ciúme, ao abordá-la:— Você está realmente falando dele ou de outra pessoa? Tive a impressão que...— Estou falando dele. — Interrompeu-me, ácida.— Está bem. Posso continuar? — Perguntei, com medo de incitá-la ainda mais e obter uma resposta que ferisse meu coração.— Pode, mas se continuar nessa linha acho que vou odiar esse cara. Filhinho de mamãe, pomposo.— Ele está apenas tentando salvar os negócios da família, Marina.— Sei não, Alberto. Acho que tem gato nessa tuba. Meus instintos não falham. Já te disse.— Nunca falharam, Marina? Nem mesmo quando você se encontrava apaixonada por aquele seu namorado ator?— Nem mesmo. — respondeu-me com os olhos cintilando — Talvez tenha demorado um pou