Da cadeira onde estava, perscrutando o irmão, Ângelo pensava se teria alguma chance agora que o pai se fora. Era óbvio que Augusto não deixaria a rentável fazenda em suas mãos, contudo, talvez pudesse convencer o irmão a investir no mercado automobilístico ou, quem sabe, na indústria têxtil. Talvez precisasse que a mãe o ajudasse e nisso não via problema, já que, com certeza, os bens seriam divididos entre eles. Era nisso que ele acreditava enquanto esperava a presença do Dr. Villas Boas, o advogado da família. Mesmo que Augusto não aceitasse mergulhar em novos investimentos, ideias não lhe faltavam para usufruir de sua parte na herança. Sabia tudo o que estava acontecendo na Europa, com a ajuda de seus amigos dos tempos das Belas Artes, assim como em Nova York, já que acabara de chegar de lá. Não trazia boas notícias, entretanto, não era hora de passá-las adiante.
Marina estava com os olhos em cima do manuscrito de tia Eneida, o que me fez interromper a leitura mais uma vez.
— O que houve? — perguntei, diante de seu olhar enfastiado.
— Acho que não gosto desse cara, Ângelo. Algo me diz que ainda vai aprontar muito. Mas não pare. Quero saber mais.
Dona Afonsina secava os olhos com um lencinho de cambraia. Não esperava que a vida lhe desse esse desgosto tirando-lhe o marido, fiel companheiro, de forma tão vil. Nunca o vira doente. Era como um touro. Apaixonaram-se num baile do Clube dos Ferroviários, cujo pai era sócio. Ela no auge de seus vinte anos, dona de uma beleza simples, contudo charmosa, viu-o chegar vestido de gala, como a ocasião exigia. A primeira coisa a chamar-lhe a atenção foi seu porte esguio e seus ombros largos. Ele parecia olhar todos de frente, mantendo a cabeça erguida como se fosse alguém de extrema importância. Caminhava com segurança por entre os casais que rodopiavam pelo salão, cumprimentando alguns com um leve meneio da cabeça. Já não era um garoto como muitos que ali estavam, claramente desconfortáveis com o propósito casamenteiro do baile. Algumas mães, inclusive a dela, chegaram a se abanar com os leques adornados com filetes de ouro, ao vê-lo passar decidido pelo salão.
Moças em idades perigosas o perseguiam com os olhos recatados, soltando suspiros silenciosos, entretanto, ele parecia não perceber. Também passou por ela, sem nem ao menos notá-la. Afonsina deu de ombros. Não seria a primeira e nem a última vez que era relegada às cadeiras desconfortáveis, esperando que algum jovem, forçado pela mãe, a tirasse para dançar. Afinal, era uma das herdeiras mais cobiçadas da cidade de São Paulo e, exatamente por isso, deixara claro, para horror dos pais, que só se casaria com quem ela mesma escolhesse. Quanto sermão e ameaça ouviu do pai, porém, Afonsina, sendo a única filha do Coronel Teodoro Magalhães, amigo íntimo do Presidente de São Paulo, Campos Salles, bateu o pé e disse que só se casaria por amor.
Sua mãe gostaria de ter feito o mesmo, mas aqueles eram outros tempos. Sentiu orgulho da menina, contudo, guardou para si. Bem que ela percebeu o olhar atento de Afonsina para o homem que acabara de entrar no recinto. Viu-a baixar os olhos, enrubescida. Sorriu com leveza, abanando-se com o leque. Disse que iria ao toalhete, deixando-a aos cuidados da amiga Marieta, cuja filha também se encontrava ali, à espera de um bom partido. Pediu para um jovem chamar o marido no Salão dos Homens, e quando o viu, falou-lhe do rapaz que acabara de adentrar ao salão e do leve interesse da filha. O marido sorriu complacente e, antes que a festa acabasse, lá estava ela rodopiando por entre os casais, feliz por ter sido a única a estar nos braços do belo mancebo. Afonsina nunca soube do empurrãozinho do pai. Fê-la pensar que o jovem se dirigira a ela por seus próprios encantos.
Para o jovem Enzo, aquele baile era sua chance de se encontrar com o Coronel Soares e propor-lhe a compra de uma faixa de terra, que fazia divisa com o lado esquerdo da Fazenda Santa Clara. Precisava daquele trecho, mas o tal Coronel teimava em não se desfazer dela. Ao ser interpelado pelo pai de Afonsina, entre baforadas fedorentas de charutos, sondando-o sobre o assunto que teria com o referido Coronel, Enzo se viu agradecendo ao futuro sogro pelo dedo de prosa que o velho teria com o amigo, incitando-o a vender-lhe as terras que tanto queria. É claro que o rapaz poderia lhe fazer o obséquio de tirar sua única filha para uma valsa.
Concordou a contra gosto. Já estava com seus trinta e seis anos e não tinha mais idade para pensar em paixonites. Sua paixão era a terra e o fruto negro que dela extraia. Ao ver a frágil menina, cabisbaixa ao lado da matrona, sentiu um frio no estômago. Algo naquela fragilidade chamou sua atenção, em especial quando seus olhos se encontraram. O rosto redondo o encarava com a serenidade de uma santa, contudo seus olhos eram chamas do mais puro pecado. Sentiu-se desconfortável ao encará-la. Mas uma promessa não velada havia sido feita e ele a cumpriria. Não era homem de dar para trás na palavra. E assim ele a tirou para dançar. O tecido sedoso do vestido azul teimava em roçar na sua perna e, a cada vez que isso acontecia, Enzo esquecia-se do que fora fazer ali. Só havia a criança em seus braços. Deixou-a com a mãe, com certa relutância. De volta à Fazenda Santa Clara, não dormia e nem conseguia se concentrar nos afazeres, pensando na pequena e no beijo roubado às pressas quando conseguiram despistar a matrona ansiosa, ao darem um pequeno passeio pela sacada do salão. Dias se passaram e ele resolveu voltar a São Paulo.
Casaram-se com pompa na Igreja de São Pedro da Sé no ano de 1887. Ele a levara para morar na Fazenda Santa Clara, entretanto, Afonsina era visivelmente uma moça da cidade. Não que não gostasse do ar puro do campo. Apenas gostava de passeios de braços dados com o marido pelas ruas empoeiradas da cidade. Enzo entendeu a necessidade da moça. Era ainda muito jovem. Construiu um casarão para ela no centro da jovem São Carlos. Não poupou esforços em fazê-lo. Influenciado pela construção do Palacete Conde do Pinhal, a mando de Antônio Carlos de Arruda Botelho, empolgado com a vinda da Família Imperial à cidade, contratou o mesmo engenheiro, Davi Cassinelli, que faria o casarão do Conde. Tudo para agradar a jovem esposa. É claro que a sua construção não fora tão esplendorosa quando à do Conde, contudo, ladrilhos e
Enzo sentiu-se traído. O mundo se abria a seus pés, esperando-o mergulhar em suas entranhas até se afogar, sem encontrar algo em que se apoiar.— Tenho certeza de que papai não fez por mal, Enzo — disse Enrico, acanhado, enquanto rodava o chapéu nas mãos. — Ele só não esperava morrer tão cedo.— E eu não esperava que meus próprios irmãos se comportassem como dois abutres!Afonsina tudo ouvia na sala ao lado. Mesmo que quisesse fazer o que a etiqueta mandava — não ouvir a conversa dos outros atrás da porta — tornou-se impossível. Três italianos discutindo era como rugido de três leões famintos.— Não vou vender a fazenda — Grunhiu Enzo, esmurrando a mesa.— Não devia ter feito sociedade com papai. Agora temos que vender. Quero minha parte no espólio. &md
Ela me encarou com o queixo erguido, desafiando-me.— Bom, — disse estalando a língua — creio estar certa em relação a esse Ângelo. Acho que só pensa em se divertir. Realmente tem algo nele que me incomoda. — Concluiu, voltando ao seu normal, visivelmente querendo mudar de assunto.— Estamos apenas no começo, Marina. Muita água vai rolar. Se ficar quietinha, posso continuar.— Não é de o meu feitio ficar calada. Lembre-se, estou aqui para ajudar.— Eu sei, querida. — Não resisti em pegar-lhe a mão e olhar profundamente em seus belos olhos. Sorri, diante de seu constrangimento, continuando com a leitura. As coisas começavam a ficar divertidas. Sabia que estava em um jogo em que poderia sair perdedor. Precisava arriscar, para minha própria saúde mental. Viver um amor platônico é interessante por
Augusto encara Ângelo, de cenho franzido. O rumo daquela conversar o incomoda.— Do que exatamente está falando? Estamos exportando café como nunca.— Isso tende a acabar.— Como pode saber? Por acaso agora se tornou adivinho? — Desdenhou Augusto.— Não. Não me tornei — encarou o irmão com olhos apertados — Se você se desse ao trabalho de me considerar um homem de negócios, e não apenas um moleque gastador de dinheiro, saberia que não estou dizendo bobagem.— Você? Um homem de negócios?— Se a fazenda também não fosse minha eu bem que deixaria você se arrebentar inteiro. — Disse Ângelo, ruborizado.— A fazenda será sua depois que trabalhar nela!— Estamos correndo o risco de perdê-la! Eu sei o que estou dizendo. Se vendê-la agora, fi
Sorri diante da perspicácia de Marina.— Posso continuar? — Perguntei virando a próxima folha.— Claro que sim. Agora quero saber tudo.— Então não me interrompa.— Não dá! Esse cara me dá nos nervos. — Por quê?— Pode chamar de instinto. Não confio nele.— Ainda nem comecei a falar dele! Em que se baseia? Meramente no instinto ou tem algo mais?— Não sei, Alberto. Tirando o fato de ele ser um homem extremamente bonito, tenho impressão de que vai aprontar alguma.— Qual o problema em ser um homem bonito? — perguntei desconfiado — Desde quando a beleza define o caráter de um homem? — Não define. Apenas não confio em homens bonitos. Eles sempre se julgam o máximo, sempre acham que todas as mulheres estão
Gloria o viu deixar a cozinha, soltando o ar devagar. Apaixonara-se por Augusto assim que o vira e não fora simplesmente porque a contratara, ou tratara-a de forma tão correta. Era um homem bonito, culto e decidido, bem diferente de outros coronéis que só pensavam em benefícios próprios, esquecendo-se de que só os tinha por causa dos que se matavam de sol a sol para isso. Augusto era diferente. Preocupava-se com todos os colonos. Achava graça na amizade sincera que ele tinha com Zezinho desde os tempos de criança.Sabia que ele não a via com os mesmos olhos que ela, contudo, sentia que um dia, talvez isso pudesse mudar.— Sonhando acordada de novo, menina? — Perguntou dona Helena, com um sorriso discreto nos lábios, ao entrar novamente na cozinha.— Não estou sonhando. — Respondeu com cara amarrada.— Sei. Já tomou café?&
Não nego que senti um tiquinho de ciúme, ao abordá-la:— Você está realmente falando dele ou de outra pessoa? Tive a impressão que...— Estou falando dele. — Interrompeu-me, ácida.— Está bem. Posso continuar? — Perguntei, com medo de incitá-la ainda mais e obter uma resposta que ferisse meu coração.— Pode, mas se continuar nessa linha acho que vou odiar esse cara. Filhinho de mamãe, pomposo.— Ele está apenas tentando salvar os negócios da família, Marina.— Sei não, Alberto. Acho que tem gato nessa tuba. Meus instintos não falham. Já te disse.— Nunca falharam, Marina? Nem mesmo quando você se encontrava apaixonada por aquele seu namorado ator?— Nem mesmo. — respondeu-me com os olhos cintilando — Talvez tenha demorado um pou
Depois que Verônica nos deixou, dizendo voltar em breve com alguma informação, fui interpelado por Marina:— Parece que você gostou muito de Verônica!— É claro que sim. Ela é linda, extrovertida e muito inteligente.— Acho que extrovertida demais, não acha?— Senti um leve ciúme na sua voz? – Perguntei brincando, mas louco para saber a verdade.— Vai se achando, vai!— Que bom que não sente nada por mim. Talvez eu possa me arriscar com sua amiga. O que acha? Ela está sozinha? — Encarei-a, vendo-a ruborizar.— O que você faz da sua vida não me interessa. — Respondeu ácida e era tudo o que eu precisava saber. Talvez ela não tivesse se machucado tanto assim com o ator metido à besta.— Bem, vamos ao trabalho? As coisas estão