São Carlos, 31 de maio de 1990.
Caro Doutor Alvarenga, o filho do filho, suponho.
Você deve estar se perguntando o motivo de eu ter guardado todas essas reportagens. Nem mesmo sei a verdadeira razão disso. Tanto se falou sobre o crime na época. O veredicto foi de assassinato seguido de suicídio. Conversa pra boi dormir.
Com o passar dos anos tornei-me uma pessoa cínica. Estou em frente à televisão, vendo o primeiro Presidente do Brasil ser eleito de forma direta. O povo pediu, aclamou, gritou pelas Diretas Já, e agora é isso aí. Tolos! Dizem que a democracia venceu e que um povo democrático é um povo que rege sua própria história.
Eu digo: Tolos são os que pensam assim. A Democracia não existe! Do Povo, para o Povo e pelo Povo
É mais difícil do que pensava, colocar no papel as ocorrências que levaram àquela tragédia. Talvez seja a data de hoje, 31 de maio, que me fez ter coragem para falar no assunto, mesmo tendo se passado sessenta anos e eu já estando com meus noventa. Não acredito que tenha durado tanto, depois de ter visto as pessoas de minha convivência morrendo dia a dia. Hoje penso se tudo aquilo poderia ter sido evitado e, quanto mais penso nisso, mais me convenço de que não, tal o grau de desespero em que me encontrava naquele dia. Havia perdido tudo o que me era mais precioso, o que havia conquistado e planejado ao longo da vida, e por culpa deles. Foi preciso me decidir: acabar com a minha própria vida ou acabar com a deles, que me traíram de forma tão mesquinha e vil. Optei por acabar com a deles, mesmo que isso me fizesse cair em desgraça. Sim, isso é uma confissão de assassinato. Eu
Nossa Senhora seria coroada a Rainha dos Anjos e dos Homens, reverenciando o gesto carinhoso da Princesa Isabel, em sua segunda visita à Basílica Velha, quando presenteou a imagem com uma coroa de ouro. Aquela seria a primeira festa depois que o Papa Pio XI decretou a santa como Padroeira do Brasil naquele ano. Era certo de que todos estariam lá. Menos eu, que declarei estar com um súbito mal estar. Sabendo que não haveria ninguém na casa e nem nas ruas, senti-me mais que segura em continuar com meus planos.Tudo corroborava para os acontecimentos daquela noite. Dizem que quando se pensa em suicídio ou assassinato, o diabo toma conta de sua mão e faz acontecer. Não sei quem inventou essa, mas é a pura verdade. Uma tensão tomou conta de meu corpo como se uma energia pulsasse, surgindo do âmago, em direção às mãos. Só havia um pensamento: acabar com os dois e te
— Você mentiu pra mim. Fez-me crer que era minha amiga. Aceitou meus presentes, usou minhas roupas, ou melhor, está usando minhas roupas, e ainda assim preferiu acabar comigo.— Você tem que entender, Mercedes. Ele nunca te amou. Seu pai antecipou as coisas e ele não teve como negar o noivado na presença de todos. Augusto é um homem honrado. A gente se ama. Não há nada que mude isso, nem mesmo sua família.— Ele era meu! — gritei para ela — Meu! Desde criança. Você estragou tudo.— Ele nunca foi seu, Mercedes, e sabe muito bem disso. Seu passado te condenou...— Cale a boca! O que pensa que sabe sobre meu passado? O que aquele cretino do Ângelo te contou? Ele não sabia de nada. — Gritei, apontando a arma para ela.— Eu ouvi quando ele te chantageou. Estava na janela.— Então não ouvi
Por alguns segundos me vi deitada em seu lugar. Já disse que nos parecíamos e isso me enlouqueceu naqueles segundos em que via seu peito arfar. Cheguei a pensar que era por isso que Augusto me beijara quando menti sobre a minha mãe estar morrendo. Naquele momento vi sua figura projetada em mim e percebi que se fosse eu naquele chão, Augusto se sentiria aliviado e feliz. Senti o sangue penetrar em meus olhos e atirei em seu peito, deixando-a ali no chão frio, apagando a luz antes de sair. Fui para a casa. Não sei exatamente como cheguei lá. Parecia estar em outro mundo, ou enfrentando um pesadelo do qual logo acordaria e tudo seria diferente.Queria um mundo onde as pessoas não mentiam, não traiam, não pensavam em si mesmas. Um mundo onde Augusto era meu, onde nosso filho cresceria naqueles campos de café, onde poderia rodá-lo nos braços ouvindo o som de sua gargalhada. Onde a felicidade
Meu pai me enviou para uma casa de repouso no Rio de Janeiro, depois de me arranjar uma certidão de nascimento falsa, jurando que jamais poria os olhos em mim novamente. Eu estava por minha conta. Despedi-me de mamãe. Seu choro foi sincero durante os velórios. Acredito que papai tenha mexido os pauzinhos dentro da polícia, já que era um político de respeito, amigo íntimo do delegado. Deu uma pequena fortuna para o capataz e fê-lo deixar a cidade na calada da noite. Naquele dia eu morri. Todos pensavam que Glória havia partido algumas semanas antes do ocorrido. Não houve muita investigação, como sabem. Especulou-se muito na época. Tenho certeza de que papai deu um jeito de as promissórias adulteradas aparecerem na gaveta da escrivaninha da casa da fazenda, quando enviou o capataz em busca do corpo de Glória. Todos foram unânimes em dizer que os irmãos viviam brigando p
Terminei a leitura singular chocado. Marina tinha os olhos vítreos ao me encarar estupefata. Saber da verdade, depois de tanto tempo, não fez com que me sentisse melhor. Meus parentes distantes não se mataram, o que não deixa de ser um alívio. Mas também não fica mais fácil saber que foram vítimas de uma mulher obsessiva e doente. Não quero imaginar o que é ter um filho com essa doença, ou mesmo, se o amor justifica tudo. Seus pais deveriam tê-la internado numa instituição para doentes mentais, quando cometeu o primeiro crime? A lógica diz que sim. Por outro lado, entendo que o correto nem sempre é a melhor forma de se lidar com um problema. Toda essa estória poderia ter sido diferente caso Mercedes não tivesse surgido na vida dos irmãos? Talvez sim, talvez não, se esse fosse o destino dos dois. Aí então poderia ser Mercedes,
Dias atuaisLembro-me, como se fosse hoje, da primeira vez que me deparei com os recortes de jornais, de época, escondidos entre os álbuns de fotografia que mamãe guardava com tanto zelo. Ainda era um menino de calça curta, aprendendo a juntar as letras do alfabeto, me refestelando com a possibilidade de descobrir o significado de todas aquelas sílabas, enquanto as palavras se formavam perante os olhos. Senti o mundo se abrir à minha frente em face da cegueira que me deixava gradualmente, a partir do momento em que conseguia ler aquilo que via na
Contudo, foi somente quando já estava com meus quinze anos é que vim a descobrir todo o horror do dia em questão. E compreendi que aquela não era uma estória a ser contada ao garotinho influenciável que eu era, quando descobri o segredo da minha família.Esse caso sempre me fascinou e acredito ter influenciado minha vida a ponto de tomar a decisão de prestar vestibular para Artes Visuais e Cinema. Como minha primeira leitura, aquele velho jornal apurou meu gosto para todo tipo de literatura detetivesca, do qual sou fã até hoje. Leio tudo o que me cai às mãos. Meu primeiro filme, ainda na faculdade, foi um curta sobre o Assassino do Cinema. Meu grupo trabalhou no roteiro e eu dirigi. Foi mágico ver o Alan (o assassino) entrando no escuro do cinema, sentando-se ao lado de uma jovem inocente (Alessandra) e colocando a mão em sua boca, sufocando-a, enquanto encenava um beijo apaixona