Dias atuais
Lembro-me, como se fosse hoje, da primeira vez que me deparei com os recortes de jornais, de época, escondidos entre os álbuns de fotografia que mamãe guardava com tanto zelo. Ainda era um menino de calça curta, aprendendo a juntar as letras do alfabeto, me refestelando com a possibilidade de descobrir o significado de todas aquelas sílabas, enquanto as palavras se formavam perante os olhos. Senti o mundo se abrir à minha frente em face da cegueira que me deixava gradualmente, a partir do momento em que conseguia ler aquilo que via nas placas, livros e revistas, entendendo o significado daqueles caracteres misteriosos. E foi nessa avidez por palavras que o vi. Aquelas letras garrafais, estampadas no papel amarelado pelo tempo, surtiu um efeito poderoso em mim. Consegui ler o meu sobrenome naquela manchete de horror. Senti um frio subir pelo estômago e uma carga elétrica secar a boca, ao ver a palavra morte se formando devagar, pulsando num negro pálido.
Dobrei a folha como a havia encontrado e devolvi ao mesmo lugar. Mas não pense que a esqueci. Não poderia, mesmo que quisesse. Por que o nome da minha família estampava aquelas páginas, e se encontrava ligado a uma morte, num jornal? Mesmo com pouca idade sabia que algo assim só viraria matéria se fosse terrível demais e chocasse quem o lesse. Vovô havia morrido e nem uma foto sua, ou alguma matéria, saíra no jornal. Segui cabisbaixo por um tempo, até mamãe me perguntar o que eu tinha:
— Parece que o gato comeu sua língua. Está tudo bem com você? — Desmanchou meu cabelo, enquanto colocava uma xícara de leite quente à minha frente.
— Tudo. — Respondi a uma mãe desconfiada.
— Você não costuma ficar tão calado assim. Não conseguiu juntar as letrinhas?
— Consegui. — Falei, enfiando um pedaço de pão na boca e mastigando, pensativo.
Ela me observou atentamente. Hoje sei que é isso que as mães fazem quando querem ler nossa alma, mas, naquele momento, senti medo de lhe dizer o que estava me incomodando. Engoli todo o leite, limpei a boca com as costas da mão e olhei para ela que me sorria, encostada na pia.
— Mamãe, nosso sobrenome é importante?
— É importante para nós. Por quê?
— Por nada. — Ela continuou perscrutando meu rosto, desconfiada.
— O que você realmente deseja saber? Quer saber se somos uma família abastada?
— O que é isso? — Pergunto, achando estranha aquela palavra
— Abastado significa que tem fartura. Ricos!
— Ah! Eu sei que não somos ricos. Não é isso.
— O que é então? Fala de uma vez. Não fica remoendo as coisas que a noite dá pesadelo.
— Eu não quero ter pesadelo.
— Então não fica guardando as coisas para si.
— Tá bom. Quero saber se somos importantes a ponto de virar notícia de jornal.
— Não. Não somos — respondeu um pouco ácida demais, tão diferente de sua forma gentil e doce de me ensinar as coisas da vida. — Por que da pergunta?
— Por nada.
— Vá brincar então. Vou fazer o jantar. Seu pai chega daqui a pouco. — Ordenou de forma um tanto exagerada.
Obedeci como me convinha, mas aquilo ficou matutando na minha cabeça infantil. De alguma forma, ela ficou estranha quando mencionei o jornal. Não havia nada ali, apenas palavras e mais palavras seguidas daquela que li com perfeição e que tanto me impressionara. Na ingenuidade de um garoto de seis anos, quase sete, assumi que leria aquele jornal nem que demorasse um ano.
Foi o que fiz. Todo dia, assim que voltava da escola, me trancava no quarto dizendo que fazia as lições de casa, contudo, me aventurava por aquele embrenhado de letras sinistras. Encontrei outros recortes escondidos entre as páginas dos velhos álbuns de família e um deles até me trouxe pesadelos. Havia dois homens caídos, um quase ao lado do outro, no chão de uma sala e, numa foto menor ao lado da primeira, uma mulher. Ela estava caída em um corredor escuro, de barriga para baixo, e parte de seu rosto era visível. Usavam roupas estranhas, diferente das que usávamos no dia a dia. Aquilo tudo parecia ser muito antigo. Olhei para aqueles personagens sem entender porque alguém sairia num jornal dormindo no chão. Qual o sentido de ser fotografado dessa forma? Então meu corpo gelou inteirinho quando consegui decifrar outra palavra: Assassinato. E olha que essa foi bem difícil.
Mamãe e papai estavam sempre me fazendo posar para máquinas fotográficas. Ela dizia que queria registrar todo o meu crescimento. Nesse álbum visível na estante da sala, no meio dos livros de meu pai, havia dezenas de poses minhas. Em bebê usando apenas fraldas, deitado na cama sorrindo com a boca desdentada, até a minha primeira comunhão na Catedral. Ainda hoje, sendo eu um homem barbado, mamãe continua com essa mania de registrar todos os meus passos. E vive me atazanando, perguntando quando vou me casar e lhe dar netos.
Aqueles corpos estendidos no chão seguiram comigo durante toda minha infância e adolescência. Assim que fui dominando a arte da leitura, devorei todo aquele material e pude entender que pessoas, que carregavam o sobrenome igual ao meu, haviam se desentendido a ponto de um matar o outro, matar a mulher e depois se suicidar. Esse foi o veredito escandaloso daquela notícia datada de maio de 1930.
Nem preciso dizer que não perdia uma oportunidade de tentar descobrir, pela boca de meus pais, o que realmente aconteceu com aquelas pessoas e quem seriam elas. Toda vez que andava, feito um gato, pela porta de acesso do corredor à sala e os ouvia conversando entre si, ou com alguma visita – geralmente um parente de papai – sobre o malfadado caso, me escondia atrás da porta e de lá ouvia, de olhos arregalados, absorvendo tudo e guardando na memória. Papai até hoje reclama que se não fosse o “maldito governo” nós estaríamos ricos.
Contudo, foi somente quando já estava com meus quinze anos é que vim a descobrir todo o horror do dia em questão. E compreendi que aquela não era uma estória a ser contada ao garotinho influenciável que eu era, quando descobri o segredo da minha família.Esse caso sempre me fascinou e acredito ter influenciado minha vida a ponto de tomar a decisão de prestar vestibular para Artes Visuais e Cinema. Como minha primeira leitura, aquele velho jornal apurou meu gosto para todo tipo de literatura detetivesca, do qual sou fã até hoje. Leio tudo o que me cai às mãos. Meu primeiro filme, ainda na faculdade, foi um curta sobre o Assassino do Cinema. Meu grupo trabalhou no roteiro e eu dirigi. Foi mágico ver o Alan (o assassino) entrando no escuro do cinema, sentando-se ao lado de uma jovem inocente (Alessandra) e colocando a mão em sua boca, sufocando-a, enquanto encenava um beijo apaixona
É fato dizer que a tragédia toda não se deu na casa da fazenda e sim, na da cidade. Mas algo estranho me ocorreu ao entrar no banheiro da parte de baixo do sobrado. Não sou dado às crendices, como já disse anteriormente, contudo, me senti incomodado naquele lugar. O passeio se estendeu pelos jardins das cercanias e, aos meus olhos juvenis, me encantei com a fonte que ainda derrama suas águas pelo jarro da dama de pedra.Tudo isso ainda vive em minha memória. Contribuiu para o cenário que pretendo montar ao reviver a trama dessas páginas transcritas por tia Eneida. Pego-me olhando avidamente para a foto da mulher morta ao lado dos dois irmãos, pensando qual seu papel no desfecho. Soube seu nome através de tia Eneida: Mercedes Medeiros, filha do Coronel Artur de Medeiros — noiva de Augusto. Por que seu fim trágico junto a eles?Tantas coisas sem sentido envolvem esse caso. Ma
Marina sorriu, mordendo os lábios e aguardei sua explanação. Devo dizer que adorava ouvi-la.— Gosto de implicar com você. Mas voltando, as físicas podem doar até seis por cento. E para convencê-los você terá que dar ênfase às vantagens de terem seus nomes vinculados ao seu projeto, pois terá até trinta por cento do valor arrecadado para usar com propaganda e marketing.— Entendi.— Senti certo desespero em sua voz, contudo há outra maneira.— Espero que seja melhor do que gastar sola de sapato.— Quem quer as coisas tem que suar a camisa, querido. Se você tiver um amigo no Ministério da Cultura, aí você pode falar com ele e fazer seu projeto pleiteando o incentivo federal. Então você receberá todo o dinheiro do Governo Federal.— Isso é realmente possíve
— Uau! Você é rápido, hein? Já escreveu tudo isso? — Perguntou admirada, dando-me chance de mergulhar no brilho de seus olhos.— Eu vivi essa estória a minha vida inteira. As palavras meio que saem pelas teclas. Veja isso: A posição dos corpos não faz sentido. Como um tiro pode ser disparado de frente, por Ângelo, matando o irmão, e a perícia dizer que ele se suicidou na sequência, se seu corpo está posicionado quase ao lado do corpo de Augusto? Os dois de barriga para cima. Note que suas mãos quase se tocam. Isso é impossível! — Digo, mostrando-lhe a velha foto, enquanto ela franze o cenho.— Bem, talvez ele tenha se postado ao lado do irmão antes de se matar. Justificaria a posição.— Sim. Mas por que faria isso? Veja como dá a impressão de que os corpos parecem ter sido arruma
O que havia me inspirado a começar o roteiro da obra, se apagou como vela em frente a uma rajada de vento. Estava tudo em minhas mãos, contudo, a falta de uma finalização me deixava angustiado. Não queria terminar apenas para dizer que colocara no papel tudo o que sabia. Queria mais. Queria descobrir a verdade. Talvez essa inquietude se devesse ao sobrenome da minha família. Ninguém gosta de ter um palco de tragédia pairando sobre sua cabeça. E quanto mais me aprofundava no assunto, mais dúvida tinha. O que realmente aconteceu àquela família? Gente que não conheci, mas que pareciam viver ao meu lado, me instigando. Fechei os olhos e me deixei levar pelos fatos, formando imagens onde os protagonistas se tornavam pessoas reais, tendo que lidar com sentimentos e ressentimentos. Cheguei quase a me transportar para aquela época, tal o grau de envolvimento em que me encontrava, como se a qual
É claro que Augusto brincava no monjolinho escondido da mãe. Se ela o pegasse agarrado àquelas pás, ficaria de castigo por dias sem sair do quarto. Aprendera a brincadeira na roda com José, filho do caseiro de confiança da família. Os dois se divertiam à beça correndo atrás dos patos e galinhas, armando arapuca pra pegar passarinho e pisando nos grãos de café que secavam no terreiro, acima do prédio onde fora colocada o moinho de café.Havia uma casa na cidade onde ele era obrigado a ficar durante o período escolar, no “Grupo Escolar Coronel Paulino Carlos”. Mas era na fazenda que ele se sentia livre e feliz. Se pudesse não deixaria aquele lugar por nada do mundo. Houve um certo desconforto quando soube que a mãe lhe daria um irmão. Afinal ele já estava com sete anos, bastante acostumado a ser filho único e receber to
Ângelo, que acabara de chegar da América do Norte, observava o irmão pelo canto do olho. Sabia que estava sofrendo. Todos estavam. Sentia medo pela mãe, por quem era extremamente devotado. Por tê-lo tido em idade tardia e quase perdido aquela criatura pequenina e frágil, ela o mimara. Estragara o menino, dizia o pai. Não que ele não estivesse sentindo sua morte, contudo, ainda tinha a mãe. Ela era o seu esteio. Não era tão próximo do irmão quanto gostaria, mas, se a vida não quis que fosse assim, nada podia ser feito. Sabia que o pai preferia o irmão e não se ressentia disso. Não muito, pelo menos. Não era um homem do mato como Augusto e sim, sua preferência era a cidade e seus encantos. Suas mulheres e festas. Podia circular pela aristocracia Paulistana à vontade, quando estava no País. Era sempre o primeiro a ser chamado para as rodas do C
Da cadeira onde estava, perscrutando o irmão, Ângelo pensava se teria alguma chance agora que o pai se fora. Era óbvio que Augusto não deixaria a rentável fazenda em suas mãos, contudo, talvez pudesse convencer o irmão a investir no mercado automobilístico ou, quem sabe, na indústria têxtil. Talvez precisasse que a mãe o ajudasse e nisso não via problema, já que, com certeza, os bens seriam divididos entre eles. Era nisso que ele acreditava enquanto esperava a presença do Dr. Villas Boas, o advogado da família. Mesmo que Augusto não aceitasse mergulhar em novos investimentos, ideias não lhe faltavam para usufruir de sua parte na herança. Sabia tudo o que estava acontecendo na Europa, com a ajuda de seus amigos dos tempos das Belas Artes, assim como em Nova York, já que acabara de chegar de lá. Não trazia boas notícias, entretanto, n&