Somente Eu Sei a Verdade
Somente Eu Sei a Verdade
Por: Amanda Kraft
Capítulo 1

                                             

                                                        Dias atuais

Lembro-me, como se fosse hoje, da primeira vez que me deparei com os recortes de jornais, de época, escondidos entre os álbuns de fotografia que mamãe guardava com tanto zelo. Ainda era um menino de calça curta, aprendendo a juntar as letras do alfabeto, me refestelando com a possibilidade de descobrir o significado de todas aquelas sílabas, enquanto as palavras se formavam perante os olhos. Senti o mundo se abrir à minha frente em face da cegueira que me deixava gradualmente, a partir do momento em que conseguia ler aquilo que via nas placas, livros e revistas, entendendo o significado daqueles caracteres misteriosos. E foi nessa avidez por palavras que o vi. Aquelas letras garrafais, estampadas no papel amarelado pelo tempo, surtiu um efeito poderoso em mim. Consegui ler o meu sobrenome naquela manchete de horror. Senti um frio subir pelo estômago e uma carga elétrica secar a boca, ao ver a palavra morte se formando devagar, pulsando num negro pálido.

Dobrei a folha como a havia encontrado e devolvi ao mesmo lugar. Mas não pense que a esqueci. Não poderia, mesmo que quisesse. Por que o nome da minha família estampava aquelas páginas, e se encontrava ligado a uma morte, num jornal? Mesmo com pouca idade sabia que algo assim só viraria matéria se fosse terrível demais e chocasse quem o lesse. Vovô havia morrido e nem uma foto sua, ou alguma matéria, saíra no jornal. Segui cabisbaixo por um tempo, até mamãe me perguntar o que eu tinha:

 — Parece que o gato comeu sua língua. Está tudo bem com você? — Desmanchou meu cabelo, enquanto colocava uma xícara de leite quente à minha frente.

— Tudo. — Respondi a uma mãe desconfiada.

— Você não costuma ficar tão calado assim. Não conseguiu juntar as letrinhas?

— Consegui. — Falei, enfiando um pedaço de pão na boca e mastigando, pensativo.

Ela me observou atentamente. Hoje sei que é isso que as mães fazem quando querem ler nossa alma, mas, naquele momento, senti medo de lhe dizer o que estava me incomodando. Engoli todo o leite, limpei a boca com as costas da mão e olhei para ela que me sorria, encostada na pia.

— Mamãe, nosso sobrenome é importante?

— É importante para nós. Por quê?

— Por nada. — Ela continuou perscrutando meu rosto, desconfiada.

— O que você realmente deseja saber? Quer saber se somos uma família abastada?

— O que é isso? — Pergunto, achando estranha aquela palavra

— Abastado significa que tem fartura. Ricos!

— Ah! Eu sei que não somos ricos. Não é isso.

— O que é então? Fala de uma vez. Não fica remoendo as coisas que a noite dá pesadelo.

— Eu não quero ter pesadelo.

— Então não fica guardando as coisas para si.

bom. Quero saber se somos importantes a ponto de virar notícia de jornal.

— Não. Não somos — respondeu um pouco ácida demais, tão diferente de sua forma gentil e doce de me ensinar as coisas da vida. — Por que da pergunta?

— Por nada.

— Vá brincar então. Vou fazer o jantar. Seu pai chega daqui a pouco. — Ordenou de forma um tanto exagerada.

Obedeci como me convinha, mas aquilo ficou matutando na minha cabeça infantil. De alguma forma, ela ficou estranha quando mencionei o jornal. Não havia nada ali, apenas palavras e mais palavras seguidas daquela que li com perfeição e que tanto me impressionara. Na ingenuidade de um garoto de seis anos, quase sete, assumi que leria aquele jornal nem que demorasse um ano.

Foi o que fiz. Todo dia, assim que voltava da escola, me trancava no quarto dizendo que fazia as lições de casa, contudo, me aventurava por aquele embrenhado de letras sinistras. Encontrei outros recortes escondidos entre as páginas dos velhos álbuns de família e um deles até me trouxe pesadelos. Havia dois homens caídos, um quase ao lado do outro, no chão de uma sala e, numa foto menor ao lado da primeira, uma mulher. Ela estava caída em um corredor escuro, de barriga para baixo, e parte de seu rosto era visível. Usavam roupas estranhas, diferente das que usávamos no dia a dia. Aquilo tudo parecia ser muito antigo. Olhei para aqueles personagens sem entender porque alguém sairia num jornal dormindo no chão. Qual o sentido de ser fotografado dessa forma? Então meu corpo gelou inteirinho quando consegui decifrar outra palavra: Assassinato. E olha que essa foi bem difícil.

Mamãe e papai estavam sempre me fazendo posar para máquinas fotográficas. Ela dizia que queria registrar todo o meu crescimento. Nesse álbum visível na estante da sala, no meio dos livros de meu pai, havia dezenas de poses minhas.  Em bebê usando apenas fraldas, deitado na cama sorrindo com a boca desdentada, até a minha primeira comunhão na Catedral. Ainda hoje, sendo eu um homem barbado, mamãe continua com essa mania de registrar todos os meus passos. E vive me atazanando, perguntando quando vou me casar e lhe dar netos.

Aqueles corpos estendidos no chão seguiram comigo durante toda minha infância e adolescência. Assim que fui dominando a arte da leitura, devorei todo aquele material e pude entender que pessoas, que carregavam o sobrenome igual ao meu, haviam se desentendido a ponto de um matar o outro, matar a mulher e depois se suicidar. Esse foi o veredito escandaloso daquela notícia datada de maio de 1930.

Nem preciso dizer que não perdia uma oportunidade de tentar descobrir, pela boca de meus pais, o que realmente aconteceu com aquelas pessoas e quem seriam elas. Toda vez que andava, feito um gato, pela porta de acesso do corredor à sala e os ouvia conversando entre si, ou com alguma visita – geralmente um parente de papai – sobre o malfadado caso, me escondia atrás da porta e de lá ouvia, de olhos arregalados, absorvendo tudo e guardando na memória. Papai até hoje reclama que se não fosse o “maldito governo” nós estaríamos ricos.

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