É fato dizer que a tragédia toda não se deu na casa da fazenda e sim, na da cidade. Mas algo estranho me ocorreu ao entrar no banheiro da parte de baixo do sobrado. Não sou dado às crendices, como já disse anteriormente, contudo, me senti incomodado naquele lugar. O passeio se estendeu pelos jardins das cercanias e, aos meus olhos juvenis, me encantei com a fonte que ainda derrama suas águas pelo jarro da dama de pedra.
Tudo isso ainda vive em minha memória. Contribuiu para o cenário que pretendo montar ao reviver a trama dessas páginas transcritas por tia Eneida. Pego-me olhando avidamente para a foto da mulher morta ao lado dos dois irmãos, pensando qual seu papel no desfecho. Soube seu nome através de tia Eneida: Mercedes Medeiros, filha do Coronel Artur de Medeiros — noiva de Augusto. Por que seu fim trágico junto a eles?
Tantas coisas sem sentido envolvem esse caso. Mas estou determinado a juntar as peças e contar os últimos acontecimentos daquela noite de maio de 1930. O que me deixa angustiado é como terminá-lo, com tantas dúvidas apontadas por tia Eneida? Não sei se acharei a solução para tal fato depois de mais de oitenta anos. Poderia até criar um final, mas não seria justo para ninguém.
Estava entretido na leitura quando o celular tocou e, para meu alívio, ouvi justamente a voz de quem eu queria:
— E aí, gatão? Tava querendo falar comigo? — Perguntou a voz levemente rouca de Marina.
— Preciso de você.
— Manda.
— Preciso que me ajude num projeto. É coisa grande.
— Hum... Quão grande?
— Bastante. Acho que já te contei a estória da minha família, não foi?
— Entre umas cervejas e outras.
— Pois bem. Tô pretendendo fazer um longa.
— Uau. Sério? Tem certeza? Quer dizer... Sua família vai gostar de toda essa exposição? Pelo que me lembro seus velhos tios tiveram uma briga e tanto por causa da fazenda, não foi?
— Foi, mas qual família já não brigou por causa de herança? Além do mais isso já faz mais de oitenta anos?
— Bem, sei lá. Velhas feridas às vezes não cicatrizam. Mas isso não é da minha conta. Você tem ideia do desfecho? Alguém sabe o que realmente aconteceu com eles? Como vai fazer? Onde pretende filmar? Vai usar cenário, vai ser in loco, e dinheiro pra isso?
— É aí que você entra minha querida.
— Eu sabia. Você só me procura para arrumar mais serviço, como se eu não fizesse nada o dia inteiro!
— Eu sei que é a melhor no que faz.
— Não para você, meu bem, que fique bem claro.
— Um dia, minha cara, a trago para trabalhar comigo.
— Como se isso fosse possível, além do mais, você não faz o meu tipo.
— Vai me ajudar, ou não? — Pergunto ansioso e um tanto irritado.
Marina é minha melhor amiga. Trabalha para uma produtora de renome. Fizemos um curso de teatro em São Paulo e foi nos palcos que a conheci. Fiquei vidrado nela assim que a vi interpretando Leandra, uma ativista forte sem papas na língua. Bem ao contrário da doce Marina. Na época ela namorava o Paulo, um ator experiente que gostava de mostrar a todos o quanto sabia e o quanto nos desprezava. Uma espécie de Bradley Cooper, que deixa as garotas suspirando quando ele passa, mas de longe não tão bom ator quanto ele. Até hoje não entendo como ela pôde se apaixonar por um ser desprezível como esse! Pode até ser uma certa dor de cotovelo amparando essas palavras fortes, contudo, apartando-me do fato de ele manter constantemente as mãos na cintura de Marina, ainda o vejo como ele é. Desprezível. Mas tudo isso já passou. Tornamo-nos amigos e ainda somos até hoje, mesmo não sendo tão belo quanto ele, apesar de algumas amigas dizerem que lembro Johnny Deep, ainda tendo esperança de que um dia ela possa olhar para mim com outros olhos, já que me mantenho apaixonado por ela. Não tomo a iniciativa, pois não quero estragar nossa amizade.
— É claro que vou. Diga o que quer que eu faça.
— Bom, ainda não tenho o processo muito claro. Atores e atrizes eu consigo, agora o mais difícil é patrocinador. Você sabe como a coisa funciona.
— Entendo. E é aí que entro, certo?
— Mais ou menos. — Respondo envergonhado.
— Você sabe que podemos conseguir patrocínio pela Lei Rouanet.
— Sei. Mas isso é meio complicado, não é?
— Eu posso fazer o projeto para você. Mas sabe que tenho que informar todos os custos nos mínimos detalhes, inclusive com propaganda, vinte por cento de ingressos gratuitos, custos com roupas, cenário, iluminação, roteirista, direção...
— Ei, Marina, já chega. Eu ainda nem coloquei no papel...
— Mas já devia ter feito se quiser ir por esse caminho.
— Deve ter outro.
— Bom, farei o projeto pelas vias normais: o mecenato. Se aprovado você terá que ir atrás das empresas, correndo o risco de ouvir um belo e sonoro NÃO. Não é toda empresa que tem um superlucro para abater no Imposto de Renda.
— Qual é mesmo o valor do abatimento? Sabe que nunca cuidei dessas coisas pessoalmente.
— Sei. Bom, pessoa jurídica pode doar quatro por cento do que pagam e obterão cem por cento de abatimento fiscal. Mas as físicas também podem doar. Para os ricos, se você conhecer algum que queira jogar dinheiro fora...
— Você está engraçadinha hoje, Marina. Quer falar sério?
Ela me olhou, atrevida, e ergueu o queixo. Meu coração disparou ao ver a expressão de seus olhos.
Marina sorriu, mordendo os lábios e aguardei sua explanação. Devo dizer que adorava ouvi-la.— Gosto de implicar com você. Mas voltando, as físicas podem doar até seis por cento. E para convencê-los você terá que dar ênfase às vantagens de terem seus nomes vinculados ao seu projeto, pois terá até trinta por cento do valor arrecadado para usar com propaganda e marketing.— Entendi.— Senti certo desespero em sua voz, contudo há outra maneira.— Espero que seja melhor do que gastar sola de sapato.— Quem quer as coisas tem que suar a camisa, querido. Se você tiver um amigo no Ministério da Cultura, aí você pode falar com ele e fazer seu projeto pleiteando o incentivo federal. Então você receberá todo o dinheiro do Governo Federal.— Isso é realmente possíve
— Uau! Você é rápido, hein? Já escreveu tudo isso? — Perguntou admirada, dando-me chance de mergulhar no brilho de seus olhos.— Eu vivi essa estória a minha vida inteira. As palavras meio que saem pelas teclas. Veja isso: A posição dos corpos não faz sentido. Como um tiro pode ser disparado de frente, por Ângelo, matando o irmão, e a perícia dizer que ele se suicidou na sequência, se seu corpo está posicionado quase ao lado do corpo de Augusto? Os dois de barriga para cima. Note que suas mãos quase se tocam. Isso é impossível! — Digo, mostrando-lhe a velha foto, enquanto ela franze o cenho.— Bem, talvez ele tenha se postado ao lado do irmão antes de se matar. Justificaria a posição.— Sim. Mas por que faria isso? Veja como dá a impressão de que os corpos parecem ter sido arruma
O que havia me inspirado a começar o roteiro da obra, se apagou como vela em frente a uma rajada de vento. Estava tudo em minhas mãos, contudo, a falta de uma finalização me deixava angustiado. Não queria terminar apenas para dizer que colocara no papel tudo o que sabia. Queria mais. Queria descobrir a verdade. Talvez essa inquietude se devesse ao sobrenome da minha família. Ninguém gosta de ter um palco de tragédia pairando sobre sua cabeça. E quanto mais me aprofundava no assunto, mais dúvida tinha. O que realmente aconteceu àquela família? Gente que não conheci, mas que pareciam viver ao meu lado, me instigando. Fechei os olhos e me deixei levar pelos fatos, formando imagens onde os protagonistas se tornavam pessoas reais, tendo que lidar com sentimentos e ressentimentos. Cheguei quase a me transportar para aquela época, tal o grau de envolvimento em que me encontrava, como se a qual
É claro que Augusto brincava no monjolinho escondido da mãe. Se ela o pegasse agarrado àquelas pás, ficaria de castigo por dias sem sair do quarto. Aprendera a brincadeira na roda com José, filho do caseiro de confiança da família. Os dois se divertiam à beça correndo atrás dos patos e galinhas, armando arapuca pra pegar passarinho e pisando nos grãos de café que secavam no terreiro, acima do prédio onde fora colocada o moinho de café.Havia uma casa na cidade onde ele era obrigado a ficar durante o período escolar, no “Grupo Escolar Coronel Paulino Carlos”. Mas era na fazenda que ele se sentia livre e feliz. Se pudesse não deixaria aquele lugar por nada do mundo. Houve um certo desconforto quando soube que a mãe lhe daria um irmão. Afinal ele já estava com sete anos, bastante acostumado a ser filho único e receber to
Ângelo, que acabara de chegar da América do Norte, observava o irmão pelo canto do olho. Sabia que estava sofrendo. Todos estavam. Sentia medo pela mãe, por quem era extremamente devotado. Por tê-lo tido em idade tardia e quase perdido aquela criatura pequenina e frágil, ela o mimara. Estragara o menino, dizia o pai. Não que ele não estivesse sentindo sua morte, contudo, ainda tinha a mãe. Ela era o seu esteio. Não era tão próximo do irmão quanto gostaria, mas, se a vida não quis que fosse assim, nada podia ser feito. Sabia que o pai preferia o irmão e não se ressentia disso. Não muito, pelo menos. Não era um homem do mato como Augusto e sim, sua preferência era a cidade e seus encantos. Suas mulheres e festas. Podia circular pela aristocracia Paulistana à vontade, quando estava no País. Era sempre o primeiro a ser chamado para as rodas do C
Da cadeira onde estava, perscrutando o irmão, Ângelo pensava se teria alguma chance agora que o pai se fora. Era óbvio que Augusto não deixaria a rentável fazenda em suas mãos, contudo, talvez pudesse convencer o irmão a investir no mercado automobilístico ou, quem sabe, na indústria têxtil. Talvez precisasse que a mãe o ajudasse e nisso não via problema, já que, com certeza, os bens seriam divididos entre eles. Era nisso que ele acreditava enquanto esperava a presença do Dr. Villas Boas, o advogado da família. Mesmo que Augusto não aceitasse mergulhar em novos investimentos, ideias não lhe faltavam para usufruir de sua parte na herança. Sabia tudo o que estava acontecendo na Europa, com a ajuda de seus amigos dos tempos das Belas Artes, assim como em Nova York, já que acabara de chegar de lá. Não trazia boas notícias, entretanto, n&
Casaram-se com pompa na Igreja de São Pedro da Sé no ano de 1887. Ele a levara para morar na Fazenda Santa Clara, entretanto, Afonsina era visivelmente uma moça da cidade. Não que não gostasse do ar puro do campo. Apenas gostava de passeios de braços dados com o marido pelas ruas empoeiradas da cidade. Enzo entendeu a necessidade da moça. Era ainda muito jovem. Construiu um casarão para ela no centro da jovem São Carlos. Não poupou esforços em fazê-lo. Influenciado pela construção do Palacete Conde do Pinhal, a mando de Antônio Carlos de Arruda Botelho, empolgado com a vinda da Família Imperial à cidade, contratou o mesmo engenheiro, Davi Cassinelli, que faria o casarão do Conde. Tudo para agradar a jovem esposa. É claro que a sua construção não fora tão esplendorosa quando à do Conde, contudo, ladrilhos e
Enzo sentiu-se traído. O mundo se abria a seus pés, esperando-o mergulhar em suas entranhas até se afogar, sem encontrar algo em que se apoiar.— Tenho certeza de que papai não fez por mal, Enzo — disse Enrico, acanhado, enquanto rodava o chapéu nas mãos. — Ele só não esperava morrer tão cedo.— E eu não esperava que meus próprios irmãos se comportassem como dois abutres!Afonsina tudo ouvia na sala ao lado. Mesmo que quisesse fazer o que a etiqueta mandava — não ouvir a conversa dos outros atrás da porta — tornou-se impossível. Três italianos discutindo era como rugido de três leões famintos.— Não vou vender a fazenda — Grunhiu Enzo, esmurrando a mesa.— Não devia ter feito sociedade com papai. Agora temos que vender. Quero minha parte no espólio. &md