— Uau! Você é rápido, hein? Já escreveu tudo isso? — Perguntou admirada, dando-me chance de mergulhar no brilho de seus olhos.
— Eu vivi essa estória a minha vida inteira. As palavras meio que saem pelas teclas. Veja isso: A posição dos corpos não faz sentido. Como um tiro pode ser disparado de frente, por Ângelo, matando o irmão, e a perícia dizer que ele se suicidou na sequência, se seu corpo está posicionado quase ao lado do corpo de Augusto? Os dois de barriga para cima. Note que suas mãos quase se tocam. Isso é impossível! — Digo, mostrando-lhe a velha foto, enquanto ela franze o cenho.
— Bem, talvez ele tenha se postado ao lado do irmão antes de se matar. Justificaria a posição.
— Sim. Mas por que faria isso? Veja como dá a impressão de que os corpos parecem ter sido arrumados. Os dois estão com as pernas esticadas e os braços ao lado do corpo. Isso é possível? Quer dizer, você no mínimo deveria ter uma perna aberta, caída para o lado, ou mesmo um dos braços de Augusto deveria estar erguido, se protegendo da fúria do irmão. No entanto, Augusto está com a mão sobre o peito como se tivesse dormindo.
— É. Pensando bem, faz sentido o que está dizendo.
— Faz todo o sentido, Marina, e tem mais: quem se suicida com um tiro na têmpora e dois no coração?
— Dois tiros? Você nunca mencionou que foram dois tiros no coração.
— Fiquei sabendo pelos relatos de tia Eneida. E quer saber do mais incrível nisso tudo?
— Ainda tem mais?
— A moça. Veja a foto. Está deitada de bruços, no corredor que leva até a copa e a cozinha.
— Sim. Parece que foi alvejada antes que os irmãos se matassem.
— Exato, contudo, por que seu rosto foi desfigurado?
— Desfigurado? Santo Deus! Isso tá ficando pior a cada palavra!
— Também foi o que descobri por tia Eneida. Nenhum jornal citou isso. Parece que ela teve acesso a alguns documentos através de um antigo aluno que se formou policial.
— Caramba! — disse sentando-se no sofá, um pouco pálida — Você tem certeza que quer continuar com isso?
— Tenho. Preciso descobrir o que aconteceu.
— Mas como fará isso? Quer dizer, as pessoas envolvidas já estão mortas. E de que adianta?
— Quero provar que Ângelo não matou Augusto. Eles tinham lá suas diferenças, mas tenho certeza de que não matou o irmão.
— Não sei, Alberto. Não gosto muito disso. É uma estória real, a estória da sua família. Um filme sobre isso...
— Vou terminar o roteiro, Marina. Não sei como chegar ao final, mas vou descobrir. Porei um anúncio na rede procurando por pessoas que se lembrem do caso. Qualquer coisa que puder ajudar fará com que eu chegue à verdade.
— Isso é uma loucura!
— Sei que tem pessoas fascinadas por essa estória. A casa tá lá. Muita gente a visita à procura de sensações. Muitas pessoas procuraram pelas discrepâncias da tragédia. Vou anunciar que faremos uma peça sobre eles...
— Peça? Não vai fazer o filme?
— Ainda não sei. Talvez seja mais fácil uma peça de teatro. Nós podemos filmar a fazenda e projetá-la atrás do cenário principal. Ainda não sei. Estou focado no enredo.
— Entendi. Então não precisa mais de mim? — Perguntou com um brilho estranho nos olhos.
— Vou sempre precisar de você, Marina.
Ela me olhou, inquieta. Respondi com toda a certeza que sentia na alma. Pensei tê-la visto vacilar por alguns instantes, mas logo rompeu o contato visual fazendo aquele pequeno lance deixar de existir. Sorri com o canto da boca e voltei os olhos para a tela.
— Talvez dê certo — disse, dando de ombros — Talvez apareça alguém que saiba o que aconteceu. Alguém disposto a falar.
— É o que espero. De verdade! Vamos jantar? Acho que já está pronto.
— Ainda bem. Estou faminta.
Conversamos sobre banalidades enquanto devorávamos o macarrão. Eu adorava vê-la comer. Não tinha nenhum pudor quando se tratava de seu estômago. Cheguei a sair com garotas que apenas beliscavam a comida, não sei se para me impressionar, ou se por conta de alguma dieta maluca. Mas com Marina não! Ela comia com sofisticação e pronto.
— O que foi? Por que está me olhando com essa cara?
— Nada! — Disse sorrindo.
— Eu disse que estava faminta — sorriu enrubescendo — E confesso que você sabe fazer um macarrão danado de bom. — limpou os lábios e sorveu mais um pouco do vinho — Nossa! Já está tarde. — Comentou embaraçada, checando o celular.
— Nem tanto assim. — Respondi, escondendo minha decepção. Queria ficar um pouco mais com ela.
— Bom. Depois de saciar a fome e a sede, dificilmente conseguirei prestar a atenção em nossa conversa sem cochilar. Acordei super cedo. Mas não pense que não estou interessada — levantou-se e levou o prato à pia — Quer que arrume para você antes de sair?
— É claro que não. Eu faço isso.
— Por isso adoro você, querido — disse bocejando — Acho que já vou indo, Alberto. Me liga se descobrir alguma coisa através do anúncio. — Pediu, à porta de entrada.
— Você poderia me ajudar a escrever o roteiro, ou mesmo, revisá-lo para mim. Poderíamos ler as anotações juntos. Talvez me ajude a ver alguma coisa que perdi — pedi tentando não mostrar ansiedade — Sabe, duas cabeças...
— Não sei. Não levo muito jeito para escrita, mas, de repente pode ser uma ideia interessante.
— Poderíamos ler e discutir as passagens...
— Ok. Você me convenceu. Quando começamos?
— Que tal agora?
— Já está tarde. Amanhã no mesmo horário?
— Com certeza.
Ela se foi e por um momento achei que, através da tragédia dos irmãos, eu pudesse encontrar a felicidade ao lado de Marina. Houve alguma coisa entre nós. Num breve lampejo senti sua alma ligada à minha. Suspirei e voltei ao trabalho de juntar as peças cronologicamente, através dos relatos de Tia Eneida.
O que havia me inspirado a começar o roteiro da obra, se apagou como vela em frente a uma rajada de vento. Estava tudo em minhas mãos, contudo, a falta de uma finalização me deixava angustiado. Não queria terminar apenas para dizer que colocara no papel tudo o que sabia. Queria mais. Queria descobrir a verdade. Talvez essa inquietude se devesse ao sobrenome da minha família. Ninguém gosta de ter um palco de tragédia pairando sobre sua cabeça. E quanto mais me aprofundava no assunto, mais dúvida tinha. O que realmente aconteceu àquela família? Gente que não conheci, mas que pareciam viver ao meu lado, me instigando. Fechei os olhos e me deixei levar pelos fatos, formando imagens onde os protagonistas se tornavam pessoas reais, tendo que lidar com sentimentos e ressentimentos. Cheguei quase a me transportar para aquela época, tal o grau de envolvimento em que me encontrava, como se a qual
É claro que Augusto brincava no monjolinho escondido da mãe. Se ela o pegasse agarrado àquelas pás, ficaria de castigo por dias sem sair do quarto. Aprendera a brincadeira na roda com José, filho do caseiro de confiança da família. Os dois se divertiam à beça correndo atrás dos patos e galinhas, armando arapuca pra pegar passarinho e pisando nos grãos de café que secavam no terreiro, acima do prédio onde fora colocada o moinho de café.Havia uma casa na cidade onde ele era obrigado a ficar durante o período escolar, no “Grupo Escolar Coronel Paulino Carlos”. Mas era na fazenda que ele se sentia livre e feliz. Se pudesse não deixaria aquele lugar por nada do mundo. Houve um certo desconforto quando soube que a mãe lhe daria um irmão. Afinal ele já estava com sete anos, bastante acostumado a ser filho único e receber to
Ângelo, que acabara de chegar da América do Norte, observava o irmão pelo canto do olho. Sabia que estava sofrendo. Todos estavam. Sentia medo pela mãe, por quem era extremamente devotado. Por tê-lo tido em idade tardia e quase perdido aquela criatura pequenina e frágil, ela o mimara. Estragara o menino, dizia o pai. Não que ele não estivesse sentindo sua morte, contudo, ainda tinha a mãe. Ela era o seu esteio. Não era tão próximo do irmão quanto gostaria, mas, se a vida não quis que fosse assim, nada podia ser feito. Sabia que o pai preferia o irmão e não se ressentia disso. Não muito, pelo menos. Não era um homem do mato como Augusto e sim, sua preferência era a cidade e seus encantos. Suas mulheres e festas. Podia circular pela aristocracia Paulistana à vontade, quando estava no País. Era sempre o primeiro a ser chamado para as rodas do C
Da cadeira onde estava, perscrutando o irmão, Ângelo pensava se teria alguma chance agora que o pai se fora. Era óbvio que Augusto não deixaria a rentável fazenda em suas mãos, contudo, talvez pudesse convencer o irmão a investir no mercado automobilístico ou, quem sabe, na indústria têxtil. Talvez precisasse que a mãe o ajudasse e nisso não via problema, já que, com certeza, os bens seriam divididos entre eles. Era nisso que ele acreditava enquanto esperava a presença do Dr. Villas Boas, o advogado da família. Mesmo que Augusto não aceitasse mergulhar em novos investimentos, ideias não lhe faltavam para usufruir de sua parte na herança. Sabia tudo o que estava acontecendo na Europa, com a ajuda de seus amigos dos tempos das Belas Artes, assim como em Nova York, já que acabara de chegar de lá. Não trazia boas notícias, entretanto, n&
Casaram-se com pompa na Igreja de São Pedro da Sé no ano de 1887. Ele a levara para morar na Fazenda Santa Clara, entretanto, Afonsina era visivelmente uma moça da cidade. Não que não gostasse do ar puro do campo. Apenas gostava de passeios de braços dados com o marido pelas ruas empoeiradas da cidade. Enzo entendeu a necessidade da moça. Era ainda muito jovem. Construiu um casarão para ela no centro da jovem São Carlos. Não poupou esforços em fazê-lo. Influenciado pela construção do Palacete Conde do Pinhal, a mando de Antônio Carlos de Arruda Botelho, empolgado com a vinda da Família Imperial à cidade, contratou o mesmo engenheiro, Davi Cassinelli, que faria o casarão do Conde. Tudo para agradar a jovem esposa. É claro que a sua construção não fora tão esplendorosa quando à do Conde, contudo, ladrilhos e
Enzo sentiu-se traído. O mundo se abria a seus pés, esperando-o mergulhar em suas entranhas até se afogar, sem encontrar algo em que se apoiar.— Tenho certeza de que papai não fez por mal, Enzo — disse Enrico, acanhado, enquanto rodava o chapéu nas mãos. — Ele só não esperava morrer tão cedo.— E eu não esperava que meus próprios irmãos se comportassem como dois abutres!Afonsina tudo ouvia na sala ao lado. Mesmo que quisesse fazer o que a etiqueta mandava — não ouvir a conversa dos outros atrás da porta — tornou-se impossível. Três italianos discutindo era como rugido de três leões famintos.— Não vou vender a fazenda — Grunhiu Enzo, esmurrando a mesa.— Não devia ter feito sociedade com papai. Agora temos que vender. Quero minha parte no espólio. &md
Ela me encarou com o queixo erguido, desafiando-me.— Bom, — disse estalando a língua — creio estar certa em relação a esse Ângelo. Acho que só pensa em se divertir. Realmente tem algo nele que me incomoda. — Concluiu, voltando ao seu normal, visivelmente querendo mudar de assunto.— Estamos apenas no começo, Marina. Muita água vai rolar. Se ficar quietinha, posso continuar.— Não é de o meu feitio ficar calada. Lembre-se, estou aqui para ajudar.— Eu sei, querida. — Não resisti em pegar-lhe a mão e olhar profundamente em seus belos olhos. Sorri, diante de seu constrangimento, continuando com a leitura. As coisas começavam a ficar divertidas. Sabia que estava em um jogo em que poderia sair perdedor. Precisava arriscar, para minha própria saúde mental. Viver um amor platônico é interessante por
Augusto encara Ângelo, de cenho franzido. O rumo daquela conversar o incomoda.— Do que exatamente está falando? Estamos exportando café como nunca.— Isso tende a acabar.— Como pode saber? Por acaso agora se tornou adivinho? — Desdenhou Augusto.— Não. Não me tornei — encarou o irmão com olhos apertados — Se você se desse ao trabalho de me considerar um homem de negócios, e não apenas um moleque gastador de dinheiro, saberia que não estou dizendo bobagem.— Você? Um homem de negócios?— Se a fazenda também não fosse minha eu bem que deixaria você se arrebentar inteiro. — Disse Ângelo, ruborizado.— A fazenda será sua depois que trabalhar nela!— Estamos correndo o risco de perdê-la! Eu sei o que estou dizendo. Se vendê-la agora, fi