Marina sorriu, mordendo os lábios e aguardei sua explanação. Devo dizer que adorava ouvi-la.
— Gosto de implicar com você. Mas voltando, as físicas podem doar até seis por cento. E para convencê-los você terá que dar ênfase às vantagens de terem seus nomes vinculados ao seu projeto, pois terá até trinta por cento do valor arrecadado para usar com propaganda e marketing.
— Entendi.
— Senti certo desespero em sua voz, contudo há outra maneira.
— Espero que seja melhor do que gastar sola de sapato.
— Quem quer as coisas tem que suar a camisa, querido. Se você tiver um amigo no Ministério da Cultura, aí você pode falar com ele e fazer seu projeto pleiteando o incentivo federal. Então você receberá todo o dinheiro do Governo Federal.
— Isso é realmente possível?
— Você não lê as notícias? Por que acha que há tanta discussão sobre artistas que recebem milhões da Lei Rouanet? É claro que a grande maioria fala o que não sabe, por desconhecer a lei, mas, onde há fumaça há fogo. Acredito que todo esse rebuliço, de alguns gritando contra os artistas, seja por terem recebido incentivo de algum “amigo do Ministério”.
— Uau. Você está me desanimando...
— Qual nada, bobo. Ainda há o PROAC. Esse, sinceramente falando, acho mais fácil uma vez que qualquer empresa do estado de São Paulo, que esteja em dia com o ICMS, pode doar. Nesse caso, o abatimento se dá diretamente no imposto mensal que as empresas têm que pagar. Você terá muito mais empresas como doadoras. Só tem um problema.
— Eu sabia. Qual é?
— O PROAC é quem estipula o valor do seu projeto e também o valor que cada empresa pode doar.
— Entendi...
— Ainda está disposto a seguir em frente?
— Não sei como posso continuar sendo seu amigo. Você é tão incentivadora...
— Sou pragmática, querido. Tenho que ser. De que adianta falsas esperanças? Tenho que esmiuçar a realidade.
— Eu sei. Sei bem.
— Que tal se eu passar da sua casa logo mais e a gente conversar melhor? Tem aquele vinho que eu gosto?
— Tenho. Obrigado, Marina. Você foi demais...
— Ah, Alberto!
— Sim.
— Faz macarrão. Vou sair daqui faminta.
É claro que eu sabia bem sobre empréstimos, lei Rouanet e afins. Não era meu primeiro projeto, entretanto, a voz de Marina é tão encantadora. Estava ansioso para nosso encontro.
Marina acabou me fazendo pensar sobre o caminho escolhido para o projeto. Ainda não tinha formatado na cabeça todas as possibilidades. Entretanto, por mais complicado que pudesse ser, jurei que não desistiria. Minha família precisava de um desfecho para a tragédia. Na verdade, eu precisava. Não gosto de estórias mal resolvidas, e saber que nosso sobrenome ainda se encontrava em todos os sites, que trazem as fotos antigas de jornais, referente àquele dia, me incomoda bastante. Sentei-me à mesa com o material de tia Eneida espalhado. Seguindo as páginas, fui escrevendo o roteiro, pensando na casa da fazenda e no casarão do centro da cidade. Eu realmente via os personagens caminhando, ganhando vida na minha mente. Quando você sabe tudo o que vai acontecer, fica fácil escrever. Bem diferente de quando se tem apenas a ideia.
Depois de algumas horas dando corpo aos personagens, descansei. Mal estava enxergando a tela do notebook. Pensamentos começaram a brotar, me desviando do foco original. Talvez um filme fosse demais para mim, levando em consideração minha conversa com Marina. Uma peça de teatro seria muito mais fácil. Resolveria muito a questão da filmagem in loco. Olhei no relógio e já estava quase na hora dela chegar. Comecei a ficar ansioso, como sempre acontece quando sei que vou encontrá-la. Ainda pareço um adolescente que custa a manter o coração calmo e a palma da mão seca.
Já tive muitas namoradas, mas nenhuma causa tanto quanto Marina. E ela não faz nem ideia de que às vezes apenas vejo sua boca se mexendo, enquanto a mente se perde nas suas curvas e naqueles cabelos curtos flamejantes e macios. E lá estava eu, parado à porta, vendo-a entrar com sua bolsa gigantesca, cuja alça descansava cruzada no peito.
— E aí, bonitão? — entrou, beijando meu rosto — Tô morrendo de fome.
— Novidade! Vá sentando que vou abrir o vinho.
— Hum! O cheiro tá delicioso. — Disse, jogando a bolsa no sofá e indo à cozinha, em direção às panelas.
— Não mexa em nada. — Gritei, apanhando a garrafa no aparador da sala.
— E como sabe que estou mexendo? — Perguntou da cozinha.
— Como se eu não te conhecesse. — Respondi, postando-me atrás dela.
— Tá com uma cara boa. — Deu-me um sorriso encabulado.
— Eu ou a comida?
— A comida. — Respondeu, empurrando-me.
Sentou-se à mesa, agora posta para dois, e começou a tagarelar sobre o tráfego, o tempo e outras coisas sem importância. Marina é dessas pessoas que não percebem o quanto são encantadoras. Olhos, da cor da jabuticaba antes de atingir o amadurecimento, emolduram um rosto oval de pele clara, destacado pelos fios dourados. E eu só pensava em sentir sua pele macia contrastando com a minha, apenas alguns tons mais escura.
— E então? Você parece meio distante. Aconteceu alguma coisa? Estou falando muito? — Encarando-me com os olhos apertados.
— É claro que não. — Abaixei os meus, envergonhado.
— Vi que esteve escrevendo.
Disse levando a taça à boca, indicando a mesa coberta de papeis amarelados. O notebook encontrava-se aberto e o descansa de tela corria de um lado para outro, enquanto ela me encarava, esperando uma resposta.
— Sim. Quanto mais me aprofundo nos fatos, mais tenho certeza de que está faltando alguma coisa. Não faz sentido.
— O que, basicamente, não faz sentido?
— A forma como a polícia encerrou o caso, por exemplo. Parece que não deram a devida importância à descoberta da verdade. Vários pontos foram negligenciados e só percebi isso nas anotações de tia Eneida.
— Isso tá ficando interessante. Pode me mostrar? — Pediu, erguendo-se da pequena mesa de jantar.
— Tudo bem. — Anui, levando-a até o notebook e abrindo o texto.
— Uau! Você é rápido, hein? Já escreveu tudo isso? — Perguntou admirada, dando-me chance de mergulhar no brilho de seus olhos.— Eu vivi essa estória a minha vida inteira. As palavras meio que saem pelas teclas. Veja isso: A posição dos corpos não faz sentido. Como um tiro pode ser disparado de frente, por Ângelo, matando o irmão, e a perícia dizer que ele se suicidou na sequência, se seu corpo está posicionado quase ao lado do corpo de Augusto? Os dois de barriga para cima. Note que suas mãos quase se tocam. Isso é impossível! — Digo, mostrando-lhe a velha foto, enquanto ela franze o cenho.— Bem, talvez ele tenha se postado ao lado do irmão antes de se matar. Justificaria a posição.— Sim. Mas por que faria isso? Veja como dá a impressão de que os corpos parecem ter sido arruma
O que havia me inspirado a começar o roteiro da obra, se apagou como vela em frente a uma rajada de vento. Estava tudo em minhas mãos, contudo, a falta de uma finalização me deixava angustiado. Não queria terminar apenas para dizer que colocara no papel tudo o que sabia. Queria mais. Queria descobrir a verdade. Talvez essa inquietude se devesse ao sobrenome da minha família. Ninguém gosta de ter um palco de tragédia pairando sobre sua cabeça. E quanto mais me aprofundava no assunto, mais dúvida tinha. O que realmente aconteceu àquela família? Gente que não conheci, mas que pareciam viver ao meu lado, me instigando. Fechei os olhos e me deixei levar pelos fatos, formando imagens onde os protagonistas se tornavam pessoas reais, tendo que lidar com sentimentos e ressentimentos. Cheguei quase a me transportar para aquela época, tal o grau de envolvimento em que me encontrava, como se a qual
É claro que Augusto brincava no monjolinho escondido da mãe. Se ela o pegasse agarrado àquelas pás, ficaria de castigo por dias sem sair do quarto. Aprendera a brincadeira na roda com José, filho do caseiro de confiança da família. Os dois se divertiam à beça correndo atrás dos patos e galinhas, armando arapuca pra pegar passarinho e pisando nos grãos de café que secavam no terreiro, acima do prédio onde fora colocada o moinho de café.Havia uma casa na cidade onde ele era obrigado a ficar durante o período escolar, no “Grupo Escolar Coronel Paulino Carlos”. Mas era na fazenda que ele se sentia livre e feliz. Se pudesse não deixaria aquele lugar por nada do mundo. Houve um certo desconforto quando soube que a mãe lhe daria um irmão. Afinal ele já estava com sete anos, bastante acostumado a ser filho único e receber to
Ângelo, que acabara de chegar da América do Norte, observava o irmão pelo canto do olho. Sabia que estava sofrendo. Todos estavam. Sentia medo pela mãe, por quem era extremamente devotado. Por tê-lo tido em idade tardia e quase perdido aquela criatura pequenina e frágil, ela o mimara. Estragara o menino, dizia o pai. Não que ele não estivesse sentindo sua morte, contudo, ainda tinha a mãe. Ela era o seu esteio. Não era tão próximo do irmão quanto gostaria, mas, se a vida não quis que fosse assim, nada podia ser feito. Sabia que o pai preferia o irmão e não se ressentia disso. Não muito, pelo menos. Não era um homem do mato como Augusto e sim, sua preferência era a cidade e seus encantos. Suas mulheres e festas. Podia circular pela aristocracia Paulistana à vontade, quando estava no País. Era sempre o primeiro a ser chamado para as rodas do C
Da cadeira onde estava, perscrutando o irmão, Ângelo pensava se teria alguma chance agora que o pai se fora. Era óbvio que Augusto não deixaria a rentável fazenda em suas mãos, contudo, talvez pudesse convencer o irmão a investir no mercado automobilístico ou, quem sabe, na indústria têxtil. Talvez precisasse que a mãe o ajudasse e nisso não via problema, já que, com certeza, os bens seriam divididos entre eles. Era nisso que ele acreditava enquanto esperava a presença do Dr. Villas Boas, o advogado da família. Mesmo que Augusto não aceitasse mergulhar em novos investimentos, ideias não lhe faltavam para usufruir de sua parte na herança. Sabia tudo o que estava acontecendo na Europa, com a ajuda de seus amigos dos tempos das Belas Artes, assim como em Nova York, já que acabara de chegar de lá. Não trazia boas notícias, entretanto, n&
Casaram-se com pompa na Igreja de São Pedro da Sé no ano de 1887. Ele a levara para morar na Fazenda Santa Clara, entretanto, Afonsina era visivelmente uma moça da cidade. Não que não gostasse do ar puro do campo. Apenas gostava de passeios de braços dados com o marido pelas ruas empoeiradas da cidade. Enzo entendeu a necessidade da moça. Era ainda muito jovem. Construiu um casarão para ela no centro da jovem São Carlos. Não poupou esforços em fazê-lo. Influenciado pela construção do Palacete Conde do Pinhal, a mando de Antônio Carlos de Arruda Botelho, empolgado com a vinda da Família Imperial à cidade, contratou o mesmo engenheiro, Davi Cassinelli, que faria o casarão do Conde. Tudo para agradar a jovem esposa. É claro que a sua construção não fora tão esplendorosa quando à do Conde, contudo, ladrilhos e
Enzo sentiu-se traído. O mundo se abria a seus pés, esperando-o mergulhar em suas entranhas até se afogar, sem encontrar algo em que se apoiar.— Tenho certeza de que papai não fez por mal, Enzo — disse Enrico, acanhado, enquanto rodava o chapéu nas mãos. — Ele só não esperava morrer tão cedo.— E eu não esperava que meus próprios irmãos se comportassem como dois abutres!Afonsina tudo ouvia na sala ao lado. Mesmo que quisesse fazer o que a etiqueta mandava — não ouvir a conversa dos outros atrás da porta — tornou-se impossível. Três italianos discutindo era como rugido de três leões famintos.— Não vou vender a fazenda — Grunhiu Enzo, esmurrando a mesa.— Não devia ter feito sociedade com papai. Agora temos que vender. Quero minha parte no espólio. &md
Ela me encarou com o queixo erguido, desafiando-me.— Bom, — disse estalando a língua — creio estar certa em relação a esse Ângelo. Acho que só pensa em se divertir. Realmente tem algo nele que me incomoda. — Concluiu, voltando ao seu normal, visivelmente querendo mudar de assunto.— Estamos apenas no começo, Marina. Muita água vai rolar. Se ficar quietinha, posso continuar.— Não é de o meu feitio ficar calada. Lembre-se, estou aqui para ajudar.— Eu sei, querida. — Não resisti em pegar-lhe a mão e olhar profundamente em seus belos olhos. Sorri, diante de seu constrangimento, continuando com a leitura. As coisas começavam a ficar divertidas. Sabia que estava em um jogo em que poderia sair perdedor. Precisava arriscar, para minha própria saúde mental. Viver um amor platônico é interessante por