LAURA
O caminho até o trabalho a pé levava cerca de trinta minutos. Eu amava trabalhar naquele lugar. Os meus colegas estavam sempre de bom humor e entendia o que era ser um estrangeiro, já que cada um deles vinha de um canto do mundo. Acho que era isso que nos tornava tão unidos.
— Bom dia! — cumprimentei a todos ao entrar atrás do balcão.
— Bom dia, chica — retribuiu Angelita.
— Aí... Laura — chamou Salim. — Será que você pode atender aquele cara, ali? — pediu apontando discretamente com a cabeça, para o homem que vestia um terno azul-marinho caro, de três peças, e gravata vermelha de seda com finas listras prateadas. Ele estava de cabeça baixa com a sua mão direita guardada no bolso da frente, na calça, e segurando o celular com a esquerda, observando atentamente algo na tela fina e larga.
— Por quê? O que tem ele? — questionei curiosa e confusa.
Salim era sírio, um rapaz comunicativo e não rejeitava clientes. Ao contrário, adorava tanto quanto eu estar ali todos os dias. Era um cara que estava sempre feliz e sorrindo, mesmo pela manhã e em plena segunda-feira.
— Ele não gosta de mim e sempre me trata mal. Não estou com cabeça para isso hoje.
— Okay. Claro, tudo bem. Deixa comigo. — Sorri e dei-lhe uma piscada. — Próximo! — chamei alto e lá veio o homem alto e forte até mim.
— Um puro expresso sem açúcar — falou ríspido, com seu carregado sotaque italiano, sem nem ao menos dirigir o olhar a mim por educação.
— São um e oitenta e cinco — disse ao finalizar o pedido no monitor à minha frente.
Ele suspirou alto e retirou do bolso interno do seu paletó uma nota de cinco dólares, arremessando-a sobre o balcão, ignorando a minha mão estendida para apanhar o dinheiro. Salim tem razão, este homem é um mal-educado. Só porque veste um terno que custa mais do que o meu salário do mês inteiro, acha que pode destratar quem está aqui trabalhando? Ridículo!
Peguei o copo após devolver o seu troco e fui até a máquina de café. Encarei a torneira do expresso sem açúcar e depois a outra, ao lado. Não pensei duas vezes. Enchi o copo com o expresso adoçado, tampei e coloquei o copo sobre o balcão empurrando-o na sua direção.
— Aqui está, senhor.
O homem continuou como estava, de cabeça baixa. Ele apenas pegou o copo e saiu sem dizer sequer um simples “obrigado”.
— Otário! — xinguei baixo em português.
O homem deu alguns passos à frente e levou o copo à boca, cuspindo o café em uma moça que estava na fila, no mesmo instante em que o líquido quente tocou a sua língua.
— Mas que porra é essa? — gritou virando-se para o balcão e encarando-me furioso.
— O seu expresso, senhor — respondi com um sorriso sarcástico e implicante.
— Vou fazer você perder esse seu emprego de merda, sua gorda inútil! — berrou outra vez, chamando a atenção de todos ao nosso redor.
— Prefiro ser gorda a ignorante! Posso emagrecer se eu desejar. Mas e você? Como se pode consertar a sua arrogância? — perguntei, encarando-o séria e com raiva da sua ofensa.
— Você não tem noção com quem está mexendo, garota! — ameaçou-me baixo e entredentes, batendo o copo sobre o balcão. — Cuidado! Você pode se enforcar com a sua língua grande. — Encarou-me com os olhos cerrados.
Ele saiu da cafeteria e Salim veio até mim com um olhar risonho e tentando manter controle de uma gargalhada que estava prestes a explodir.
— Você é má! — disse ele.
— Má, não. Justa! Ao que se faz... se paga. — Sorri.
Italiano estúpido. Este é o mal desta raça. Todos são ignorantes e intolerantes.
***
Mais um fim de semana havia chegado e eu o passaria sozinha em casa, enquanto Caio trabalhava. Nunca saia à noite, sempre fui uma garota reclusa no meu canto. Quando morava no Brasil não era diferente, sempre detestei os bailes funks da comunidade onde morava. Do que eu gostava mesmo era de rock and roll, baby! As minhas inúmeras tatuagens grandes e pequenas espalhadas pelo meu corpo, diziam isso por si só. Para saber quais eram minhas bandas favoritas, bastava olhar para minhas camisetas no armário. De AC/DC a Legião Urbana.
Estava largada no sofá vestindo um short confortável e camiseta larga, devorando um pote de sorvete sem culpa e assistindo à programação aberta da TV, quando o meu celular tocou ao meu lado sobre o assento do estofado.
— Oi, Angelita — falei ao atender a ligação da minha amiga e colega de trabalho.
— Tenho uma palavra de três sílabas para você. Ba-la-da!
— Não. Eu estou fora.
— O que está fazendo?
— Saindo para um encontro — menti descaradamente, enfiando mais uma colherada do doce sorvete de baunilha com castanhas na boca.
— Sua mentirosa! — gritou. — Chego aí em meia hora e é melhor você estar pronta, porque se não vou arrastá-la como estiver vestida para a rua.
— Eu não quero sair. Esperei a semana toda pelo filme que vai passar daqui a pouco na TV.
— Chego em meia hora. — Desligou o telefone.
Respirei fundo e olhei as horas no celular. Eram oito da noite e Angelita, vulgo baladeira, queria levar-me para sair no sábado à noite e só Deus e ela sabiam para onde.
LAURATerminei o meu pote de sorvete e levantei indo ao banheiro. Após tomar banho, lavar os cabelos e depilar as pernas, saí enrolada na toalha e entrei no quarto.Abri o armário e encarei a coleção de peças escuras nos cabides. Acho que devo ter ficado ali de pé por uns dez ou quinze minutos. Vesti uma saia curta de couro preto com zíper na lateral e um body de renda na cor marsala. Calcei as minhas adoráveis botas pretas de camurça que iam até acima dos joelhos. Após secar os meus cabelos, fiz uma maquiagem caprichada no delineador e no batom vermelho, que sempre adorei.A campainha tocou e fui até a porta.— Olha só para ela! — gritou Angelita quando me viu.— Você disse trinta minutos. Tem mais de uma hora e meia, que nos falamos.— Olha só... Ninguém nasce assim, toda perfeita como você, Laurinha. — Fingiu irritação, colocando as mãos na cintura e revirando os olhos.— Para onde você vai me levar? — perguntei cruzando os meus braços à frente.— Para uma boate recém-inaugurada no
LAURACaminhei para uma beirada mais afastada e encarei a bela vista noturna da cidade. Encostei-me à mureta de proteção e fechei os meus olhos sentindo o vento forte contra o meu rosto bagunçando um pouco os meus cabelos de comprimento médio. Ao abrir os meus olhos, pensei na minha mãe. Como sentia a sua falta. Gostaria de ter tido tempo suficiente para levá-la conosco. Era muito triste ela não ter tido a chance de estar ali e lembrar-me do inferno que viveu até o seu último dia. Uma lágrima solitária e atrevida desceu por meu rosto. Será que esta dor e angústia nunca irá passar, ou ao menos diminuir?— Não soube ler o aviso de: "não se aproxime da mureta de proteção"? — perguntou uma voz masculina e rude atrás de mim, com um sotaque italiano.Aquele sotaque não me era estranho, eu reconhecia. Não fazia nem uma semana que queria mandar o dono daquela voz para o inferno. Sequei a minha bochecha esquerda e virei-me para trás encarando o homem estúpido que me destratou na cafeteria.— Nã
ENZOEntrei e observei o lugar lotado de gente bêbada e drogada. Andei em meio àquelas pessoas até chegar à escada que levava a área VIP elevada. Assim que me viu aproximar, o segurança retirou o cordão de veludo azul para eu passar. Lá em cima, caminhei até o homem que me devia milhões e fugia de mim há meses, gerando sérios problemas com o meu pai e o Conselho.— Salazar — chamei-o parando à sua frente.— A-Albertinni — gaguejou quando me viu.O seu rosto ficou pálido e os seus olhos arregalaram-se. Ele retirou apressado as mulheres que estavam sentadas no seu colo, jogando-as para os lados como sacos de batatas.— Sente-se, por favor — convidou-me com um sorriso forçado, indicando com a mão a poltrona à sua frente.— Obrigado. — Sentei-me. — Soube que está pagando bebida para todo mundo. Não vai pagar uma para mim também? — Sorri com sarcasmo.— Mas é claro! — respondeu-me e chamou uma garçonete. — O que vai beber? — A sua hospitalidade forçada me deixou irritado.— O seu sangue em
ENZOOs seus cabelos loiros com corte pouco abaixo do ombro balançavam com o vento forte que batia ao encontro do seu rosto. Droga! Como queria me lembrar da cor dos seus olhos. Será que são azuis como os meus? Ou castanhos?— Não soube ler o aviso de: "não se aproxime da mureta de proteção"? — chamei a sua atenção.— Não! Não sei ler! — respondeu com rispidez.Ainda com a mesma língua afiada. Isso me deixou um tanto furioso. Qual era o problema com aquela mulher? Não teve educação?— Além de estúpida, é analfabeta? De que parte do mundo você surgiu, criatura?Todos me devem respeito! Eu sou o capo da máfia italiana, porra! Ela também terá de me respeitar. Se não sabe quem sou, irei mostrar!— De um lugar onde te mandariam para o inferno com um pontapé na bunda, seu italiano arrogante! — respondeu alto e com raiva.Dei a ela um olhar duro e ameaçador.— O que faz aqui? Não notou que esse lugar não é para gente como você?— Por que você não vai à merda?Deu um passo de encontro a mim, l
ENZOAcordei com os raios do sol batendo no meu rosto. Abri os meus olhos vagarosamente, tentando me acostumar à claridade no quarto. Olhei para o lado procurando por meu garoto, mas não o encontrei. O relógio sobre o criado-mudo, ao lado da cama, mostrava que já passavam das sete da manhã.Depois de um banho e vestido adequadamente para mais um dia de trabalho, desci para o desjejum encontrando a mesa ainda posta e sinais de que Lorenzo havia passado por ali. As migalhas e manchas de suco de uva no guardanapo de pano, denunciaram isso. Sorri sentando-me no meu lugar à cabeceira. Ele era tão arteiro quanto já fui um dia quando criança. Há tanto de mim nele quanto existe da sua mãe.Monalisa foi a única mulher que amei na vida. Ela que foi capaz de ver coisas boas em mim quando nem mesmo eu enxergava e me amou mesmo eu sendo um homem cheio de sangue nas mãos. Ela não pertencia à máfia, não nasceu no meio de tudo isso. Era lei se casar com quem era da família, mas eu lutei contra isso. L
LAURADomingo eu nunca sabia o que fazer. Já passavam das onze da manhã e ainda não havia saído da cama, nem mesmo para tomar o café da manhã. Uma batida soou na porta antes que fosse aberta vagarosamente.— Você morreu? — perguntou Caio, passando a sua cabeça por uma fresta.— Não, só estou com preguiça — respondi-o, escondendo a minha cabeça sob o edredom.— Levanta, vai. Vamos almoçar fora, eu pago.Permaneci em silêncio e quieta. Escutei a porta ranger ao ser mais aberta. O edredom foi puxado de mim e jogado nos pés da cama.— Saía, Caio! Me deixa! — reclamei irritada, puxando o edredom e cobrindo-me novamente até o topo da cabeça.— Qual é? Você está doente? Só pode estar doente, você nunca recusa comida, ainda mais quando sou eu quem vai pagar.— Só não estou a fim!— Okay. Vou sair para comer tacos e não vou trazer para você! — avisou antes de fechar a porta em um baque.Permaneci quieta e fechei os meus olhos, rezando para que a segunda chegasse logo, mas, infelizmente, as minh
LAURA— E então? — perguntou Salim.— Posso sim — concordei, enfim, ao ver o jarro balançar levemente na sua mão trêmula.Peguei-o e fui em direção ao balcão. Amarrei o meu avental na cintura, abasteci o jarro com mais café, servi os clientes que estavam sentados no piso de baixo e depois subi para o mezanino. Ao chegar lá em cima, parecia haver um imã que puxaram os seus olhos diretamente para os meus. Ele encarou-me com frieza e arqueou a sobrancelha exalando superioridade pelos poros. Caminhei até a mesa adiante e anotei o pedido antes de seguir até a sua. Ao me aproximar, pude sentir o perfume exageradamente doce que a mulher sentada à sua frente usava. Ela encarou-me dos pés à cabeça e fez uma expressão de nojo. Olhei para ele e por fim perguntei o que desejavam. Ele pediu dois cafés sem creme e açúcar. A garota em momento algum me direcionou uma palavra nem sequer. Saí para buscar os pedidos e mesmo de costas senti que ele ainda me olhava.— Aqui está. — Coloquei as canecas sobre
LAURAVoltei para casa e ao entrar na propriedade, encontrei Lorenzo correndo no jardim da frente sob a guarda dos meus homens. Quando ele me viu descer do carro, veio na minha direção com o seu sorriso lindo e angelical, pulando nos meus braços.— Papai! Você chegou cedo. — Abraçou o meu pescoço.— Sim, filho.— Senhor — chamou Serra.— Sim. — Olhei para ele e vi que tinha uma pasta em mãos. — Filho... Entre e vá brincar no seu quarto. Está frio aqui fora.— Tudo bem, papai — concordou e deu-me um beijo estalado no rosto.Coloquei-o no chão e o observei correndo em direção à Sra. Poulinsk, nossa governanta.— O que tem para mim? — perguntei ao Serra.Ele não disse nada, apenas se aproximou e estendeu-me a pasta. Peguei-a da sua mão e abri. Havia fotos da Laura e, a julgar pelas roupas, eram de hoje. Ela andava pela calçada ao lado de um homem. A minha mandíbula se contraiu instintivamente e as minhas mãos apertaram com força a beirada da pasta, amassando-a.— Quem é ele? — perguntei o