LAURA
Chegar a terras estrangeiras sem muito dinheiro no bolso e com poucas peças de roupas em uma mochila, não foi nada fácil. Por sorte, eu tinha o Caio – meu meio-irmão “postiço” – que jamais me deixou desamparada e sozinha. Quando fugimos de uma vida abusiva no Brasil, viemos para Boston, Massachusetts, em busca de vivermos livres pela primeira vez e conhecer o significado da palavra felicidade.
Apesar de não termos o mesmo sangue correndo nas veias, o nosso amor um pelo outro era incondicional. Ele era filho somente da minha madrasta. Roberta é uma mulher repugnante, que foi amante do meu pai por anos antes dele finalmente assumi-la como a sua mulher depois que a minha mãe morreu há seis anos.
O meu pai era um dos maiores traficantes procurados do Rio de Janeiro. O BOPE tinha uma sede infinita por sua cabeça, desde que me entendia por gente. Marcos Figueiredo comandava há quase trinta anos o tráfico de armas e drogas pela cidade e, principalmente, pelo morro da Rocinha. Um bandido temido pelo povo e respeitado pelos outros como ele, incluindo políticos corruptos. Marcos nunca foi um pai de verdade para mim. Ele sempre me machucou de diversas formas, assim como fazia com a minha mãe. Porém, nada do que já havia feito comigo, nem mesmo as agressões físicas, se comparavam ao dia em que permitiu que o meu irmão de sangue, Rodrigo, abusasse sexualmente de mim. Eu tinha apenas oito anos. Era uma menina frágil, pequena, inocente e assustada.
Rodrigo era dez anos mais velho. Naquela época, quando eu ainda era uma criança, acreditava que o meu irmão iria cuidar e proteger-me ao invés de me machucar tão brutalmente como fez. Ele não pensou duas vezes quando o meu pai ordenou que cometesse um crime bárbaro contra mim na frente da minha mãe, na sala de casa, como punição para nós duas por tentarmos fugir daquela vida de desgraça.
Até aquela noite eu amava o meu irmão, mas após longas e torturantes horas de abuso, aprendi a odiá-lo com toda a minha força e com cada célula do meu corpo. Desde aquela terça-feira de fevereiro, não houve uma noite que eu tenha tido paz no meu quarto. Rodrigo me visitava toda madrugada e ameaçava a nossa mãe caso eu corresse, resistisse ou gritasse. Eu suplicava, mas de nada adiantava. Então, para doer menos, ficava imóvel e muda. Nunca duvidei da sua crueldade e capacidade de fazer mal a quem o colocou no mundo. Ele era igual ao nosso pai. Quem sai aos seus, não degenera. Não é mesmo?
Sofri anos de angústia, depressão, medo, tristeza e dor. Assisti a minha mãe – a única pessoa que me amou verdadeiramente dentro daquela casa – morrer definhando à míngua sobre uma cama enquanto o meu querido pai se recusava a pagar o seu tratamento contra a leucemia. Ele era um homem sem escrúpulo algum, não tinha o mínimo de decência ou respeito pela esposa que escolheu a dedo em meio a centenas de outras garotas. Ele levava as suas amantes e outras vadias quaisquer para o quarto que pertencia a eles e passava a noite com elas, gemendo e gritando enquanto a minha mãe chorava de dor no quarto ao lado.
Depois da sua morte, comecei a sonhar com o dia em que me libertaria daquele mundo infernal. Quando Caio entrou na minha vida, juntos sonhamos com a nossa fuga e liberdade. Mas para isso era preciso ter uma boa grana e preparo. Primeiro, decidimos para onde ir. Quanto mais longe, melhor seria. Pensamos em várias cidades e países, até que chegamos a um lugar onde ele sempre quis viver: Boston, nos Estados Unidos. Não era tão longe quanto eu planejava, mas o suficiente para eu ter uma noite tranquila de sono.
Caio começou a trabalhar para o meu pai fazendo entrega de drogas, apenas se preparando para o que chamamos de “O Saque”. Com meses de planejamento, conseguimos roubar uma entrega de cocaína no valor de cem mil reais. Com a maioridade para sairmos do país, identidades falsas, destino definido e uma quantia razoável de dinheiro, fugimos deixando o Brasil sem olhar para trás em uma noite de tempestade.
Faz três meses que tínhamos conquistado a liberdade. Se você me perguntar a data exata de quando dei o meu primeiro sorriso honesto de alegria, saberei lhe dizer: treze de maio de dois mil e quinze. O dia em que pisei os meus pés no Aeroporto Internacional Logan.
— Sonhando acordada de novo? — perguntou Caio ao entrar no nosso apartamento.
— Sempre. — Sorri. — Como foi a noite de trabalho?
— Foi agitada e cheia de boas gorjetas — disse entusiasmado esfregando as mãos e jogando-se para trás sobre o sofá.
— Bom... Tem café na cafeteira e torradas sobre a pia. Já vou indo, senão me atraso.
Caminhei até ele e dei-lhe um beijo na testa, antes de sair para mais um dia de trabalho no Pop’s Coffee. Caio trabalhava à noite como barman enquanto eu era balconista de uma cafeteria movimentada no centro da cidade.
LAURAO caminho até o trabalho a pé levava cerca de trinta minutos. Eu amava trabalhar naquele lugar. Os meus colegas estavam sempre de bom humor e entendia o que era ser um estrangeiro, já que cada um deles vinha de um canto do mundo. Acho que era isso que nos tornava tão unidos.— Bom dia! — cumprimentei a todos ao entrar atrás do balcão.— Bom dia, chica — retribuiu Angelita.— Aí... Laura — chamou Salim. — Será que você pode atender aquele cara, ali? — pediu apontando discretamente com a cabeça, para o homem que vestia um terno azul-marinho caro, de três peças, e gravata vermelha de seda com finas listras prateadas. Ele estava de cabeça baixa com a sua mão direita guardada no bolso da frente, na calça, e segurando o celular com a esquerda, observando atentamente algo na tela fina e larga.— Por quê? O que tem ele? — questionei curiosa e confusa.Salim era sírio, um rapaz comunicativo e não rejeitava clientes. Ao contrário, adorava tanto quanto eu estar ali todos os dias. Era um car
LAURATerminei o meu pote de sorvete e levantei indo ao banheiro. Após tomar banho, lavar os cabelos e depilar as pernas, saí enrolada na toalha e entrei no quarto.Abri o armário e encarei a coleção de peças escuras nos cabides. Acho que devo ter ficado ali de pé por uns dez ou quinze minutos. Vesti uma saia curta de couro preto com zíper na lateral e um body de renda na cor marsala. Calcei as minhas adoráveis botas pretas de camurça que iam até acima dos joelhos. Após secar os meus cabelos, fiz uma maquiagem caprichada no delineador e no batom vermelho, que sempre adorei.A campainha tocou e fui até a porta.— Olha só para ela! — gritou Angelita quando me viu.— Você disse trinta minutos. Tem mais de uma hora e meia, que nos falamos.— Olha só... Ninguém nasce assim, toda perfeita como você, Laurinha. — Fingiu irritação, colocando as mãos na cintura e revirando os olhos.— Para onde você vai me levar? — perguntei cruzando os meus braços à frente.— Para uma boate recém-inaugurada no
LAURACaminhei para uma beirada mais afastada e encarei a bela vista noturna da cidade. Encostei-me à mureta de proteção e fechei os meus olhos sentindo o vento forte contra o meu rosto bagunçando um pouco os meus cabelos de comprimento médio. Ao abrir os meus olhos, pensei na minha mãe. Como sentia a sua falta. Gostaria de ter tido tempo suficiente para levá-la conosco. Era muito triste ela não ter tido a chance de estar ali e lembrar-me do inferno que viveu até o seu último dia. Uma lágrima solitária e atrevida desceu por meu rosto. Será que esta dor e angústia nunca irá passar, ou ao menos diminuir?— Não soube ler o aviso de: "não se aproxime da mureta de proteção"? — perguntou uma voz masculina e rude atrás de mim, com um sotaque italiano.Aquele sotaque não me era estranho, eu reconhecia. Não fazia nem uma semana que queria mandar o dono daquela voz para o inferno. Sequei a minha bochecha esquerda e virei-me para trás encarando o homem estúpido que me destratou na cafeteria.— Nã
ENZOEntrei e observei o lugar lotado de gente bêbada e drogada. Andei em meio àquelas pessoas até chegar à escada que levava a área VIP elevada. Assim que me viu aproximar, o segurança retirou o cordão de veludo azul para eu passar. Lá em cima, caminhei até o homem que me devia milhões e fugia de mim há meses, gerando sérios problemas com o meu pai e o Conselho.— Salazar — chamei-o parando à sua frente.— A-Albertinni — gaguejou quando me viu.O seu rosto ficou pálido e os seus olhos arregalaram-se. Ele retirou apressado as mulheres que estavam sentadas no seu colo, jogando-as para os lados como sacos de batatas.— Sente-se, por favor — convidou-me com um sorriso forçado, indicando com a mão a poltrona à sua frente.— Obrigado. — Sentei-me. — Soube que está pagando bebida para todo mundo. Não vai pagar uma para mim também? — Sorri com sarcasmo.— Mas é claro! — respondeu-me e chamou uma garçonete. — O que vai beber? — A sua hospitalidade forçada me deixou irritado.— O seu sangue em
ENZOOs seus cabelos loiros com corte pouco abaixo do ombro balançavam com o vento forte que batia ao encontro do seu rosto. Droga! Como queria me lembrar da cor dos seus olhos. Será que são azuis como os meus? Ou castanhos?— Não soube ler o aviso de: "não se aproxime da mureta de proteção"? — chamei a sua atenção.— Não! Não sei ler! — respondeu com rispidez.Ainda com a mesma língua afiada. Isso me deixou um tanto furioso. Qual era o problema com aquela mulher? Não teve educação?— Além de estúpida, é analfabeta? De que parte do mundo você surgiu, criatura?Todos me devem respeito! Eu sou o capo da máfia italiana, porra! Ela também terá de me respeitar. Se não sabe quem sou, irei mostrar!— De um lugar onde te mandariam para o inferno com um pontapé na bunda, seu italiano arrogante! — respondeu alto e com raiva.Dei a ela um olhar duro e ameaçador.— O que faz aqui? Não notou que esse lugar não é para gente como você?— Por que você não vai à merda?Deu um passo de encontro a mim, l
ENZOAcordei com os raios do sol batendo no meu rosto. Abri os meus olhos vagarosamente, tentando me acostumar à claridade no quarto. Olhei para o lado procurando por meu garoto, mas não o encontrei. O relógio sobre o criado-mudo, ao lado da cama, mostrava que já passavam das sete da manhã.Depois de um banho e vestido adequadamente para mais um dia de trabalho, desci para o desjejum encontrando a mesa ainda posta e sinais de que Lorenzo havia passado por ali. As migalhas e manchas de suco de uva no guardanapo de pano, denunciaram isso. Sorri sentando-me no meu lugar à cabeceira. Ele era tão arteiro quanto já fui um dia quando criança. Há tanto de mim nele quanto existe da sua mãe.Monalisa foi a única mulher que amei na vida. Ela que foi capaz de ver coisas boas em mim quando nem mesmo eu enxergava e me amou mesmo eu sendo um homem cheio de sangue nas mãos. Ela não pertencia à máfia, não nasceu no meio de tudo isso. Era lei se casar com quem era da família, mas eu lutei contra isso. L
LAURADomingo eu nunca sabia o que fazer. Já passavam das onze da manhã e ainda não havia saído da cama, nem mesmo para tomar o café da manhã. Uma batida soou na porta antes que fosse aberta vagarosamente.— Você morreu? — perguntou Caio, passando a sua cabeça por uma fresta.— Não, só estou com preguiça — respondi-o, escondendo a minha cabeça sob o edredom.— Levanta, vai. Vamos almoçar fora, eu pago.Permaneci em silêncio e quieta. Escutei a porta ranger ao ser mais aberta. O edredom foi puxado de mim e jogado nos pés da cama.— Saía, Caio! Me deixa! — reclamei irritada, puxando o edredom e cobrindo-me novamente até o topo da cabeça.— Qual é? Você está doente? Só pode estar doente, você nunca recusa comida, ainda mais quando sou eu quem vai pagar.— Só não estou a fim!— Okay. Vou sair para comer tacos e não vou trazer para você! — avisou antes de fechar a porta em um baque.Permaneci quieta e fechei os meus olhos, rezando para que a segunda chegasse logo, mas, infelizmente, as minh
LAURA— E então? — perguntou Salim.— Posso sim — concordei, enfim, ao ver o jarro balançar levemente na sua mão trêmula.Peguei-o e fui em direção ao balcão. Amarrei o meu avental na cintura, abasteci o jarro com mais café, servi os clientes que estavam sentados no piso de baixo e depois subi para o mezanino. Ao chegar lá em cima, parecia haver um imã que puxaram os seus olhos diretamente para os meus. Ele encarou-me com frieza e arqueou a sobrancelha exalando superioridade pelos poros. Caminhei até a mesa adiante e anotei o pedido antes de seguir até a sua. Ao me aproximar, pude sentir o perfume exageradamente doce que a mulher sentada à sua frente usava. Ela encarou-me dos pés à cabeça e fez uma expressão de nojo. Olhei para ele e por fim perguntei o que desejavam. Ele pediu dois cafés sem creme e açúcar. A garota em momento algum me direcionou uma palavra nem sequer. Saí para buscar os pedidos e mesmo de costas senti que ele ainda me olhava.— Aqui está. — Coloquei as canecas sobre