ENZO
Acordei com os raios do sol batendo no meu rosto. Abri os meus olhos vagarosamente, tentando me acostumar à claridade no quarto. Olhei para o lado procurando por meu garoto, mas não o encontrei. O relógio sobre o criado-mudo, ao lado da cama, mostrava que já passavam das sete da manhã.
Depois de um banho e vestido adequadamente para mais um dia de trabalho, desci para o desjejum encontrando a mesa ainda posta e sinais de que Lorenzo havia passado por ali. As migalhas e manchas de suco de uva no guardanapo de pano, denunciaram isso. Sorri sentando-me no meu lugar à cabeceira. Ele era tão arteiro quanto já fui um dia quando criança. Há tanto de mim nele quanto existe da sua mãe.
Monalisa foi a única mulher que amei na vida. Ela que foi capaz de ver coisas boas em mim quando nem mesmo eu enxergava e me amou mesmo eu sendo um homem cheio de sangue nas mãos. Ela não pertencia à máfia, não nasceu no meio de tudo isso. Era lei se casar com quem era da família, mas eu lutei contra isso. Lutei por ela. Lutei por nós! E no fim... consegui. Nós nos casamos e ela teve que abdicar de tudo para estar comigo. Abriu mão dos amigos, do trabalho e de uma vida social e livre que, a partir do momento em que me disse “sim”, deixou de existir.
A minha esposa era tão pura e doce, que a considerava intocável quando a conheci. Lembro-me de que a primeira vez que a vi, senti um nervoso desconhecido a percorrer o meu corpo. Ela era tão linda! Os seus olhos castanho-claros chamaram-me a atenção. O seu jeito singelo e humilde me desarmou. Recordo-me daquela tarde como se fosse hoje.
***
Sete anos atrás...
Estava chegando a uma das nossas empresas de fachada, a construtora Albertinni, extremamente irritado por acabar de descobrir que estava sendo traído por um homem que considerava de confiança. Saí do elevador ainda ofegante de raiva e cego de ódio, que não vi quando o meu corpo se chocou contra outro, jogando-o no chão. Olhei para baixo e vi papéis e pastas espalhadas pelo piso de granito. Ela estava caída sentada de lado. A sua mão direita esfregava suavemente o seu cotovelo esquerdo. Não consegui ver o seu rosto, os seus longos cabelos pretos e lisos cobria-o como um manto.
— Você está bem? — perguntei abaixando-me à sua frente.
— Sim — respondeu com a sua voz macia e olhou-me, finalmente, fazendo-me perceber o quanto ansioso estava para ver o seu rosto. — Desculpe-me, senhor. Eu não o vi.
Fiquei por alguns segundos perdido nos seus olhos tão reluzentes. O seu rosto era tão delicado, que parecia até mesmo ser uma pintura.
— A culpa não foi sua, foi minha. Eu peço desculpas.
Ela sorriu envergonhada.
— Você se machucou? — perguntei ao ver que ela ainda estava com a mão apoiada sobre o seu cotovelo.
— Não, estou bem.
— Deixe-me te ajudar.
Levantei-me e estendi a minha mão para ajudá-la, que aceitou e se pôs de pé. Ela era tão pequena, que mesmo de salto alto, batia no meu peito. Fez menção de abaixar-se para pegar os papéis, mas eu a impedi segurando o seu braço com sutileza.
— Não. Eu pego.
Abaixei-me novamente, pegando do chão tudo o que estava caído e entregando para ela.
— Obrigada — agradeceu e sorriu pegando as pastas das minhas mãos.
— Sem problemas. — Retribuí o sorriso.
Nós nos encaramos por alguns segundos, olho no olho, e podia jurar que senti os meus pelos dos braços se arrepiarem, coisa que nunca havia acontecido antes.
— Senhor Albertinni. Que prazer imenso tê-lo aqui nesta tarde quente — disse Alfredo, o vice-presidente da empresa e puxa-saco insuportável.
Respirei fundo e impaciente com a sua recepção exagerada e o seu sorriso forçado. Olhei novamente para a moça à minha frente e ela me encarava com um olhar assustado.
— Desculpe-me, Sr. Albertinni — pediu ela com a voz baixa e então virou-se saindo a passos apressados, sem me dar a chance de perguntar qual era o seu nome.
Aquilo queimou-me por dentro. Nasceu ali uma necessidade indomável de conhecer aquela mulher.
***
— Senhor — um chamado tirou-me das minhas lembranças.
— Sim — respondi dando a minha atenção para Serra, que entrava na sala de jantar.
— Aqui está o que me pediu. O dossiê — disse, entregando-o a mim.
— Diga-me o que descobriu.
Peguei a pasta da sua mão e a abri.
— Nada, senhor.
— Como assim, "nada"? — perguntei desacreditado, encarando-o.
— A garota é um fantasma. O que sabemos é onde mora, trabalha, que tem vinte e um anos e se chama Laura Cabrine, mas há possibilidades de que seja uma identidade falsa. Ela chegou há três meses aqui no país e veio do Brasil.
— Sem redes sociais?
— Nenhuma. Também não tem passagem pela polícia. Acho que Laura Cabrine não existia antes de chegar em solo americano.
— Use todos os recursos que temos. Descubra quem ela é no Brasil. Quero saber tudo. Entendeu? Tudo!
— Sim, senhor. Tem mais uma coisa. No dossiê há também informações da garota que foi com ela até a boate. Elas trabalham juntas em uma cafeteria no centro da cidade. A mulher se chama Angelita Gomes, veio do México para cá ainda criança. Ela é ficha limpa, não acreditamos que represente perigo.
— Obrigado — agradeci começando a folhear as páginas do dossiê.
— Volto assim que tiver mais informações. — Retirou-se.
— Quem é você, Laura? Se é que esse seja mesmo o seu nome — falei para mim mesmo, recostando-me à cadeira.
LAURADomingo eu nunca sabia o que fazer. Já passavam das onze da manhã e ainda não havia saído da cama, nem mesmo para tomar o café da manhã. Uma batida soou na porta antes que fosse aberta vagarosamente.— Você morreu? — perguntou Caio, passando a sua cabeça por uma fresta.— Não, só estou com preguiça — respondi-o, escondendo a minha cabeça sob o edredom.— Levanta, vai. Vamos almoçar fora, eu pago.Permaneci em silêncio e quieta. Escutei a porta ranger ao ser mais aberta. O edredom foi puxado de mim e jogado nos pés da cama.— Saía, Caio! Me deixa! — reclamei irritada, puxando o edredom e cobrindo-me novamente até o topo da cabeça.— Qual é? Você está doente? Só pode estar doente, você nunca recusa comida, ainda mais quando sou eu quem vai pagar.— Só não estou a fim!— Okay. Vou sair para comer tacos e não vou trazer para você! — avisou antes de fechar a porta em um baque.Permaneci quieta e fechei os meus olhos, rezando para que a segunda chegasse logo, mas, infelizmente, as minh
LAURA— E então? — perguntou Salim.— Posso sim — concordei, enfim, ao ver o jarro balançar levemente na sua mão trêmula.Peguei-o e fui em direção ao balcão. Amarrei o meu avental na cintura, abasteci o jarro com mais café, servi os clientes que estavam sentados no piso de baixo e depois subi para o mezanino. Ao chegar lá em cima, parecia haver um imã que puxaram os seus olhos diretamente para os meus. Ele encarou-me com frieza e arqueou a sobrancelha exalando superioridade pelos poros. Caminhei até a mesa adiante e anotei o pedido antes de seguir até a sua. Ao me aproximar, pude sentir o perfume exageradamente doce que a mulher sentada à sua frente usava. Ela encarou-me dos pés à cabeça e fez uma expressão de nojo. Olhei para ele e por fim perguntei o que desejavam. Ele pediu dois cafés sem creme e açúcar. A garota em momento algum me direcionou uma palavra nem sequer. Saí para buscar os pedidos e mesmo de costas senti que ele ainda me olhava.— Aqui está. — Coloquei as canecas sobre
LAURAVoltei para casa e ao entrar na propriedade, encontrei Lorenzo correndo no jardim da frente sob a guarda dos meus homens. Quando ele me viu descer do carro, veio na minha direção com o seu sorriso lindo e angelical, pulando nos meus braços.— Papai! Você chegou cedo. — Abraçou o meu pescoço.— Sim, filho.— Senhor — chamou Serra.— Sim. — Olhei para ele e vi que tinha uma pasta em mãos. — Filho... Entre e vá brincar no seu quarto. Está frio aqui fora.— Tudo bem, papai — concordou e deu-me um beijo estalado no rosto.Coloquei-o no chão e o observei correndo em direção à Sra. Poulinsk, nossa governanta.— O que tem para mim? — perguntei ao Serra.Ele não disse nada, apenas se aproximou e estendeu-me a pasta. Peguei-a da sua mão e abri. Havia fotos da Laura e, a julgar pelas roupas, eram de hoje. Ela andava pela calçada ao lado de um homem. A minha mandíbula se contraiu instintivamente e as minhas mãos apertaram com força a beirada da pasta, amassando-a.— Quem é ele? — perguntei o
LAURAJá fazia uma semana desde o episódio épico na cafeteria com o italiano e a modelo loira. Eu estava trabalhando mais do que nunca, fazendo todas as horas extras possíveis para não atrasar o aluguel, já que Caio ainda não havia conseguido um emprego.— Vamos almoçar? — convidou Angelita.— Vamos. Estou morrendo de fome.— Aquele food truck árabe que você gosta está estacionado a uma quadra daqui.— Maravilha. Vamos logo, então.Fomos até lá caminhando e fizemos os nossos pedidos após enfrentar uma pequena fila com oito pessoas à nossa frente. Enquanto aguardávamos o nosso almoço, nos sentamos na praça sob o sol do meio-dia para nos esquentar, estava fazendo bastante frio com a chegada do inverno em Boston.— Caio já conseguiu um emprego?— Ainda não. Ele colocou o currículo em alguns sites, fez algumas entrevistas, mas até agora nada. Coitado, anda tão preocupado.— Eu imagino. Mas relaxe, ele vai conseguir alguma coisa. Tenha fé.Almoçamos e voltamos logo para o trabalho. A tarde
LAURARodrigo estava parado sobre a calçada no outro lado da rua com as mãos dentro dos bolsos do seu casaco preto. Ele me observava com atenção e, quando viu o meu espanto em vê-lo ali, curvou os seus lábios em um sorriso sombrio e tenebroso, aquele que ainda assombrava os meus piores pesadelos.— Você está bem? — perguntou a voz grave de sotaque italiano. — Laura? — chamou-me colocando-se de pé e tocando a minha mão, atraindo o meu olhar para ele.— O quê?— Perguntei se você está bem?— Desculpe. Vou pedir para alguém vir atendê-lo.Antes de me afastar, olhei novamente para o outro lado da rua e Rodrigo não estava mais lá. Eu estava me sentindo à beira de um ataque de pânico. Saí apressada e fui para o fundo da cafeteria quase atropelando Salim pelo caminho, fazendo-o deixar a sua bandeja cair no chão. Precisava contar ao Caio o que havia acabado de ver. Tinha certeza de que não era minha imaginação, aquilo foi real! Rodrigo havia nos achado e estava em Boston.Entrei no banheiro do
LAURAO motorista abriu a porta e ele saiu primeiro, ajudando-me a descer de dentro do carro em seguida. Parei por um instante diante dos degraus que levavam à entrada e virei-me para ele, encarando-o confusa. Somente naquele momento a minha ficha havia caído.— Como sabe onde eu moro? — perguntei dando-me conta de que em momento algum passei para ele ou ao seu motorista meu endereço.— É uma longa história, Laura — disse dando um passo na minha direção.— Afinal... Como você sabe o meu nome? — questionei, começando a me sentir ainda mais assustada.— Meu nome é Enzo...— Não estou nem aí para o seu nome, não te perguntei! — gritei. — Quero saber como sabe onde moro? Como pode saber tanto, se nunca nem mesmo disse o meu nome a você?— Fique calma. Não precisa se exaltar. Por que a gente não entra para conversar?— Nem morta vou convidar um estranho para dentro do meu apartamento — interrompi-o. — Obrigada pela gentileza, mas acaba por aqui a sua boa ação do dia. — Dei-lhe as costas e s
LAURAÀs vezes, sair de casa era inevitável. Precisava sair às ruas, buscar emprego, comprar comida e pagar as contas. Mas a cada passo que dava pela cidade, sentia-me observada. Eu tentava dizer para mim mesma que era coisa da minha cabeça e que já estava ficando louca, mas sentia e podia jurar isso.Ainda me perguntava quem era Enzo e como ele sabia tanto sobre mim. Ele chamar-me pelo meu verdadeiro nome e saber onde morava, além de deixar-me apavorada, provou que não estávamos tão escondidos em Boston como pensávamos. Eu temia por minha vida e muito mais pela do Caio. Tinha medo de que o monstro fizesse algo com ele para me atingir. O meu coração se acalmava somente quando ele voltava para casa pela manhã. Esperava-o acordada diariamente andando de um lado para o outro no apartamento, com o coração apertado de preocupação. O meu sono só vinha quando o via passar inteiro pela porta.Estava sentada no balcão de uma cafeteria, folheando o jornal do dia em busca de alguma vaga de empreg
ENZODeixei o quarto fechando a porta atrás de mim e desci a escada indo em direção à cozinha. Encontrei a Sra. Poulinsk sentada à mesa tomando uma xícara de chá. Sentei-me na cadeira do outro lado e sem eu precisar pedir, ela levantou-se e me serviu de uma xícara do chá de camomila, adicionando uma dose especial de um conhaque inglês.— Precisamos arrumar outra babá — falou ela ao se sentar novamente.— Eu sei. Mas não posso pôr qualquer mulher aqui para cuidar do meu filho.— Concordo com o senhor. Mas estou velha para correr atrás de um menino agitado e levado. A minha cota de descabelamentos se esgotou com você quando era criança. — Sorriu fazendo-me rir.— Eu sei. Peço desculpas pelo Lorenzo. Não sei mais o que fazer com ele.— Acho que ele destrata as babás, porque acredita que a mãe só irá voltar quando elas se forem. Afinal, é o senhor quem diz sempre ao menino que elas cuidam dele somente até Monalisa voltar para casa.Olhei-a sentindo-me desconfortável, julgado e culpado.— E