Só faltava mais uma semana e Vanya já entrava em desespero crônico. O prazo estava vencendo, tinha somente mais sete dias. Um mês não precisava passar tão depressa! Bem que um dia poderia ter trinta horas, ao invés de vinte e quatro – doze para manhã e dezoito para a noite. Essa sim deveria ser mais longa.
— Desencane, ogrinha! Esse cara nunca vai sair do papel! É mais fácil esperar o Karl virar homem!
A voz de Maik era irônica e provocativa – não valia a pena rebater a brincadeira. Desse modo, Vanya preferiu apenas lhe mostrar o dedo médio da sua mão esquerda, perfeito para ser usado em momentos como aquele. Ainda assim, escutou risinhos por parte dos amigos – Dieter havia se juntado ao outro rapaz. Crianças.
Cansada, Vanya se levantou, limpando o jeans sujo pelos farelos da borracha. Estava exausta, não iria aguentar assistir ao treino dos meninos. Guardou os desenhos na pasta e desceu da arquibancada.
— Já vai, Vanya? Ainda nem começamos!
O treinador era acostumado à sua presença – toda noite de quarta ela estava lá, assistindo ao treino de basquete dos amigos por pura adoração ao esporte.
— Ando meio cansada. – ela respondeu, esfregando o rosto. — Digamos que não estou nos meus melhores dias. Preciso de ducha, uísque e cama.
— Estimo suas melhoras. – disse o treinador, ignorando seu comentário sobre a bebida. — De qualquer modo, isso é só treino. O jogo do mês que vem será melhor e mais emocionante!
— Tenho absoluta certeza.
Despediu-se do treinador e saiu, chutando as pedrinhas que estavam em seu caminho.
Estava sendo o mês mais preocupante da sua vida, tinha de admitir. Quando acordada, dedicava todo o seu tempo à elaboração do desenho. Deixou, várias vezes, de comer, de estudar, de fazer outros retratos e vender os mesmos. Esqueceu até mesmo de respirar, se é que isso era possível. Só não largou a necessidade de dormir. Era dormindo que Vanya o encontrava. E, sempre antes de adormecer, rezava para poder sonhar com ele mais uma noite – noites essas que já totalizavam vinte e quatro.
Quando chegou em casa, deparou-se com as luzes apagadas – a mãe continuava no trabalho. Ainda no escuro, Vanya abriu a porta e trancou-a logo em seguida. Passou algum tempo encostada à madeira, até reunir coragem o suficiente para tomar um banho. Dirigiu-se ao quarto, jogou a bolsa na cama e retrocedeu o caminho, indo para o banheiro em seguida.
Depois do longo banho, voltou ao seu quarto, vestida apenas com a toalha que enrolava seu corpo molhado. Sentada no colchão velho, puxou a bolsa para si, retirando a pasta verde e, logo após, o desenho. Olhou a reprodução do rapaz mais uma vez, analisando todos os detalhes que havia conseguido desenhar. Não lembrava exatamente quais roupas ele costumava usar, então o fizera com uma camisa social branca, desabotoada até a altura do peito e uma calça negra. Os cabelos longos, ao contrário, eram como nos sonhos, quase alcançavam sua cintura, e uma franja desarrumada insistia em cair sobre seu rosto. No entanto, o essencial ainda lhe faltava: a face e a expressão que Vanya não gravara com fidelidade na memória.
Mesmo assim, não poderia negar – mesmo sem rosto, ele ainda era muito bonito.
A menina se levantou, terminando de enxugar a água que corria por sua pele. Vestiu as peças íntimas, um blusão cinza do Pateta e um par de meias coloridas antes de se jogar na cama e prosseguir a atividade de observar o desenho. Ficou a olhar o rapaz ainda sem face e voltou a se questionar sobre como seria a vida do personagem. Desde o início do seu trabalho, várias vezes se encontrou fantasiando com o rapaz inexistente. Bem diferente dos seus amigos, o jovem dos seus sonhos não era mais um mero adolescente – já era um homem. Vanya não tinha contato com homens de verdade, apenas com garotos. Provavelmente, esse seria o motivo para aquele sujeito fictício a intrigar tanto.
Porém, ele tinha um defeito: não a permitia imaginar sua vida.
Vanya não sabia explicar – de todos os personagens que já desenhara, apenas com ele não conseguia construir suas características temperamentais, seus gostos, seus desejos, sua existência. Até mesmo retratos encomendados de pessoas reais eram mais suscetíveis à formulação de personalidades – muitas vezes, completamente avessas ao que aqueles rostos eram, de fato, na realidade. Por que justamente ele, um produto da sua mente, não lhe dava o aval da criação?
Porque ele nunca existiria.
A constatação apertou o coração de Vanya. A razão era tão óbvia! Como ela mesma pensava, era apenas ficção. Mas imaginar também não matava ninguém. Por que ele não a permitia desvendar os mistérios escondidos atrás da sua pose firme e de seus gestos brandos e gentis?
— Apaixonada pelo irreal, menina Vanya?
Vanya voltou os olhos para o ursinho velho e feio que tinha desde criança – a única recordação que restara da sua infância. Condenando sua atitude, ele a olhava repreensivamente, com os braços cruzados e a pose reprovadora. A menina suspirou – muito bom, a loucura havia começado novamente. Costumava acontecer quando ela menos esperava.
— Ah, você de novo? Me poupe! – exclamou a jovem, mal humorada. — O que te faz pensar que eu estaria apaixonada por isso? Só estou... admirada.
— Espero tudo de você. – ele continuou. — Quem consegue ver o que não existe, também tem a capacidade de o amar.
— Ah, cale a boca! Você é um urso, não sabe de nada! Seja bonzinho e volte a ser o que era antes, sim? Fica até mais bonitinho quando está quieto.
O urso suspirou. Não adiantava falar com a garota.
— Só não se magoe, menina. Amar e viver o irreal pode ser mais doloroso do que se consegue imaginar.
O urso voltou à sua pose de antes – inerte, sem vida. Vanya desviou o olhar, odiava quando aquilo acontecia – maldita imaginação incontrolável. Porém, estava intrigada. Por que o bichinho de pelúcia achava que ela amava alguém imaginário? Ou melhor, por que o seu inconsciente acreditava em tal hipótese? Era estupidez, masoquismo sentimental. Só estava envolvida com o mistério, apenas isso – e, em sua mente, só prevalecia a figura desengonçada do jovem Karl.
Entretanto, não conseguiu segurar o sorriso ao imaginar se, por acaso, o rapaz viesse a ser real, possuindo o mesmo jeito cavalheiro, a mesma beleza de anjo e as nobres atitudes. Fantasiou um encontro, soltando um riso abafado. Como ele iria reagir ao vê-la? Pessoalmente, Vanya mais parecia um menino com longas tranças, um moleque desengonçado. Com certeza, passaria vergonha na frente dele. Contudo, ele seria delicado o suficiente e tratá-la-ia como uma dama. Conversariam uma tarde inteira, ririam dos causos impossíveis, ela descobriria todo o suspense da sua personalidade. E seria um dia feliz e agradável.
Sorriu com a ideia maluca e, deitada, colocou o retrato dentro da pasta. Seu corpo estava fraco, cansado de tanta exaustão. O desenho sugava as suas forças, até mesmo aquelas que jurava não ter. Na intenção de descansar um pouco, fechou os olhos, com a imagem do rapaz ainda fixa em sua mente. E, sem que percebesse, acabou por adormecer.
Agora ela não estava mais em nenhum ambiente estranho, vazio, sombrio. Reconhecia o lugar em que se encontrava naquele momento, mas não lembrava exatamente onde era. Acordava e, por isso, as imagens estavam embaçadas e as ideias, confusas. A única sensação que tinha era a de estar sobre uma superfície dura e fria. Lentamente, levantou-se. As imagens foram se organizando, ficando visíveis, e ela olhou para frente. Deparou-se com um imenso muro, de proporção quilométrica e completamente pichado. Forçou as lembranças para tentar reconhecer o lugar, mas a sua memória estava fraca demais.
Enquanto tentava organizar fatos e datas, viu um homem correndo em direção à barreira de concreto. Algo gritou dentro dela para impedir que aquele desconhecido fosse até lá – instintivamente, ela sabia que aquilo era perigoso. Não sabia explicar, apenas sentia. Entretanto, mais uma vez, estava sem voz - não conseguia emitir nenhum ruído. Não sabia o que fazer para chamar a atenção dele. Impotente, escutava-o gritar coisas ininteligíveis. À beira da agonia, intentou aproximar-se do louco, porém sentiu uma mão em seu ombro, impedindo-a e indicando que não deveria. Virou-se para a pessoa que estava atrás dela – o mesmo rapaz. Seu rosto expressava tranquilidade e seu sorriso a acalmava. Não adiantaria discutir com os olhos castanhos que a encaravam com firmeza. Ela segurou a mão dele, contrita, e ambos se voltaram para ver a cena do homem que corria.
Agora, ele já havia chegado ao muro, estava defronte à quilométrica barreira. Pulou algumas vezes, sem, contudo, alcançar o topo. Tentou escalar uma vez, mas caiu. Tentou outra, também sem sucesso. Na terceira vez, quase ia ao chão novamente, mas já estava conseguindo subir. Um lampejo de memória a acometeu e, apenas assim, ela descobriu que local era aquele e qual a intenção do homem. Em pouco, tudo fez sentido – Alemanha Oriental, Muro de Berlim, ultrapassagem da barreira proibida. O homem estava a um passo da morte, precisava salvá-lo. Milagrosamente, sua voz foi recuperada e ela gritou:
— NÃO!
Era tarde. Alguém que estava do outro lado do muro o atingira com um tiro certeiro no peito. Os olhos da garota se inundaram de lágrimas e o rapaz que estava com ela a abraçou fortemente. Porém, em meio ao pranto insistente e violento, conseguiu escutar o homem murmurar aquele nome. Suas palavras não passavam de fracos sussurros de um moribundo, mas que, aos ouvidos dela, ecoavam em níveis de gritos. Aterrorizada, a menina reconheceu quem era o desconhecido que jazia no asfalto frio. Não poderia ser, não, não, não! Aquele era seu...
— PAI!
Vanya se levantou bruscamente da cama. Havia sido o pior sonho de todos os últimos que já tivera, embora costumasse ter frequentes pesadelos com o pai e com a Alemanha pré-1989. Respirou fundo e, enxugando o suor do rosto, saiu do quarto. Olhou o relógio – vinte e uma horas. Por sorte, Laura ainda não havia chegado do trabalho. Agradeceu a Deus por estar sozinha na casa, não queria que a mãe soubesse dos seus esquisitos sonhos e, principalmente, do recente pesadelo. Ela iria chorar, como sempre fazia quando Vanya mencionava Theodor.
Ofegante, dirigiu-se até a cozinha e abriu a geladeira, retirando um copo d’água e bebendo-o em seguida, tentando se recuperar do susto. Enquanto sentia o gelado líquido descer pela sua garganta, congelando-a, uma vasta e importante lembrança passou por sua mente.
Pela primeira vez, Vanya se lembrou, com riqueza de detalhes, da face do rapaz.
*
— Vanya? O que faz aqui a essa hora?
— Acabei!
Otto olhou para Vanya, surpreso por receber sua visita àquela hora. Reconheceu o surrado casaco que a amiga usava – fora seu uma vez, embora, agora, estivesse em tamanho reduzido –, mas ele não era suficiente para a proteger do frio da madrugada. Agarrada à pasta verde, Vanya tremia, mas seus expressivos e esverdeados olhos brilhavam de maneira ofuscante, e sua voz estava animada, além da sua expressão ser da mais intensa e pura felicidade.
— Melhor você entrar. – disse Otto, passando o braço pelos ombros da menina e empurrando-a delicadamente para dentro da casa. — Um pouco mais aqui fora e você congela.
A casa de Otto era pequena e sem muitos utensílios domésticos, tal qual a casa de Vanya. Os móveis e os eletrodomésticos eram antigos, alguns já bem gastos e a desorganização era visível. Ao entrar, Vanya jogou-se no sofá, afundando-o com o seu peso. Otto fora buscar um cobertor para ela, que, ainda agarrada à pasta, continuava a tremer de frio. Quando voltou, a menina tornou a falar:
— Quatro palavras: eu sou um gênio! – dizia rapidamente, atropelando as palavras e gesticulando muito, como sempre fazia quando estava empolgada. — Preciso de um busto em minha homenagem!
— O quê, Vanya? – perguntou o rapaz, cobrindo a amiga. — Que parafernália você criou dessa vez? Não é um projeto de Ffísica, né? O último quase explodiu a sala, Dieter me contou.
— Ia explodindo porque nosso caro e inteligente amigo Dieter colocou papel onde não deveria. Mas não, não é trabalho de escola. Simplesmente acabei de fazer o desenho de mil euros. – disse Vanya rapidamente, sorrindo satisfeita.
— Ainda falta uma semana para o prazo acabar, por que se apressou tanto em vir? Podia fazer isso depois. E não são horas para uma senhorita estar na rua.
— Você fala como se eu fosse muito frágil! Ah, Otto, não seja incompreensível! Precisava mostrar para alguém... Depois dessa, posso ir para o Museu do Louvre e ter uma exposição exclusivamente minha lá! Terminei há pouco tempo, ainda tá cheirando a grafite. Dê uma olhada aí.
E, apressada, Vanya abriu a pasta e retirou o papel, entregando-o ao amigo.
— Aqui está. – disse, sorrindo de modo triunfante. — A arte de Vanya Da Vinci!
Sorrindo, Otto recebeu o desenho e, assim que pousou os olhos sobre ele, não conteve sua reação de espanto. Seu sorriso esmoreceu, assim como seu olhar brincalhão perante as atitudes entusiasmadas de Vanya. Não existiam palavras exatas para descrever a imagem que via, mesmo que termos como perfeito ou fantástico fossem apropriados. O rapaz observava o traço elegante e seguro de Vanya, incrédulo. O que ali estava representado não era um simples desenho de um homem, mas sim a reprodução inegável de um homem. Algo tão incrível e extraordinário que fez Otto acreditar, por alguns instantes, que o personagem retratado era real.
— E aí? — questionou Vanya, ansiosa.
— É magnífico! Seu monstrinho maldito, foi você que o inventou?
Um sorriso maroto escapou dos lábios da menina.
— A proposta não era bem essa. – comentou.
— Está dizendo que isso aqui foi mesmo um produto de um sonho?
Só bastou que o sorriso de Vanya ficasse mais resplandecente para a confirmação vir.
— Você não existe, Vanya! – comentou o jovem, dando pequenos safanões na cabeça da amiga. — Ele é incrível, até parece que realmente existe! O rosto lembra um pouco o Sebastian Bach no início da carreira, mas dá para perceber que são duas pessoas distintas. Há suas diferenças. Não sou de achar homem bonito, só que esse cara... Está espetacular. – Otto sorriu, entregando novamente o retrato à jovem.
— Né? – comentou Vanya, mordendo o lábio enquanto analisava sua obra. — Pena que há algo nele que me desagrada.
— O quê, pelo amor de Deus? Ele está sensacional!
— A expressão dos seus olhos. – respondeu, com o olhar fixo no rapaz reproduzido no papel. — É triste, não acha?
Otto sentou-se ao lado da amiga, passando a estudar o desenho com ela.
— E por que ele é assim? – perguntou.
— Sei lá. Eu o vi desse jeito, com esses olhos tristes, com essa fisionomia cansada. Não acha que ele parece ser sem expectativas?
— Talvez. Quem sabe esteja faltando algo na vida dele.
— Como o quê?
— Isso quem tem de dizer é você. Ele só está aqui por sua causa.
Ela riu, desconcertada.
— É apenas um personagem, Otto. – concluiu, o sorriso esmorecendo em seus lábios, os olhos passando a fitar o nada. — E personagens não passam de arquétipos da nossa cabeça. Eles não são reais.
— Você queria que ele fosse de verdade?
Vanya se virou para o amigo, olhando-o curiosa.
— Aparenta isso? – perguntou.
— Um pouco.
Ela riu, voltando à sanidade e percebendo o que havia falado.
— Que ideia, Otto! – exclamou, mudando a expressão. — Sei que não bato muito bem da cabeça, mas meu juízo ainda está no lugar! O que eu queria com um cara que vi por sonhos? Isso é... ridículo! – e, novamente mais animada, a menina questionou: — Se eu te pedir um favor, você faz?
— Claro! – respondeu o rapaz, sorridente.
— Tira uma cópia dele para mim?
Não era costume de Vanya fazer cópias dos desenhos que vendia. Porém, diferente de todas as outras vezes, a menina teve o desejo de continuar com aquele retrato, mesmo que não fosse o original. O desenho possuía um significado especial. Representava não só o esforço e o empenho que tivera para fazê-lo, mas também a única lembrança de um ser que, com certeza, nunca veria na realidade.
Uma imagem à qual Vanya, secreta e inconscientemente, se apegara.
— Tudo bem, pequena ogra. – respondeu Otto, com seu terno sorriso.
Vanya sorriu novamente, da linda maneira marota com a qual sempre demonstrava a sua felicidade.
*
Já era noite alta e Otto era o único funcionário ainda presente na loja de conveniência – seria o encarregado do fechamento dela. Olhou para o relógio que marcava quase vinte e duas horas. Logo ele chega, pensou. Ligou a televisão, comeu o pequeno sanduíche frio e ficou a esperar. Em cima do balcão, a pasta verde que continha o desenho de Vanya descansava.
Ficou a ver os programas inúteis sem prestar atenção. Forçava a memória para lembrar como ele era. Da primeira e única vez que o vira, ele fumava um cigarro. Era alto, pálido, usava um chapéu de abas e sobretudo negros, e seus olhos eram escondidos pelos óculos-escuros retangulares. Do seu corpo, só conseguia enxergar as mãos e uma minúscula parte do seu rosto. De fato, um sujeito extremamente estranho – chegando a ser aterrorizador.
Teve medo do homem não ir ao seu encontro. Otto desejava veementemente que ele não lhe enganasse, ou melhor, que não enganasse Vanya. A garota havia se esforçado para ajudar a mãe, merecia ser recompensada pelo árduo trabalho. Conhecia a situação de ambas, sabia o quão difícil estava sendo para Laura sustentar, sozinha, uma casa e uma filha adolescente. O dinheiro cairia como uma salvação para a minúscula família. No entanto, Otto desconfiava daquele sujeito cujo rosto era um mistério e a proposta uma loucura – não dava para dar tanto crédito a uma pessoa daquelas.
O tempo passou devagar e já era quase meia noite quando Otto avistou um ser estranho, de chapéu e sobretudo pretos, entrar na lojinha, indo em sua direção. Sentiu o coração disparar, perguntando-se várias vezes se o homem realmente estava com o dinheiro. O sujeito se aproximou e, educadamente, cumprimentou:
— Boa noite, meu jovem.
Sua voz rouca era fria, cortante e causava arrepios.
— Boa.
— E então? – perguntou o homem, sorrindo. — A pequena artista fez o que pedi?
— Sim. – respondeu Otto, retirando o papel de dentro da pasta. — Aqui está. – falou, entregando-o.
O homem recebeu a folha e passou alguns instantes observando o desenho. Ele estava gostando? Odiando? Achou bonito ou feio? Era impossível determinar, seu rosto não expressava nada e seus olhos continuavam cobertos pelos óculos-escuros. Calafrios percorreram o corpo de Otto. Estava nervoso, tinha medo de que o homem desaprovasse o trabalho de Vanya e não quisesse pagar por ele. Porém, para sua felicidade, o estranho sorriu.
— Magnífico. – falou. — Somente uma verdadeira artista seria capaz de desenhar com tamanha perfeição. Talento incrível. É realmente um personagem de um sonho?
— E por que não seria? Ela é bastante honesta com seus trabalhos.
— Qual o nome da menina?
— Vanya Kant.
— Senhorita Kant, certo? Diga-lhe que é preciosa e agradeça. – e, guardando com cuidado o desenho em seu sobretudo, finalizou. — Uma inegável e talentosa desenhista merece reconhecimento. Desejo sorte. Até mais.
O homem já se retirava quando Otto gritou.
— Espere!
— Algum problema? – questionou, voltando-se ao comerciante. Sua voz exprimia surpresa.
— O dinheiro. – e estendeu a mão.
— Ah, claro. – falou o homem, enfiando a mão em seu sobretudo. — Como eu poderia me esquecer disso? Perdoe a minha falha. – e entregou um pequeno envelope branco a Otto.
O rapaz pegou o envelope e abriu. Logo, várias cédulas surgiram e Otto as retirou, contando-as em seguida. Tudo certo, lá estavam os mil euros.
— Muito obr...
Não dera tempo de Otto terminar seu agradecimento. Além dele, não existia outro homem presente na lojinha. Encontrava-se só no departamento, como se não houvesse recebido ninguém. E a televisão continuava a mostrar suas inutilidades.
São Paulo – Brasil— Pois não?— Bom dia, senhora. Eu sou Damiano Guerra, o estudante universitário do curso de Letras que agendou uma entrevista com a professora Maria Adelaide para um seminário. Por gentileza, ela se encontra?— Ah, sim, o estudante universitário... Me perdoe por não o reconhecer logo. Entre, por favor.Damiano agradeceu e, pedindo licença, entrou na mansão da requisitada psicopedagoga. Sentiu-se envergonhado, demasiadamente humilde para estar em uma casa de tal elegância e dimensão. Havia sido muita sorte conseguir uma entrevista com a professora, sabia o quão ela era importante – fato percebido principalmente pela rica arquitetura do seu lar. Respirando fundo e expirando rapidamente, preferiu não ficar analisando maiores detalhes da casa. Mais um pouco e ficaria completamente desconcertado.— Po
Berlim – AlemanhaO comunicado chegou seco, frio e inesperado.— Precisamos conversar, Vanya.Vanya sabia que algo estava errado. Uma semana se passara desde a venda do desenho e Laura ainda não havia encontrado o dinheiro. Além disso, andava estranha, triste, com uma expressão aflita que nunca lhe pertencera e agindo de modo igualmente sem nexo. Costumava passar o dia fora e voltava para casa quase de madrugada. Vanya já havia perguntado várias vezes o que estava acontecendo de anormal, mas a mãe nunca respondia. Dizia que tudo estava bem, sorria e logo mudava de assunto. Porém, Laura não convencia e tampouco enganava a filha. Vanya ainda tentou, várias vezes, descobrir a anomalia, porém não conseguiu nenhuma desculpa, por mais absurda que fosse. A solução era ter de se contentar com o silêncio – insu
Berlim – Alemanha— Acho melhor você ir atrás dele, Vanya.Vanya olhou mais uma vez os rostos presentes na pequena e fúnebre sala. Otto tinha os olhos fixos em sua figura, tentando lhe transmitir força; os de Dieter, ao contrário, estavam molhados e sem foco – e seu nariz, vermelho. Maik, com a cabeça baixa, escondia a tristeza por detrás dos fios negros do seu cabelo liso. Nunca pudera imaginar encontrá-los em tão intensa melancolia.— Acho que ele não está a fim de falar comigo. – falou, mordendo o lábio, tentando recuar da tarefa.— É agora que ele mais te quer perto. – Otto pousou a mão gigante no ombro da amiga.Ela lançou o último olhar e, ainda incerta, saiu do pequenino cômodo, rumo à noite fria. Fora da casa, viu pessoas conversa
Não teve dúvidas quando avistou a menina de longas e pseudovermelhas tranças sentada no banco da ala de desembarque. Embora a placa indicasse que era realmente ela, nada seria mais confirmador do que as roupas masculinas e surradas que vestia – uma calça jeans recheada por bolsos e uma blusa listrada escondida por um casaco negro, o conjunto incrivelmente maior que o seu aparente corpo franzino. Pegou a foto que guardava no bolso da jaqueta, gostava de ter certeza sobre tudo. De fato, era ela – mesmo que em uma versão mais crescida do que aquela apresentada na fotografia. Aproximou-se, ela não o notou – estava entretida olhando desenhos. Chamou-a, sendo prontamente respondido pelo gesto com a cabeça.Era tão bonitinha! Mesmo vestida com roupas que não condiziam com o seu rosto delicado, ainda possuía uma fisionomia angelical. Tal e qual Laura quando mais jovem.— Willkomme
Observando o panfleto, Vanya tentava pronunciar o nome do bairro para o qual se encaminhavam: LIBERDADE. Não se incomodava com os olhares curiosos e repreensivos que alguns dos presentes no metrô lotado lhe jogavam – ninguém ali participava da sua vida ou conhecia as suas necessidades para repreendê-la de algo. Yooki a observava, divertindo-se com o seu sotaque cômico e com a sua dificuldade em falar o português. Nada dizia sobre a atitude da prima, nem mesmo a ajudava a falar a palavra. Limitava-se apenas a dar um largo sorriso, a menina era empenhada. Preferiu continuar quieto. Acreditava ser importante Vanya ir treinando, sozinha, a nova língua.— Não consigo falar. – disse a menina, exausta.— Calma, tudo é questão de prática. Você chegou ontem, esqueceu? Não dá para aprender português da noite para o dia.— Isso é
Esfregou os olhos e acendeu mais um cigarro – o terceiro em uma hora e meia. O papel estava em uma das mãos, o cigarro na outra, mas seus olhos estavam voltados unicamente para a letra garranchada que sujava a brancura da folha. Releu, em voz alta.Continuava na estaca zero, não havia nenhuma melodia que ficasse boa naquela letra. Por que o poema estava incompleto? Kazuo não deixou nada que o ajudasse nessa tarefa, dizendo apenas um Termina aí a nossa balada. Como se fosse fácil! Além de obrigá-lo a construir a sonoridade melódica, ainda lhe impunha terminar a letra. Aquele maldito sabia o quão difícil era para ele escrever uma música de amor – já que Damiano não o conhecera como deveria.Pousou o papel sobre a mesa e foi para a minúscula varanda, observar a noite – um dos raros sábados em que ficava em casa àquela hora. Deu uma lon
Olhava-se com estranheza no espelho. Deslizou mais uma vez a mão pelos seus lisos fios – que antes acabava em sua cintura e agora estava um pouco acima dos seus ombros –, o castanho natural de volta, nenhum resquício do vermelho desbotado. Sorriu. Era estranho passar a mão por algo tão curto. Uma larga faixa de cabelo corria por seu cenho, em direção a seus olhos, quase os cobrindo. A franja que ali estava até que ficara bonitinha, assim como a permanência de duas mechas finas que ladeavam seu rosto e que se destacavam pelo comprimento intermediário. No final, não estava tão feia. Sentia-se nova, embora, às vezes, pensasse que a imagem refletida não era ela mesma. Porém, saber que estava enganada lhe dava segurança.Deitou-se na cama. Todos os músculos do seu corpo doíam e suas pálpebras pesavam. Apagando a luz do abajur, virou-se para o out
Os dois homens que adentraram o camarim puseram fim aos abraços, congratulações e às comemorações que a banda, a estilista e os amigos faziam. O grupo se voltou para a dupla recém-chegada. O nervosismo predominava. O homem louro sorriu.— Podemos entrar? – perguntou.Não houve discordância por parte de ninguém. O mesmo homem fechou a porta.— Pessoal – começou, animado —, antes de dar quaisquer parabéns pela excelente apresentação, gostaria muito que escutassem algumas palavras do meu amigo Yooki. Ele é professor de música e a pessoa em quem mais confio. Por isso, o trouxe até aqui. – ele se voltara para o acompanhante. — Yooki?O outro homem deu um passo à frente. A ansiedade do grupo piorou.— Em primeiro lugar – disse, após cumprimentar o grupo —, devo dize