As folhas secas e caídas no chão faziam um barulho ensurdecedor quando eram pisadas. Era estranho ainda existirem folhas naquele lugar quando o inverno já estava tão avançado e rigoroso. A neve não parava de cair, e o frio era tão intenso que a garota sentia cada parte do seu corpo congelar. Onde realmente estava?
A única coisa que se via eram árvores secas, brancas por causa da neve e espalhadas por todo lado. O céu estava cinza devido à intensa névoa, e o lugar deserto. Estava com medo e confusa. O silêncio sepulcral era cortado unicamente pelo barulho do seu coração – não se ouvia nenhum outro ruído. Um súbito desespero se apoderou dela. “O que era tudo aquilo? Onde estava a saída?”
Andar tornou-se uma difícil atividade naquele instante. O cansaço e a neve no chão a impediam de caminhar direito, fazendo-a tropeçar várias vezes. O frio aumentava e o fino vestido que a cobria não protegia contra o vento. “Não dá mais para continuar!” Até ali, só havia andado sem rumo, sem achar ninguém ou alguma saída.
Quando o cansaço chegou ao seu ápice, a queda foi certa e pesada – caiu de joelhos no chão. Os pulmões congelados dificultavam a sua respiração e ela perdia a capacidade de falar. Desejava gritar, pedir ajuda, mas suas cordas vocais não produziam nenhum som, embora se esforçasse para fazê-lo – estava muda. “O que eu faço?” Tinha de sair dali!
Foi então que sentiu uma grande mão pousar sobre a sua cabeça. Aquilo a assustou, mas o toque era de tal doçura que parte do seu medo desapareceu. A pessoa se abaixou, ficando de joelhos à sua frente para poder vê-la melhor. Ela levantou o rosto molhado e percebeu, estática, um rapaz de cabelos dourados. Não conseguia ver perfeitamente as suas feições, mas ele ainda estava com a mão sob seus cabelos, deslizando-a em direção ao seu rosto. Pôde, então, acalmar-se um pouco. Fechou os olhos e sentiu aquele singelo gesto, uma sensação de paz invadindo o seu peito.
Do rosto ao braço, a mão do jovem deslizou por sua pele, alcançando sua pequena mão e segurando-a com força. Ainda de mãos dadas, ele puxou-a levemente ao levantar. Ela obedeceu e eles ficaram frente a frente, somente se observando. Era estranha a sensação de tranquilidade que agora pairava entre os dois.
Numa ação inesperada e inconsciente, a jovem se jogou nos braços do rapaz, envolvendo-o com força. Tudo sumiu. Agora só existiam ele e ela, unidos em um doce, longo e caloroso abraço. Agora tudo estava bem.
— Vanya! Vanya, acorde, meu bem!
Quando Vanya abriu os olhos, não havia mais floresta, nem neve e nem cabelos dourados. Tudo o que via era apenas o teto com infiltrações e o rosto aflito da sua mãe. Então não havia passado de um mero sonho?
Suspirou.
— Ok, ok, sem repreensões. Já estou indo.
Vanya pulou da cama e se dirigiu ao banheiro. Olhou-se no espelho, deslizando a mão pelo rosto e pelos cabelos. De fato, sua fisionomia não estava muito boa. Olheiras se formaram por causa da noite mal dormida, o cabelo bagunçado a igualava à Medusa, os olhos continuavam apertados de sono e sua expressão facial não era das mais agradáveis. Espreguiçou-se, soltando um gritinho. Ligou o pequeno toca-fitas – herança que seu pai lhe deixara – e pôs a cassete do Bon Jovi. Deixou tocando, jogou o pijama no chão e foi para o chuveiro.
Passou alguns segundos ainda cochilando debaixo da água gelada, esperando ser despertada pela frieza. Sentindo as gotas caírem sobre seu rosto, repassou, ao som de Livin’ On a Prayer, as inúmeras atividades que teria de fazer naquele dia. Precisava terminar cinco desenhos, estudar Química para a prova da semana seguinte, lavar suas roupas e pegar as calças rasgadas que tinha mandado costurar. Muita coisa, talvez não desse tempo. Poderia deixar algo para a manhã seguinte, quem sabe. A Química? Não, tinha de estudar, perigava ficar com nota baixa no boletim. Os desenhos também não poderiam esperar, os clientes sempre deveriam vir primeiro – nada de perder clientela. É, iria sobrar para as calças.
Seus pensamentos, contudo, não se fixaram em somente repassar os futuros feitos do dia, mas em imaginar vários fatos aleatórios e sem sentido – tinha a grave mania de não permanecer presa à realidade por muito tempo. Um deles fora o sonho da noite anterior. Parou de lavar os cabelos quando sua memória a levou ao estranho ambiente branco onde a aventura onírica houvera sido encenada. Fato esquisito, não costumava rememorar com facilidade o que havia sonhado – exceto raros pesadelos. Até que fora um sonho feliz – desesperador inicialmente, mas feliz. Esforçou-se para tentar recordar alguns pontos cruciais, mas a sua falha memória só lhe mostrava um rapaz de longos cabelos louros, pele clara e porte físico magro. Quem seria?
— O café está na mesa!
Talvez fosse um daqueles integrantes de banda oitentista que compunham a imagem dos vinis de Otto. Ou então, simplesmente, alguém com quem cruzou na rua ou no metrô. Poderia até ser uma pessoa em quem esbarrou quando corria para chegar a tempo na escola – sempre se atrasava e esbarrava em alguém – ou uma imagem da televisão, qualquer coisa que seu inconsciente gravara despercebidamente. Havia uma infinidade de possibilidades.
— Vanya Kant, está me escutando?
A voz de Laura cortou todos os pensamentos de Vanya – de qualquer modo, não havia razão para se prender a sonhos de noites passadas, era algo inútil. A menina suspirou, saiu do banho e se arrumou de maneira apressada, correndo em seguida para a minúscula cozinha. O cheiro das panquecas semifeitas contorceu seu estômago.
— Posso tomar Coca-Cola? – perguntou, puxando a cadeira para se sentar.
— Não quero seu fígado destruído antes dos quarenta, mocinha. – disse a mãe, pondo o prato da filha na mesa. — Devore logo, está atrasada para a aula novamente. Até quando, Vanya, você vai continuar sem hora para chegar ao colégio?
— Se fosse pontual, iria perder a minha marca registrada, então eu não seria eu. – a menina dera uma mordida na panqueca. — Além do que, a Senhora Dörr gosta de conversar comigo, não posso deprimi-la. Batemos um longo papo sobre truco enquanto eu espero a primeira aula acabar. Trago alegria a uma pessoa logo de manhã cedo! É uma boa ação, não acha?
Laura suspirou, os cabelos louros, longos e ondulados balançando. Às vezes, se perguntava qual seria a única ideia normal na cabeça de Vanya.
— Termine logo com isso.
Após terminar de comer, a menina deu um beijo na mãe e saiu para a escola, correndo com seus surrados All Star para conseguir pegar o metrô a tempo. Com quinze anos, beirando os dezoito, Vanya Kant fugia ao estereótipo comum – ou incomum – às meninas da sua idade. Classificava-se como sui generis, com suas roupas masculinas, velhas e feias – doações dos amigos; seus tênis sujos e usados; os jeans rasgados; o cabelo de cor vermelha desbotada, misturando-se com o castanho natural dos seus fios; os olhos verde ocre; uma argola presa na extrema cartilagem da sua orelha direita; as unhas sempre por fazer, com a cor preta descascando; pulseiras de plástico barato no pulso; anéis de aço espalhados pelos dedos. Normalmente, costumava ser calada quando em meio desconhecido, o que não acontecia entre amigos íntimos. Tinha falas satíricas, sempre prontas para fazer uma brincadeira, e um humor ácido e não prejudicial. Era boa desenhista e gastava a maior parte do seu tempo nessa atividade. Contudo, quando nada tinha para ocupar a sua incansável mente e o tédio gritava com eco, encontrava como refúgio um mundo fantástico, criado por sua imaginação fértil.
Sempre que se sentia consumida pelo ócio, desligava-se da realidade e entrava no país das maravilhas que construíra como uma válvula de escape para si mesma. Lá, não precisava fazer desenhos diários para vender e ajudar na precária renda familiar, como também não recebia olhares reprovadores por suas vestes antiquadas. No seu mundinho particular, vivia em uma casa própria – atrasos de aluguéis não existiam – e possuía uma família completa – pai, mãe e avós. Não precisava estudar Física e Química, tinha acesso fácil aos ídolos que estavam pregados na parede do seu quarto – Audrey Hepburn, por exemplo, costumava tomar chá com ela às tardes de quarta-feira, enquanto Johnny Depp, como Edward Mãos de Tesoura, fazia o corte mensal dos seus cabelos – e, toda vez que estava cansada, repousava em uma floresta verdejante e ensolarada, longe da poluição e da destruição típicas de cidades grandes. Às vezes, com um pouco mais de esforço, conseguia dar vida também ao inanimado e passava horas conversando sobre filosofia com os animais abandonados que encontrava pelas ruas. Adorava abrir a passagem que lhe levava ao seu universo alternativo e assim vivia toda vez que sentia a dura realidade pesar em seus ombros ou quando o tédio importunava a sua paciência.
Um momento adequado para entrar de vez em seu mundo paralelo era durante a espera dentro de um metrô, hora perfeita para se desligar do real. Porém, naquele dia, ela não sentiu vontade de fazer uma visita ao seu mundo maravilhoso.
Durante o trajeto, mesmo que mantivesse o olhar fixo nos inúmeros corpos que ocupavam um mesmo espaço, fora-lhe inevitável não voltar a pensar no sonho. Sua imaginação fervilhava e, quando isso acontecia, sua mente não parava de trabalhar. O fato havia mexido com suas ideias, embora não soubesse exatamente por qual razão. Talvez porque fosse uma das primeiras vezes que se lembrava de um bom sonho ou então por ter sido deveras inspirador. O cenário – uma mistura do belo com o macabro –, onde a história ocorrera, era perfeito para ser retratado, assim como a solidão desesperadora em que, de início, se encontrava. Ambos os elementos unidos originariam um lindo quadro, um bonito e caro retrato.
Porém, nada a havia intrigado tanto como o surgimento do rapaz. A lembrança dele – da sua fisionomia excêntrica e da sua atitude incomum – fez Vanya corar por alguns instantes. Entretanto, não se ligou somente às recordações vagas que tinha do jovem. Uma pergunta surgiu em sua mente, gritando em sua cabeça, confundindo-a.
Sonhar com quem não conhecia significava o quê? Presságio, visão do futuro, aviso dos céus? Quem sabe intuição? Premonição? Ou então...
O metrô freou bruscamente, fazendo Vanya se desequilibrar e quase cair. Apenas assim, a menina conseguiu parar a sua mente inquieta e incansável. Voltando à realidade, olhou para o velho relógio da Barbie que estava em seu pulso. Exclamou, estava atrasada quase vinte minutos. Saiu correndo da estação, rezando para ainda conseguir entrar em sala de aula a tempo. Não se pensaria mais no assunto sonho, e ponto final.
*
— E aí, doce Moranguinho? O que faz aqui ao invés de estar se afundando em teoremas de física?
Os cachos ruivos e longos do rapaz balançaram com a chegada da menina e a sua face adquiriu a mesma tonalidade dos seus fios. Encabulado, respondeu:
— Quis variar. Às vezes, cálculos doem a cabeça. E você, não vai jogar?
— Ah, não, não. – respondeu a garota sorridente, sentando-se ao lado do companheiro. — Muitos desenhos a serem feitos, nada de basquete hoje. – e, olhando para o menino magrelo de cabelos louros em forma de tigela que corria atrás da bola, a mocinha gritou. — Anda, Dieter, sua gazela saltitante! Pegue isso logo e faça a cesta do jeito que te ensinei, alte schlampe!
— Ah... Vanya?
— Oi.
Precisava apenas dar um único recado a ela, algo inofensivo e sem muita importância. Porém, toda vez que se aproximava da menina, sentia que sua voz travava, as falas sumiam de seus pensamentos e tudo que via era apenas o rosto dela o olhando, esperando alguma reação. Desconcertante.
— Você... – diga algo, algo, algo! — estudou para a prova de Biologia?
A menina suspirou.
— Não.
— Quer ajuda?
— E te atrapalhar o fazendo rever todo o conteúdo do ano? Não, Karl, não vou mais te explorar. É injusto. Deixa eu me ferrar sozinha, tá? – ela sorriu e, mudando repentinamente de assunto, perguntou, oferecendo o tablete de chocolate que estava na sua mão: — Quer um pedaço?
Vanya o perturbava. Quando iria alcançá-la?
— Não, obrigado. Acho que vou indo. – ele falou, sentindo cada parte do corpo tremer. Mas, antes que pudesse escutar um “já vai?” da amiga, completou com o aviso que tinha de dar desde o início: — O Otto mandou uma mensagem, disse que quer que você vá à casa dele.
— Para...?
— Ele não falou. Até mais tarde, Vanya.
Karl saiu, calado, cabeça afundada no peito, cachos ruivos se remexendo. Vanya suspirou, inconformada. Quando iria fazê-lo superar a severa timidez?
*
— Até que enfim!
A voz da menina se propagava abafada pelo pequeno quarto por conta das várias estantes de livros amarelados e vinis velhos e pelo timbre de Elvis Presley. O aposento era totalmente ocupado e a madeira dos móveis – todos velhos e já atacados pelos cupins – não permitia uma melhor propagação do som.
— Você chegou antes de mim? – perguntou o rapaz, sorridente, enquanto retirava os sapatos. — É miragem, não é?
— Não, não. Quis vir antes para dar uma olhada na sua coleção de vinis. E já vi seus novos volumes, rapaz, nem tente esconder. – o olhar estava fixo nos bolachões em suas mãos. — Por que não me falou que tinha comprado mais doze vinis, traíra? E ainda conseguiu o primeiro do Elvis, edição original! Se eu não viesse aqui, nunca saberia, porque você, ó ingrato amigo, não me chama para escutá-los!
Otto riu, sentando-se ao lado da amiga. Desligou a vitrola e voltou os olhos para Vanya, não sem antes dar um leve puxão naquelas longas tranças pseudovermelhas.
— Preciso falar com você. – disse, sério, ainda brincando com uma das tranças da amiga.
— Eu sei, o jovem Karl me avisou. – Vanya sorria, marota. — Queria me fazer inveja, não é?
Ela esperou uma resposta animada vinda de Otto, algo que condissesse com a sua brincadeira provocativa. Entretanto, o rapaz robusto de quase dois metros de altura continuou sério, com a fisionomia preocupada e apreensiva.
— Está tudo bem? – perguntou a menina, desconfiada.
Otto levou a mão à cabeça, deslizando os dedos pelos minúsculos fios louros que, de tão pequenos, tornavam-se quase imperceptíveis aos olhos. O rapaz era incrivelmente desajeitado quando estava preocupado ou com algum problema, embora o seu típico físico não demonstrasse isso.
— Pode-se dizer que sim.
Vanya franziu o cenho.
— Com os meus desenhos? – arriscou, o coração começando a palpitar mais rápido.
— Não exatamente com eles, mas tem relação.
A menina sentiu os batimentos cardíacos mais fortes.
— O que houve, Otto? – sua voz saiu apreensiva. A palavra “desenho” sempre a deixava aflita. — Não me diga que caiu água e eles mo...
— Não, nada disso! – cortou o rapaz. — É que... – ele riu, nervosamente. — Você recebeu uma proposta bastante... digamos... pertinente.
Menos preocupação para Vanya. Saber que sua arte não sofrera com os efeitos da água já a aliviava.
— E isso é ruim? – perguntou, expirando com calma.
— Nem tanto...
— Então para que o desespero? Recebo uma proposta e você fica com essa cara de preocupação, quer me matar de ataque fulminante? Pode falar, o que foi que mandaram dessa vez?
O rapaz suspirou.
— Não prefere saber primeiro quanto ofereceram?
Ela deu de ombros. Otto riu novamente – estava nervoso.
— Você não vai acreditar...
— Sem rodeios, Otto. – cortou a menina severamente. — Detesto isso.
— Minha cara amiga, você ficará milionária! Mil euros é a oferta da vez!
Vanya sentiu sua respiração cessar por alguns instantes, uma repentina vertigem passou por seus olhos. Em pouco tempo, seu sorriso desapareceu e seu queixo caiu – não sabia se ria de felicidade ou se continuava paralisada, sem acreditar no que havia escutado.
— Quanto?! – perguntou outra vez, somente para ter a certeza de que não havia se enganado.
— Mil euros.
— Tá brincando, né? Olha, eu sei que gosto muito de brincadeiras, mas essa é um pouco... pesada demais, não acha?
— Acha mesmo que eu iria brincar com isso, Vanya Kant?
Vanya arquejou, espantada, jogando-se incrédula contra a cama. Não conseguia acreditar. Mil euros? Nunca houvera pedido ou recebido tamanho valor por nenhum desenho! Normalmente, cobrava em torno de dois a, no máximo, dez euros, nada além. Mas mil euros era mais do que ela, uma amadora, receberia. Sua arte ainda não valia tanto – era apenas mais uma artista de rua espalhada pelos esconderijos de Berlim.
— Me diz uma coisa, Otto – perguntou com o olhar perdido, o impacto da notícia sendo absorvido —, a pessoa que propôs isso viu algum dos meus desenhos?
— Viu e elogiou todos.
— E, mesmo assim, disse que quer dar mil euros para mim?
— Disse. Por um desenho encomendado, é claro.
Vanya respirou fundo. Não sabia se tinha coragem suficiente para fazer a pergunta seguinte e se estava preparada para descobrir a resposta. Coisa boa não vinha, tinha certeza.
— E o que foi que este ser bilionário propôs?
Agora era a vez de Otto ter coragem de falar.
— De todas as propostas que recebeu, esta foi a mais louca que já escutei.
— Condiz com o preço que o cara ofereceu.
— Não posso afirmar o contrário. Ele quer que você desenhe com perfeição algum personagem de um sonho seu. Se ficar idêntico, recebe o dinheiro. Se não, apenas mérito.
Vanya riu. Agora sim, só poderia ser piada.
— Repita. – pediu, tentando acreditar que não estava tendo alucinações.
— É, é isso mesmo. Ele quer que você desenhe perfeitamente um personagem de algum sonho seu. E ainda por cima: humano.
Outro baque.
— E como ele vai saber se ficou idêntico ou não? Ele tem superpoderes por acaso? É um tipo de Sandman ou Freddy Krueger?
— Sei lá! Tô só transmitindo informação. – o jovem se aproximou ainda mais da menina. — Mas e aí? Convenhamos, é uma ótima proposta. Você aceita?
— É claro... que não! – Vanya se levantou do chão, passando a andar em círculos. — Como ele acha que eu vou conseguir fazer isso? Relembrar um personagem de um sonho e transcrevê-lo para o papel? Impossível! Nem Da Vinci, Renoir ou Van Gogh conseguiriam! Recuse. – falou a menina, decidida. — O preço é muito bom, resolveria parte dos meus problemas, mas não vou fazer esse desenho. Minha memória é péssima e seletiva.
— Invente um personagem! – rebateu o jovem. — Não há como saber se o desenho é baseado ou não em um sonho, ele não vai entrar em sua cabeça para ver!
— Recuse do mesmo jeito. – repetiu Vanya. — Não vou fazer isso, não sei criar pessoas e gosto de trabalhar de forma honesta. Mentir assim vai me fazer ficar mal comigo mesma.
— Não faça isso, Vanya. – falou Otto, posicionando-se em pé e segurando os ombros da menina. — Droga, por que eu sabia que você iria falar isso? Olhe, pense que é um bom dinheiro e que você e sua mãe precisam! Nessas horas, a honestidade não vale nada, só se lembre de você e da Laura! Vocês irão, pelo menos, conseguir quitar as dívidas da casa e vão poder comprar algumas roupas novas se sobrar dinheiro! Ou será que você vai querer sempre usar essas roupas velhas e feias?
— Não, não e não! Não vou conseguir fazer um personagem e não quero ser desonesta! Meu trabalho pode ser desvalorizado, sabia? E se alguém descobre?
Otto respirou fundo.
— O seu maior problema, Vanya, é ser sonhadora demais. Acha mesmo que ele iria descobrir se está mentindo ou não? E outra: você sabe que tem capacidade para desenhar qualquer coisa e que essa proposta é fichinha perto do tanto que faz. Olha só quantos desenhos bons já fez! E sabe que irá receber mais do que a sua mãe ganha na floricultura. Lembre-se, também, dos inúmeros meses que a Laura está devendo de aluguel. Quer melhorar parcialmente a situação de vida de vocês, não quer? Quer quitar essa dívida, não quer? Quer deixar também de usar somente roupas dadas pelos seus amigos, não é? Então aceite!
Vanya mordeu o lábio. Sabia que, no fundo, Otto tinha razão. Laura ganhava muito pouco trabalhando na floricultura e há tempos que as roupas de ambas eram presentes dos vizinhos, além da casa estar cheia de goteiras e o aluguel estar atrasado. A proposta era irrecusável, mas não poderia ser aceita por uma pessoa honesta. A menina também não sabia como inventar um personagem, ainda por cima um ser humano. Não possuía criatividade para tanto, seus desenhos eram somente reproduções que, por sorte, ficavam bem feitas. De que maneira imaginar alguém inexistente e com determinadas características? Não, sem possibilidades. Não iria mentir, era um desrespeito consigo própria e com a mãe, que, desde cedo, ensinou-a a ser sempre verdadeira. Ah, se ao menos conseguisse ter a capacidade de sonhar com um personagem irreal e se lembrar dele na manhã seguinte...
Sonhar?
— Espere, Otto. – pediu, o rosto pensativo. Um surto de luz lhe invadiu a mente. — Quando o homem quer falar com você para saber a minha resposta?
— Ele disse que amanhã iria me procurar, precisa do desenho o quanto antes.
— E falou o prazo para receber o desenho?
— Isso ele irá me falar amanhã, caso a resposta seja afirmativa.
Vanya sorriu novamente, de forma marota.
— Pensando bem, diga a ele que eu aceito a proposta. Acho que sei o que fazer.
Havia somente dois momentos em que a tonalidade do céu se tornava a mesma e era impossível determinar as horas. Estava amanhecendo ou anoitecendo? Ele não sabia. A única coisa da qual tinha certeza era que a parcial escuridão não cessava, como se o tempo houvesse congelado.Somente a fraca chama de uma vela iluminava o caminho por onde passava. A floresta era densa; as árvores, longas e negras; o trajeto, difícil, tortuoso; e a umidade local se fazia sentir com facilidade. Por quanto tempo estava andando? O que procurava? Por que estava ali? Não possuía a resposta para nenhuma dessas perguntas. Sentia apenas que deveria continuar caminhando.Por fim, encontrou a possível saída da floresta. Logo ele se viu em um campo aberto, ladeado por imensas árvores. E, no meio do campo, estava ela, sentada em cima de uma grande pedra, olhando fixamente para ele. Durante
Berlim – AlemanhaSó faltava mais uma semana e Vanya já entrava em desespero crônico. O prazo estava vencendo, tinha somente mais sete dias. Um mês não precisava passar tão depressa! Bem que um dia poderia ter trinta horas, ao invés de vinte e quatro – doze para manhã e dezoito para a noite. Essa sim deveria ser mais longa.— Desencane, ogrinha! Esse cara nunca vai sair do papel! É mais fácil esperar o Karl virar homem!A voz de Maik era irônica e provocativa – não valia a pena rebater a brincadeira. Desse modo, Vanya preferiu apenas lhe mostrar o dedo médio da sua mão esquerda, perfeito para ser usado em momentos como aquele. Ainda assim, escutou risinhos por parte dos amigos – Dieter havia se juntado ao outro rapaz. Crianças.Cansada, Vanya se levantou, limpando o jeans sujo pelos farelos da
São Paulo – Brasil— Pois não?— Bom dia, senhora. Eu sou Damiano Guerra, o estudante universitário do curso de Letras que agendou uma entrevista com a professora Maria Adelaide para um seminário. Por gentileza, ela se encontra?— Ah, sim, o estudante universitário... Me perdoe por não o reconhecer logo. Entre, por favor.Damiano agradeceu e, pedindo licença, entrou na mansão da requisitada psicopedagoga. Sentiu-se envergonhado, demasiadamente humilde para estar em uma casa de tal elegância e dimensão. Havia sido muita sorte conseguir uma entrevista com a professora, sabia o quão ela era importante – fato percebido principalmente pela rica arquitetura do seu lar. Respirando fundo e expirando rapidamente, preferiu não ficar analisando maiores detalhes da casa. Mais um pouco e ficaria completamente desconcertado.— Po
Berlim – AlemanhaO comunicado chegou seco, frio e inesperado.— Precisamos conversar, Vanya.Vanya sabia que algo estava errado. Uma semana se passara desde a venda do desenho e Laura ainda não havia encontrado o dinheiro. Além disso, andava estranha, triste, com uma expressão aflita que nunca lhe pertencera e agindo de modo igualmente sem nexo. Costumava passar o dia fora e voltava para casa quase de madrugada. Vanya já havia perguntado várias vezes o que estava acontecendo de anormal, mas a mãe nunca respondia. Dizia que tudo estava bem, sorria e logo mudava de assunto. Porém, Laura não convencia e tampouco enganava a filha. Vanya ainda tentou, várias vezes, descobrir a anomalia, porém não conseguiu nenhuma desculpa, por mais absurda que fosse. A solução era ter de se contentar com o silêncio – insu
Berlim – Alemanha— Acho melhor você ir atrás dele, Vanya.Vanya olhou mais uma vez os rostos presentes na pequena e fúnebre sala. Otto tinha os olhos fixos em sua figura, tentando lhe transmitir força; os de Dieter, ao contrário, estavam molhados e sem foco – e seu nariz, vermelho. Maik, com a cabeça baixa, escondia a tristeza por detrás dos fios negros do seu cabelo liso. Nunca pudera imaginar encontrá-los em tão intensa melancolia.— Acho que ele não está a fim de falar comigo. – falou, mordendo o lábio, tentando recuar da tarefa.— É agora que ele mais te quer perto. – Otto pousou a mão gigante no ombro da amiga.Ela lançou o último olhar e, ainda incerta, saiu do pequenino cômodo, rumo à noite fria. Fora da casa, viu pessoas conversa
Não teve dúvidas quando avistou a menina de longas e pseudovermelhas tranças sentada no banco da ala de desembarque. Embora a placa indicasse que era realmente ela, nada seria mais confirmador do que as roupas masculinas e surradas que vestia – uma calça jeans recheada por bolsos e uma blusa listrada escondida por um casaco negro, o conjunto incrivelmente maior que o seu aparente corpo franzino. Pegou a foto que guardava no bolso da jaqueta, gostava de ter certeza sobre tudo. De fato, era ela – mesmo que em uma versão mais crescida do que aquela apresentada na fotografia. Aproximou-se, ela não o notou – estava entretida olhando desenhos. Chamou-a, sendo prontamente respondido pelo gesto com a cabeça.Era tão bonitinha! Mesmo vestida com roupas que não condiziam com o seu rosto delicado, ainda possuía uma fisionomia angelical. Tal e qual Laura quando mais jovem.— Willkomme
Observando o panfleto, Vanya tentava pronunciar o nome do bairro para o qual se encaminhavam: LIBERDADE. Não se incomodava com os olhares curiosos e repreensivos que alguns dos presentes no metrô lotado lhe jogavam – ninguém ali participava da sua vida ou conhecia as suas necessidades para repreendê-la de algo. Yooki a observava, divertindo-se com o seu sotaque cômico e com a sua dificuldade em falar o português. Nada dizia sobre a atitude da prima, nem mesmo a ajudava a falar a palavra. Limitava-se apenas a dar um largo sorriso, a menina era empenhada. Preferiu continuar quieto. Acreditava ser importante Vanya ir treinando, sozinha, a nova língua.— Não consigo falar. – disse a menina, exausta.— Calma, tudo é questão de prática. Você chegou ontem, esqueceu? Não dá para aprender português da noite para o dia.— Isso é
Esfregou os olhos e acendeu mais um cigarro – o terceiro em uma hora e meia. O papel estava em uma das mãos, o cigarro na outra, mas seus olhos estavam voltados unicamente para a letra garranchada que sujava a brancura da folha. Releu, em voz alta.Continuava na estaca zero, não havia nenhuma melodia que ficasse boa naquela letra. Por que o poema estava incompleto? Kazuo não deixou nada que o ajudasse nessa tarefa, dizendo apenas um Termina aí a nossa balada. Como se fosse fácil! Além de obrigá-lo a construir a sonoridade melódica, ainda lhe impunha terminar a letra. Aquele maldito sabia o quão difícil era para ele escrever uma música de amor – já que Damiano não o conhecera como deveria.Pousou o papel sobre a mesa e foi para a minúscula varanda, observar a noite – um dos raros sábados em que ficava em casa àquela hora. Deu uma lon