- Atinge-o! – o miúdo faz mira, roda violentamente as duas correias de couro que embalam a pedra estriada e dispara atingindo-me no olho com uma correia desgovernada. Com um olho fechado vejo a pedra a bater no peito de ferro de meu tio, mas o canalha balança e segura-se forte nas rédeas do cavalo branco renascido. Em fúria, resvalo pela lama da falésia ao seu encontro, ouvindo Odro:
- Boríngio, não! - No poço fétido estou, alguém enlameado à minha frente brande-me um machado, tentando-me cortar a meio. Espeto-lhe, antecipando-me a seu movimento, furando as tripas do suevo, a lâmina perfura os orgãos, resvala na coluna e sai nas costas, ergo-o no ar, gritando a minha fúria.
- Boríngio, toma! – Odro berra-me de cima e atira-me uma lança. Deixo cair o corpo empalado negro do suevo. Apanho a lança e recebo uma mocada que me faz saltar os dentes. Atontado, vacilo e caio, recebo alguém em cima que me quer apunhalar. Amparo o seu punho, a ponta furadora da lâmina raz
304ª olimpíada ....os suevos confirmam a paz consertada com a parte do povo da Galécia com a qual estavam em guerra. O rei Hermenico acabrunhado pela doença, entrega o poder real a seu filho Réquila… Crónica de Idácio
Levanto-me da rede, essa conversa ocorreu já há um ano, lembro-me da queda dos Alanos e dos últimos navios vândalos partirem, a noiva ainda não chegou, penso em Cibelle e desferrolho a pesada porta, dando um pontapé a Frumário e recebendo o gélido vento, protejo-me com a capa e empunho um archote, procurando o jovem Camalo, encolhido na garita, surpreendo-o gritando: - Raios mestre Langobardo! Por momentos pensei que fosse um demónio. - As sombras tem-te apoquentado? – pergunto-lhe, tremendo com as pernas de frio. Camalo tira a cabeça da guarita, amarelo e enregelado e com olhos dormentes, tinha o cabelo em forma de malga, de facto foi Cassiano, o padre que lhe cortou o cabelo à tesourada, pondo-lhe uma malga de barro de vinho tinto em cima da cabeça. Camalo perscruta as muralhas para sul e para norte, apontando-me com a sua manga felpuda de ovelha: - Além. - miro atentamente e parece que as sombras em forma de homens e cavalos pulavam a muralha, tornando-a a
Rodeado de húmido matagal, encontro um caminho de folhas secas dos teixos, freixos, carvalhos e aveleiras que ladeiam o mesmo. Percorro-o durante meia hora olhando para todos os lados e vendo os fumos saídos da fortaleza que coroa o monte Gerião[1], baptizei-o assim em nome do monte do norte onde a minha grei assentou. Uma elevação granítica estava à minha frente, salpicada de declinados carvalhos e oliveiras, dois corvos desciam e subiam uma dessas árvores e eu achei aquilo um bom presságio. Começo a subir o penedio monte, calcando as caganitas das cabras, encontro as fendas xistosas e embrenho-me nelas a medo entoando cânticos contra os duendes do ferro, um anão estava à minha frente de gorro vermelho e varapau. - O teu mestre está? – pergunto-lhe dando-lhe uma moeda com a esfinge do Imperador Teodósio. O anãozinho, de cara enrugada, toma o peso do metal e trinca-o avaliando o seu valor, depois dá-me passagem pela fenda, eu passo por ele e quando lhe ia agradecer o mesmo j
Nessa noite, em Saturnring, bebi muito, como se toda a minha vida não tivesse sentido o que de facto não estava muito longe da verdade. Relembrava a infância despreocupada com meu pai em que brincávamos com cavalos de madeira nos acampamentos. Debruçado sobre a mesa estou com uma ligeira dor de barriga, tive que implorar a Frumário que produzisse hidromel. Observo a escrava que comprámos para nós os quatro, que é a guarnição sueva que guarda Saturning, Camalo olha para a moçoila a medo, creio que ele ainda é virgem e a mim não me apetece nada meter com ela. Odoacro é o único que fala com ela brincando com as mamas. Frumário crê que comprar a escrava foi um mau negócio e eu tenho a mesma opinião. Veio de Tarragona, trazida por um árabe, há muito tempo estabelecido em Hispânia, não percebe nada do que nós lhe dizemos e é imprestável para qualquer serviço. Como será
Tropeço num prato de barro cheio de ossos de borrego e estatelo-me no chão batido de terra, a dor no nariz é atroz e levo os dedos à cana a ver se a tinha partido, estou tonto, ajudam-me a levantar:- Deixem passar, lá para fora, lá para fora a respirar ar puro. - Odoacro e Brigo encostam-me num acento de granito que saia da base da torre. Lá, deixam-me sozinho a recozer as minhas dores, de tronco nu e recebendo a geada no lombo, “filhos da puta esqueceram-se de mim»! A lua está pálida e encolhida sobre si mesma como que hibernando na letargia da Estação da neve. – Ó da torre! Ó da torre! – o vento frio fustiga-me os ossos afectando-me os pulmões. – Ó da torre! Ó da torre! – nu, no mais desolado cenário montanhês. – Ó da torre! Ó da torre! – creio que chamam, mas será o hidromel a circ
- Quando acordei, ela estava a andar nas traves com as pombas. - Bloqueio a mente e o problema, pensando noutro assunto: - Existem casebres vagos intra-muros? Hermelinda deixa de olhar a avô malabarista e responde-me: - Eu arranjo-lhe casa, mas não espere grande coisa, mas pelo menos um braseiro e uma rede onde não entra chuva arranja-se, há gente que deixou as casas e nunca mais voltaram, procuraram o mar para se assentar com as invasões. - Sim eu sei. - dirijo-me à parede onde dependuradas estão longas lanças de caçar javalis e matar homens. A pele da avô de Hermelinda está esticadinha e mesmo sua voz está mais límpida, bloqueio o assunto perante Hermelinda que me perguntava com o seu olhar inquisidor: que raios fizeste com a minha avó? Envergamos coletes de lobo e ovelha e empunhamos longas lanças, Camalo fica de guarda nas ameias, penso no absurdo de ter só um homem nas ameias, mas pelo menos consegue fechar a porta caso alguém tente entra
Eu fico eternamente a olhar a fogueira, e, em meu sono de vigília, imagens díspares aparecem-me e desaparecem-me. Os lobos, a cauda de Odoacro o eleito, Quinto Célio empalado nas lanças juntamente com a minha noiva… Odoacro mexe-me com a lança. O dia vai clareando, Frumário mija ao longe e o vento leva a sua urina por caminhos tortuosos. Um vento frio fustiga-me os ossos. Enlaço-me na capa, aconchegando minha cabeça e pescoço. Pegamos no javali, dependurado com as quatros patas num escarnado tronco de jovem pinheiro, a descida para o lugar de Ulfe ainda é trabalhosa e maçadora. Fomos vagarosamente seguindo pelos inclinados trilhos de cabras da serra sagma[1], onde ao fundo um ribeiro sinuoso entre o penedio se transformará num rio formoso onde me baptizaram. Ao final da manhã chegávamos às margens onde verificámos as armadilhas em forma de rede para as trutas. Enchemos meia cesta de trutas e lampreias, onde esperaríamos trocar por carne no lugar de Ulf. Merendamos pão duro,
Ouço alguém e rio-me, “Fantasma! Fantasminha”, dirijo-me ao horto, saindo da casa do senhor, ena! As couves estão altíssimas! É uma pena que ninguém as venha colher com medo dos peidos dos espectros.Entro num edifício já mais fechado e fresco, com um tanque rodeado por uma faixa de ladrilhos, pouso a pesada lança, descalço as botas de camurça, desapertando os incomodativos atilhos de couro, deixo cair o pesado manto castanho de meu corpo, abrindo o alfinete do broche circular bretão, uma das poucas heranças de meus pais que escaparam às garras dos meu tios que me querem ver morto. “Boríngio! Boríngio! Não te deixes levar pela tua paranóia…” Retiro o colete de peles e a túnica suada preta, descalço as bragas quadriculadas e meto-me como vim ao mundo na água tépida, esfregando-me com o barrote.