Levanto-me da rede, essa conversa ocorreu já há um ano, lembro-me da queda dos Alanos e dos últimos navios vândalos partirem, a noiva ainda não chegou, penso em Cibelle e desferrolho a pesada porta, dando um pontapé a Frumário e recebendo o gélido vento, protejo-me com a capa e empunho um archote, procurando o jovem Camalo, encolhido na garita, surpreendo-o gritando:
- Raios mestre Langobardo! Por momentos pensei que fosse um demónio.
- As sombras tem-te apoquentado? – pergunto-lhe, tremendo com as pernas de frio. Camalo tira a cabeça da guarita, amarelo e enregelado e com olhos dormentes, tinha o cabelo em forma de malga, de facto foi Cassiano, o padre que lhe cortou o cabelo à tesourada, pondo-lhe uma malga de barro de vinho tinto em cima da cabeça. Camalo perscruta as muralhas para sul e para norte, apontando-me com a sua manga felpuda de ovelha:
- Além. - miro atentamente e parece que as sombras em forma de homens e cavalos pulavam a muralha, tornando-a a subir para pular de novo como um concurso de saltos. – Estranho! Parece que brincam! Camalo retira-te, vai dormir e aparece daqui a duas horas. – o mancebo sorri satisfeito e dá-me com a mão em meu ombro escamado e pergunta-me:
- Em que pensais, mestre? – eu olho para ele e depois miro as sombras que se desvanecem e perfuram as casas baixas pelas telhas de barro.
- Minha noiva prometida, já há um ano que não aparece.
- Mestre! Você vai deixar de adorar Wotan?
- Que achas Camalo?
- Que não, apesar de ser aspergido três vezes nas águas gélidas do Cuda[1], vai continuar a evocar o deus do trovão em noites de trovoada. – toca no meu martelo de prata que repousa dependurado em meu peito antes de se retirar. Observo o mancebo, desajeitado com a longa lança a percorrer a escorregadia muralha. “ …Ser aspergido três vezes nas águas gélidas do Cuda”
Amanhece gelado e nebuloso. Junto à lareira estou a tentar não morrer de frio encolhido na minha capa. Camalo entra na torre, sacudindo-se como um cão das gotículas geladas que lhe decoram o manto e dando três espirros. Odroaco abre os olhos assustado, levantando-se da rede atabalhoadamente e tentando situar-se. Seus olhos bogalhudos e vermelhos adaptam-se à crescente claridade matinal, olha-nos e não diz nada, tentando sair da rede a balançar e buscando a sua lança para começar a patrulhar a muralha. Há uma hora atrás dormitei e tornei a sonhar que duas formas humanas saiam debaixo do braço esquerdo de Ymir, esse sonho não me larga.
Saio da torre e desço as escadas de granito para o compacto povoado, percorrendo o empedrado. Acaricio um cão e bato no lombo de um burro, entro por uma porta baixando a cabeça e levantando os pés. Hermelinda olha para mim, eu olho para a avô que estava deitada noutra dependência numa cama de madeira com colchão de penas e com um crucifixo tosco de barro pregado no xisto acima da cabeça da velha. Aproximo-me de Hermelinda, beijando-a na face como sinal de respeito e aproveitando para chegar a minha mão ao fogo reconfortante.
- Boas Boringio, hoje sonhei com uma boda. – eu rio-me, coço a barba e apanho um piolho, aperto-o e sinto-o a explodir.
- Como é que ela está? – Hermelinda sorri de contente:
- Deu resultado o que fizeste.
- Chuiii! Fala baixo, todo o povo é cristão.
- Sim, eu sei, mas as nossas mezinhas já não resultavam, e sempre ouvi dizer que a vossa magia é poderosa, olha, ontem pus as palavras em linho debaixo dela e hoje ela nem tosse, nem cospe sangue e dorme que nem um bébé.
- Não são palavras, são runas, e daqui a três dias tem que queimar o pano. Mas a magia não pode adiar o inevitável.
- Sim eu sei.
Hermelinda pede-me que a ajude a levantar, dirige-se a uma arca e retira um pão de centeio e um queijo, eu guardo-os na minha sacola anexa ao cinto de couro. O mundo da magia é feito de retribuições, é tudo uma questão de equilíbrio. Um equilíbrio periclitante. Hermelinda era cristã, eu não, mas para as ocultas forças da natureza isso não importa, são cegas, vivas e perigosas e circulam pelo ar e pela terra e o ferro as detém. Enveredo pela saída do fortificado povoado, a porta já tinha sido aberta pelo primeiro camponês ou pastor a sair. Durante o dia, a porta fica sempre aberta, com um sentinela de vigia. Frumário olha-me da parte Este da circular muralha, escondo a minha bolsa cheia, tapando-a com a capa para não despertar invejas e intrigas. Trilho o caminho de cabras à volta da muralha, sentindo o olhar inquisidor do preguiçoso como perguntando “aonde é que ele vai?”, procuro Odroaco na torre e nas muralhas e minha vista não o alcança, fico enervado, ponho as mãos a fazer de funil para a minha voz e grito:
- RAIOS, FRUMÁRIO, ONDE ESTÁ ODROACO?!! NÃO O VEJO A PATRULHAR? – Frumário, com a andrajosa gadelha ao vento, assinala-me a torre com o escudo oval pintado de negro e vermelho. Eu olho a alta torre quadrada, trabalho dos anteriores donos romanos, tapando o sol frio e radioso com a palma da mão. Vejo uma cabecinha loira de farto cabelo puxado para trás a emergir.
- Raios! Pelo martelo de Donnar! Quero-te bem à vista!
- Para quê? Assim o inimigo vê-me! – replica Odroaco. Que inimigo?! penso eu fazendo-lhe um manguito.
- Quero-te à vista não te quero a dormir nas ameias! – torno a ralhar-lhe empunhando-lhe o chicote, torno a trilhar caminho não antes sem tornar a deitar a vista à torre.
O obediente Odroaco, o da trança loira, filho bastardo do rei Hermerico, assume-se altivo e descontente na torre. Frumário continua-me a seguir com os olhos, eu paro de caminhar e encaro-o fixamente, o gadelhas vira a cara e calmamente torna a fazer a ronda, eu desço pelo pedregoso monte abaixo, apartando as cabras e cumprimentando o pastor Brigo que tocava flauta de pã, agradado e acompanhado pela música embrenho-me urze adentro ouvindo melros e vendo duas enormes águias pairando ao longe.
[1] rio coa
Rodeado de húmido matagal, encontro um caminho de folhas secas dos teixos, freixos, carvalhos e aveleiras que ladeiam o mesmo. Percorro-o durante meia hora olhando para todos os lados e vendo os fumos saídos da fortaleza que coroa o monte Gerião[1], baptizei-o assim em nome do monte do norte onde a minha grei assentou. Uma elevação granítica estava à minha frente, salpicada de declinados carvalhos e oliveiras, dois corvos desciam e subiam uma dessas árvores e eu achei aquilo um bom presságio. Começo a subir o penedio monte, calcando as caganitas das cabras, encontro as fendas xistosas e embrenho-me nelas a medo entoando cânticos contra os duendes do ferro, um anão estava à minha frente de gorro vermelho e varapau. - O teu mestre está? – pergunto-lhe dando-lhe uma moeda com a esfinge do Imperador Teodósio. O anãozinho, de cara enrugada, toma o peso do metal e trinca-o avaliando o seu valor, depois dá-me passagem pela fenda, eu passo por ele e quando lhe ia agradecer o mesmo j
Nessa noite, em Saturnring, bebi muito, como se toda a minha vida não tivesse sentido o que de facto não estava muito longe da verdade. Relembrava a infância despreocupada com meu pai em que brincávamos com cavalos de madeira nos acampamentos. Debruçado sobre a mesa estou com uma ligeira dor de barriga, tive que implorar a Frumário que produzisse hidromel. Observo a escrava que comprámos para nós os quatro, que é a guarnição sueva que guarda Saturning, Camalo olha para a moçoila a medo, creio que ele ainda é virgem e a mim não me apetece nada meter com ela. Odoacro é o único que fala com ela brincando com as mamas. Frumário crê que comprar a escrava foi um mau negócio e eu tenho a mesma opinião. Veio de Tarragona, trazida por um árabe, há muito tempo estabelecido em Hispânia, não percebe nada do que nós lhe dizemos e é imprestável para qualquer serviço. Como será
Tropeço num prato de barro cheio de ossos de borrego e estatelo-me no chão batido de terra, a dor no nariz é atroz e levo os dedos à cana a ver se a tinha partido, estou tonto, ajudam-me a levantar:- Deixem passar, lá para fora, lá para fora a respirar ar puro. - Odoacro e Brigo encostam-me num acento de granito que saia da base da torre. Lá, deixam-me sozinho a recozer as minhas dores, de tronco nu e recebendo a geada no lombo, “filhos da puta esqueceram-se de mim»! A lua está pálida e encolhida sobre si mesma como que hibernando na letargia da Estação da neve. – Ó da torre! Ó da torre! – o vento frio fustiga-me os ossos afectando-me os pulmões. – Ó da torre! Ó da torre! – nu, no mais desolado cenário montanhês. – Ó da torre! Ó da torre! – creio que chamam, mas será o hidromel a circ
- Quando acordei, ela estava a andar nas traves com as pombas. - Bloqueio a mente e o problema, pensando noutro assunto: - Existem casebres vagos intra-muros? Hermelinda deixa de olhar a avô malabarista e responde-me: - Eu arranjo-lhe casa, mas não espere grande coisa, mas pelo menos um braseiro e uma rede onde não entra chuva arranja-se, há gente que deixou as casas e nunca mais voltaram, procuraram o mar para se assentar com as invasões. - Sim eu sei. - dirijo-me à parede onde dependuradas estão longas lanças de caçar javalis e matar homens. A pele da avô de Hermelinda está esticadinha e mesmo sua voz está mais límpida, bloqueio o assunto perante Hermelinda que me perguntava com o seu olhar inquisidor: que raios fizeste com a minha avó? Envergamos coletes de lobo e ovelha e empunhamos longas lanças, Camalo fica de guarda nas ameias, penso no absurdo de ter só um homem nas ameias, mas pelo menos consegue fechar a porta caso alguém tente entra
Eu fico eternamente a olhar a fogueira, e, em meu sono de vigília, imagens díspares aparecem-me e desaparecem-me. Os lobos, a cauda de Odoacro o eleito, Quinto Célio empalado nas lanças juntamente com a minha noiva… Odoacro mexe-me com a lança. O dia vai clareando, Frumário mija ao longe e o vento leva a sua urina por caminhos tortuosos. Um vento frio fustiga-me os ossos. Enlaço-me na capa, aconchegando minha cabeça e pescoço. Pegamos no javali, dependurado com as quatros patas num escarnado tronco de jovem pinheiro, a descida para o lugar de Ulfe ainda é trabalhosa e maçadora. Fomos vagarosamente seguindo pelos inclinados trilhos de cabras da serra sagma[1], onde ao fundo um ribeiro sinuoso entre o penedio se transformará num rio formoso onde me baptizaram. Ao final da manhã chegávamos às margens onde verificámos as armadilhas em forma de rede para as trutas. Enchemos meia cesta de trutas e lampreias, onde esperaríamos trocar por carne no lugar de Ulf. Merendamos pão duro,
Ouço alguém e rio-me, “Fantasma! Fantasminha”, dirijo-me ao horto, saindo da casa do senhor, ena! As couves estão altíssimas! É uma pena que ninguém as venha colher com medo dos peidos dos espectros.Entro num edifício já mais fechado e fresco, com um tanque rodeado por uma faixa de ladrilhos, pouso a pesada lança, descalço as botas de camurça, desapertando os incomodativos atilhos de couro, deixo cair o pesado manto castanho de meu corpo, abrindo o alfinete do broche circular bretão, uma das poucas heranças de meus pais que escaparam às garras dos meu tios que me querem ver morto. “Boríngio! Boríngio! Não te deixes levar pela tua paranóia…” Retiro o colete de peles e a túnica suada preta, descalço as bragas quadriculadas e meto-me como vim ao mundo na água tépida, esfregando-me com o barrote.
Está gelo aqui. Sento-me num banquinho e tiro meia moeda de prata da minha bolsinha anexa ao cinto. Tudo no mundo da magia faz-se por trocas . O rapaz, o sétimo filho do sétimo filho, acorda com a moeda a aterrar no seu peito. Está branco e tísico e parece que vai morrer, mas Inverno apôs Inverno mantém-se firme na cama, só se levantando na Primavera e no Verão e tornando a adoecer no Outono. Se não fosse um sétimo filho do sétimo filho há muito que Ulf o teria afogado no Cuda, mas um sétimo sabe coisas, e é uma espécie de talismã, e a vida de Ulf tem corrido bem nestas serranias. - Minorca. - Não o chameis assim. - Minorca, brinquei contigo o Verão passado, fomos pescar e subir às árvores, lembras-te? – pergunto ao puto. Ele abre seus bogalhudos olhos, limpa-os e perscruta-me dizendo: - Boríngio. - Aldo. - Fizeste-me uma espada de madeira - ..E um arco. - E um arco. – o mancebo remata e tosse convulsivamente. Cib
Retiro, dum armário enfaixado na parede acima da cama, uma túnica, envergo-a e acerco-me do fogo, está um gato pachorrento num dos cantos vigiando as frechas dos ratos.- Como se chama o gato?- Sexta-feira.- Sexta-feira? – pergunto surpreendido por ela ter falado.Sexta? Dia de frig? observo o gato preto com seus olhos azuis demónio-saltitantes. É sempre bom ter um gato, para fazer trabalhos contra os génios maus que se alojam nos cantos da casa. Toco no martelo lembrando-me de runas fortes. Desembainho a espada, apontando-a à noiva.- Como vos chamais?- Sardenna.- Que raio de nome é esse? Sarmata? Dacio? Cita? - Embainho a espada, pescando-lhe o olho. Seus olhos rasgados continuavam sem alguma emoção, senta-se no chão e recua num doloroso passado:- Minha origem é gépida. Vivíamos em grandes tendas redondas nas margens d