Capt.2

Levanto-me da rede, essa conversa ocorreu já há um ano, lembro-me da queda dos Alanos e dos últimos navios vândalos partirem, a noiva ainda não chegou, penso em Cibelle e desferrolho a pesada porta, dando um pontapé a Frumário e recebendo o gélido vento, protejo-me com a capa e empunho um archote, procurando o jovem Camalo, encolhido na garita, surpreendo-o gritando:

- Raios mestre Langobardo! Por momentos pensei que fosse um demónio.

- As sombras tem-te apoquentado? – pergunto-lhe, tremendo com as pernas de frio. Camalo tira a cabeça da guarita, amarelo e enregelado e com olhos dormentes, tinha o cabelo em forma de malga, de facto foi Cassiano, o padre que lhe cortou o cabelo à tesourada, pondo-lhe uma malga de barro de vinho tinto em cima da cabeça. Camalo perscruta as muralhas para sul e para norte, apontando-me com a sua manga felpuda de ovelha:

- Além. - miro atentamente e parece que as sombras em forma de homens e cavalos pulavam a muralha, tornando-a a subir para pular de novo como um concurso de saltos. – Estranho! Parece que brincam! Camalo retira-te, vai dormir e aparece daqui a duas horas. – o mancebo sorri satisfeito e dá-me com a mão em meu ombro escamado e pergunta-me:

- Em que pensais, mestre? – eu olho para ele e depois miro as sombras que se desvanecem e perfuram as casas baixas pelas telhas de barro.

- Minha noiva prometida, já há um ano que não aparece.

- Mestre! Você vai deixar de adorar Wotan?

- Que achas Camalo?

- Que não, apesar de ser aspergido três vezes nas águas gélidas do Cuda[1], vai continuar a evocar o deus do trovão em noites de trovoada. – toca no meu martelo  de prata que repousa dependurado em meu peito antes de se retirar. Observo o mancebo, desajeitado com a longa lança a percorrer a escorregadia muralha. “ …Ser aspergido três vezes nas águas gélidas do Cuda”

Amanhece gelado e nebuloso. Junto à lareira estou a tentar não morrer de frio encolhido na minha capa. Camalo entra na torre, sacudindo-se como um cão das gotículas geladas que lhe decoram o manto e dando três espirros. Odroaco abre os olhos assustado, levantando-se da rede atabalhoadamente e tentando situar-se. Seus olhos bogalhudos e vermelhos adaptam-se à crescente claridade matinal, olha-nos e não diz nada, tentando sair da rede a balançar e buscando a sua lança para começar a patrulhar a muralha. Há uma hora atrás dormitei e tornei a sonhar que duas formas humanas saiam debaixo do braço esquerdo de Ymir, esse sonho não me larga.

Saio da torre e desço as escadas de granito para o compacto povoado, percorrendo o empedrado. Acaricio um cão e bato no lombo de um burro, entro por uma porta baixando a cabeça e levantando os pés. Hermelinda olha para mim, eu olho para a avô que estava deitada noutra dependência numa cama de madeira com colchão de penas e com um crucifixo tosco de barro pregado no xisto acima da cabeça da velha. Aproximo-me de Hermelinda, beijando-a na face como sinal de respeito e aproveitando para chegar a minha mão ao fogo reconfortante.

- Boas Boringio, hoje sonhei com uma boda. – eu rio-me, coço a barba e apanho um piolho, aperto-o e sinto-o a explodir.

- Como é que ela está? – Hermelinda sorri de contente:

- Deu resultado o que fizeste.

- Chuiii! Fala baixo, todo o povo é cristão.

- Sim, eu sei, mas as nossas mezinhas já não resultavam, e sempre ouvi dizer que a vossa magia é poderosa, olha, ontem pus as palavras em linho debaixo dela e hoje ela nem tosse, nem cospe sangue e dorme que nem um bébé.

- Não são palavras, são runas, e daqui a três dias tem que queimar o pano. Mas a magia não pode adiar o inevitável.

- Sim eu sei.

Hermelinda pede-me que a ajude a levantar, dirige-se a uma arca e retira um pão de centeio e um queijo, eu guardo-os na minha sacola anexa ao cinto de couro. O mundo da magia é feito de retribuições, é tudo uma questão de equilíbrio. Um equilíbrio periclitante. Hermelinda era cristã, eu não, mas para as ocultas forças da natureza isso não importa, são cegas, vivas e perigosas e circulam pelo ar e pela terra e o ferro as detém. Enveredo pela saída do fortificado povoado, a porta já tinha sido aberta pelo primeiro camponês ou pastor a sair. Durante o dia, a porta fica sempre aberta, com um sentinela de vigia. Frumário olha-me da parte Este da circular muralha, escondo a minha bolsa cheia, tapando-a com a capa para não despertar invejas e intrigas. Trilho o caminho de cabras à volta da muralha, sentindo o olhar inquisidor do preguiçoso como perguntando “aonde é que ele vai?”, procuro Odroaco na torre e nas muralhas e minha vista não o alcança, fico enervado, ponho as mãos a fazer de funil para a minha voz e grito:

- RAIOS, FRUMÁRIO, ONDE ESTÁ ODROACO?!! NÃO O VEJO A PATRULHAR? – Frumário, com a andrajosa gadelha ao vento, assinala-me a torre com o escudo oval pintado de negro e vermelho. Eu olho a alta torre quadrada, trabalho dos anteriores donos romanos, tapando o sol frio e radioso com a palma da mão. Vejo uma cabecinha loira de farto cabelo puxado para trás a emergir.

- Raios! Pelo martelo de Donnar! Quero-te bem à vista!

- Para quê? Assim o inimigo vê-me! – replica Odroaco. Que inimigo?! penso eu fazendo-lhe um manguito.

- Quero-te à vista não te quero a dormir nas ameias! – torno a ralhar-lhe empunhando-lhe o chicote, torno a trilhar caminho não antes sem tornar a deitar a vista à torre.

O obediente Odroaco, o da trança loira, filho bastardo do rei Hermerico, assume-se altivo e descontente na torre. Frumário continua-me a seguir com os olhos, eu paro de caminhar e encaro-o fixamente, o gadelhas vira a cara e calmamente torna a fazer a ronda, eu desço pelo pedregoso monte abaixo, apartando as cabras e cumprimentando o pastor Brigo que tocava flauta de pã, agradado e acompanhado pela música embrenho-me urze adentro ouvindo  melros e vendo duas enormes águias pairando ao longe.

[1] rio coa

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