Rodeado de húmido matagal, encontro um caminho de folhas secas dos teixos, freixos, carvalhos e aveleiras que ladeiam o mesmo. Percorro-o durante meia hora olhando para todos os lados e vendo os fumos saídos da fortaleza que coroa o monte Gerião[1], baptizei-o assim em nome do monte do norte onde a minha grei assentou. Uma elevação granítica estava à minha frente, salpicada de declinados carvalhos e oliveiras, dois corvos desciam e subiam uma dessas árvores e eu achei aquilo um bom presságio. Começo a subir o penedio monte, calcando as caganitas das cabras, encontro as fendas xistosas e embrenho-me nelas a medo entoando cânticos contra os duendes do ferro, um anão estava à minha frente de gorro vermelho e varapau.
- O teu mestre está? – pergunto-lhe dando-lhe uma moeda com a esfinge do Imperador Teodósio. O anãozinho, de cara enrugada, toma o peso do metal e trinca-o avaliando o seu valor, depois dá-me passagem pela fenda, eu passo por ele e quando lhe ia agradecer o mesmo já lá não estava. Lembro-me que a ilusão é provocada em nós mesmos logo é uma coisa que não acontece na realidade, o anão não me desapareceu da vista, eu é que penso que sim e não o vejo, o segredo está aí.
Atrace era velho e deu o lugar aos mais jovens e robustos feiticeiros que acompanham o rei Hermerico como Abracax e Arioax, seu tempo acabou quando deixamos a velha Suábia no sul da Germânia, entre o Danúbio e o Main, seu tempo ficou ai: na arcaica floresta negra dos cavalos brancos e nichos das deusas que se encontram ocultas nos lagos. Devia ser diferente do que é aqui; viver rodeados de inimigos por todos os lados e sobreviver no lodaçal que era a velha Germânia. Quando acossados pelos Hunos saímos todos, Atrace passou o poder rúnico e apanhou boleia num dos carros de bois que atravessaram a Europa. É cego de um olho, o olho esquerdo, o olho da clarividência, o olho que o velho pai sacrificou amarrado ao freixo sagrado nos inícios do mundo. Baixo a cabeça e desvio um pesado pano de fazenda para entrar para uma baixa alcova, vergo-me respeitosamente perante Atrax o mago, o magno pressagiador. Ele estranha a minha reverência como algo que estivesse enterrado na mítica floresta negra, muito longe dali. De joelhos e iluminados por duas lucernas, retiro do alforge o pão e o queijo embrulhado, com uma faca parto meio-queijo e entrego-lhe, corto-lhe também uma fatia de pão, ele põe-se a mastigar com os seus únicos dois dentes da frente perguntando-me:
- Sois Boríngio, o chefe de Saturnring[2]?
- Sim, sou mestre! preciso que me decifreis um sonho que me apoquenta.
- Todos temos sonhos que nos apoquentam, e não é por isso que corremos a consultar runamais. Os reis, esses sim têm que analisar todos os sonhos, dado que conduzem muita gente, mas o comum dos guerreiros ou do camponês não precisa. – diz-me encolhendo os ombros e continuando a comer, mira-me de alto abaixo com seu único olho azulão, que mais sobressaía com seu cabelo ralo branco e suas barbas também ralas e também brancas, era moreno e seu rosto ossudo estava com sulcos que indicavam os caminhos que percorrera.
- Esse anel que envergais no dedo dá-me dores de cabeça.
Eu olho o anel de couro preto que trago no dedo, nele estão inscritas runas protectoras contra feitiços e feiticeiros.
- Raios, Boringio, não te chega o martelo de Donnar[3] que tendes ao peito, para que raios quereis mais protecção? – pergunta meio enervado.
- Eu vejo coisas e sou hábil nos artefactos de magia. – o velho franze-me o sobrolho.
- Fizeste alguma coisa ontem? – eu penso no pano linho das runas.
- Sim fiz um feitiço para um doente.
- E fizeste-o bem? – pus-me a pensar que eu, como tantos outros na minha idade, receberam a chamada iniciação nos mistérios odinistas, mas somente isso, lembrei-me do perigo de fazer um mau encantamento.
- Acho que sim, mestre. - coço nervosamente a minha barba. Atrace mexia calmamente com uma vareta os pedaços de freixos sagrados alumiados pelas lucerna, sorriu mostrando seus dois dentes da frente. Coça o nariz, tornando-me a observar com seu olho azulão.
- Que escreveste no pano de linho? – relembro as runas e a medo digo-lhe:
- Que a vida regresse ao corpo da avó de Hermelinda. – Atrace arregila-me mais o olho. Raios, será que fiz bosta?
- Mum, não deverias antes escrever “longa vida para o corpo da avó de Hermelinda?
- Mas qual é a diferença?
- Qual é a diferença? – pergunta-me exaltado, atirando-me a vara à cara. Eu, respeitosamente apanho-a e com a cabeça baixa torno-a a oferecer-lha.
- Demora toda uma vida a fazer um bom runamal. – declara, olhando novamente os pedaços de seixo. Eu pensei que ele me explicaria o que é que eu tinha feito mal, mas creio que foi algo de tão irreversível que já não vale a pena anular nada.
- Bem, vamos lá a isso.
Ymir, gigante gelado
Ouve minha súplica dos tempos futuros
Conduz minha mão nos seixos do destino
Do teu braço nasceram os dois
Os que agora entram em sonhos
Dum servo teu, mui devotado
Ilumina pois, segredos desvelados
É sempre bom ouvir as palavras mágicas. A súplica partiu da terra média, foi ouvida no palácio dos deuses e ecoou nos labirintos das raízes de Yrdrasil e nos calabouços de Hel. O gelado Ymir nem sequer acordou, apenas pestanejou, esse pestanejar foi suficiente para aclarar o lançar dos freixos que Atrace acabara de consumar. O mago ordena-me rispidamente que aproxime a lucerna do campo do sol onde caíram os freixos, eu reparo em runas de união tais como Beoc e engulo em seco.
- Mum…Nascimento, fertilidade ou casamento, duas runas de casamento, e uma de viagem e boas notícias vindas de longe. Parabéns Boríngio, vais casar. – casar?! Eu! O casamento para mim era uma daquelas coisas distantes que só aconteciam aos outros e que nós aparecíamos para beber, comer e dançar ao som dos adaúfes e das cornetas. Tusso de nervosismo.
- Então é esse o significado do sonho? E é preciso um gigante para me dizer isso? – pergunto exaltado.
- Vais ter que te baptizar.
- O quê? não quero! não me baptizo, meu pai dava voltas na tumba. – comecei a ficar nervoso, um nervoso miudinho a subir pelas pernas.
[1] Geres
[2] sortelha
[3] designação arcaica de Thor, deus indo-europeu do trovão.
Nessa noite, em Saturnring, bebi muito, como se toda a minha vida não tivesse sentido o que de facto não estava muito longe da verdade. Relembrava a infância despreocupada com meu pai em que brincávamos com cavalos de madeira nos acampamentos. Debruçado sobre a mesa estou com uma ligeira dor de barriga, tive que implorar a Frumário que produzisse hidromel. Observo a escrava que comprámos para nós os quatro, que é a guarnição sueva que guarda Saturning, Camalo olha para a moçoila a medo, creio que ele ainda é virgem e a mim não me apetece nada meter com ela. Odoacro é o único que fala com ela brincando com as mamas. Frumário crê que comprar a escrava foi um mau negócio e eu tenho a mesma opinião. Veio de Tarragona, trazida por um árabe, há muito tempo estabelecido em Hispânia, não percebe nada do que nós lhe dizemos e é imprestável para qualquer serviço. Como será
Tropeço num prato de barro cheio de ossos de borrego e estatelo-me no chão batido de terra, a dor no nariz é atroz e levo os dedos à cana a ver se a tinha partido, estou tonto, ajudam-me a levantar:- Deixem passar, lá para fora, lá para fora a respirar ar puro. - Odoacro e Brigo encostam-me num acento de granito que saia da base da torre. Lá, deixam-me sozinho a recozer as minhas dores, de tronco nu e recebendo a geada no lombo, “filhos da puta esqueceram-se de mim»! A lua está pálida e encolhida sobre si mesma como que hibernando na letargia da Estação da neve. – Ó da torre! Ó da torre! – o vento frio fustiga-me os ossos afectando-me os pulmões. – Ó da torre! Ó da torre! – nu, no mais desolado cenário montanhês. – Ó da torre! Ó da torre! – creio que chamam, mas será o hidromel a circ
- Quando acordei, ela estava a andar nas traves com as pombas. - Bloqueio a mente e o problema, pensando noutro assunto: - Existem casebres vagos intra-muros? Hermelinda deixa de olhar a avô malabarista e responde-me: - Eu arranjo-lhe casa, mas não espere grande coisa, mas pelo menos um braseiro e uma rede onde não entra chuva arranja-se, há gente que deixou as casas e nunca mais voltaram, procuraram o mar para se assentar com as invasões. - Sim eu sei. - dirijo-me à parede onde dependuradas estão longas lanças de caçar javalis e matar homens. A pele da avô de Hermelinda está esticadinha e mesmo sua voz está mais límpida, bloqueio o assunto perante Hermelinda que me perguntava com o seu olhar inquisidor: que raios fizeste com a minha avó? Envergamos coletes de lobo e ovelha e empunhamos longas lanças, Camalo fica de guarda nas ameias, penso no absurdo de ter só um homem nas ameias, mas pelo menos consegue fechar a porta caso alguém tente entra
Eu fico eternamente a olhar a fogueira, e, em meu sono de vigília, imagens díspares aparecem-me e desaparecem-me. Os lobos, a cauda de Odoacro o eleito, Quinto Célio empalado nas lanças juntamente com a minha noiva… Odoacro mexe-me com a lança. O dia vai clareando, Frumário mija ao longe e o vento leva a sua urina por caminhos tortuosos. Um vento frio fustiga-me os ossos. Enlaço-me na capa, aconchegando minha cabeça e pescoço. Pegamos no javali, dependurado com as quatros patas num escarnado tronco de jovem pinheiro, a descida para o lugar de Ulfe ainda é trabalhosa e maçadora. Fomos vagarosamente seguindo pelos inclinados trilhos de cabras da serra sagma[1], onde ao fundo um ribeiro sinuoso entre o penedio se transformará num rio formoso onde me baptizaram. Ao final da manhã chegávamos às margens onde verificámos as armadilhas em forma de rede para as trutas. Enchemos meia cesta de trutas e lampreias, onde esperaríamos trocar por carne no lugar de Ulf. Merendamos pão duro,
Ouço alguém e rio-me, “Fantasma! Fantasminha”, dirijo-me ao horto, saindo da casa do senhor, ena! As couves estão altíssimas! É uma pena que ninguém as venha colher com medo dos peidos dos espectros.Entro num edifício já mais fechado e fresco, com um tanque rodeado por uma faixa de ladrilhos, pouso a pesada lança, descalço as botas de camurça, desapertando os incomodativos atilhos de couro, deixo cair o pesado manto castanho de meu corpo, abrindo o alfinete do broche circular bretão, uma das poucas heranças de meus pais que escaparam às garras dos meu tios que me querem ver morto. “Boríngio! Boríngio! Não te deixes levar pela tua paranóia…” Retiro o colete de peles e a túnica suada preta, descalço as bragas quadriculadas e meto-me como vim ao mundo na água tépida, esfregando-me com o barrote.
Está gelo aqui. Sento-me num banquinho e tiro meia moeda de prata da minha bolsinha anexa ao cinto. Tudo no mundo da magia faz-se por trocas . O rapaz, o sétimo filho do sétimo filho, acorda com a moeda a aterrar no seu peito. Está branco e tísico e parece que vai morrer, mas Inverno apôs Inverno mantém-se firme na cama, só se levantando na Primavera e no Verão e tornando a adoecer no Outono. Se não fosse um sétimo filho do sétimo filho há muito que Ulf o teria afogado no Cuda, mas um sétimo sabe coisas, e é uma espécie de talismã, e a vida de Ulf tem corrido bem nestas serranias. - Minorca. - Não o chameis assim. - Minorca, brinquei contigo o Verão passado, fomos pescar e subir às árvores, lembras-te? – pergunto ao puto. Ele abre seus bogalhudos olhos, limpa-os e perscruta-me dizendo: - Boríngio. - Aldo. - Fizeste-me uma espada de madeira - ..E um arco. - E um arco. – o mancebo remata e tosse convulsivamente. Cib
Retiro, dum armário enfaixado na parede acima da cama, uma túnica, envergo-a e acerco-me do fogo, está um gato pachorrento num dos cantos vigiando as frechas dos ratos.- Como se chama o gato?- Sexta-feira.- Sexta-feira? – pergunto surpreendido por ela ter falado.Sexta? Dia de frig? observo o gato preto com seus olhos azuis demónio-saltitantes. É sempre bom ter um gato, para fazer trabalhos contra os génios maus que se alojam nos cantos da casa. Toco no martelo lembrando-me de runas fortes. Desembainho a espada, apontando-a à noiva.- Como vos chamais?- Sardenna.- Que raio de nome é esse? Sarmata? Dacio? Cita? - Embainho a espada, pescando-lhe o olho. Seus olhos rasgados continuavam sem alguma emoção, senta-se no chão e recua num doloroso passado:- Minha origem é gépida. Vivíamos em grandes tendas redondas nas margens d
Odoacro aponta a mesma, lentamente a pesado portal ficou escancarado e da escuridão saiu o nosso pesadelo, cavaleiros irrompiam do caos com longas crinas nos capecetes, ondulando ao vento e retesando os arcos.- Mexam-se! Dispersem! - grito enquanto vejo um cavaleiro de mitra na cabeça atirando sobre as indefesas gentes das muralhas. Hermelinda recebeu a frechada na barriga e caiu redonda no empedrado. Corro levando Sardenna, mas alguém em fuga vem contra mim e caímos os dois, a mão de Sardenna vai-se, levanto-me em pânico, procurando a minha noiva, corria algures no meio da multidão que descia das muralhas e se embrenhava pelas ruelas estreitas do horror. Olho para trás e evito um cimitarra que falha a minha cabeça por milímetros. Amarro-me ao rabo de cavalo, puxo-o, impulsiono o meu corpo para a frente apoio o braço na perna do filho da espete, ele dá-me com o punho da cimitarra na cabe