Nessa noite, em Saturnring, bebi muito, como se toda a minha vida não tivesse sentido o que de facto não estava muito longe da verdade. Relembrava a infância despreocupada com meu pai em que brincávamos com cavalos de madeira nos acampamentos. Debruçado sobre a mesa estou com uma ligeira dor de barriga, tive que implorar a Frumário que produzisse hidromel.
Observo a escrava que comprámos para nós os quatro, que é a guarnição sueva que guarda Saturning, Camalo olha para a moçoila a medo, creio que ele ainda é virgem e a mim não me apetece nada meter com ela. Odoacro é o único que fala com ela brincando com as mamas. Frumário crê que comprar a escrava foi um mau negócio e eu tenho a mesma opinião. Veio de Tarragona, trazida por um árabe, há muito tempo estabelecido em Hispânia, não percebe nada do que nós lhe dizemos e é imprestável para qualquer serviço.
Como será a minha noiva? Dizem que as galo e as luso-romanas são boas a organizar a casa, ao contrário das suevas, são piores que os homens, excepto nos trabalhos agrícolas. As mulheres suevas foram feitas para andar atrás dos homens a combater e a caçar, umas verdadeiras amazonas, agora, com a sedentarização à vista, os hábitos forçosamente terão que se alterar.
Estou triste e carrancudo. Odoacro, vendo meu estado melancólico, pega na harpa dedilhando uma suave melodia. Ele já foi iniciado dos bardos, da época que todos tínhamos sonhos! Ó bastarzinho! Canta com a sua melodiosa voz a epopeia dos burgundos que pereceram sob Átila rei dos huns:
Triste Sirmium, cercada estás
Gunterico, volker e seus sequazes
Miram tristes por detrás das barricadas
Os godos, hunos e saxões
Rodeando o acampamento
O harpista continua dedilhando as cordas melodiosas, entoando a traição de Brunilda e o incêndio do castellum dos burgundos. Casar?! Meter uma desconhecida por mim adentro, ainda por cima não tenho casa, tenho esta choça com que me deito com a guarnição. Olho a velha e poeirenta torre, onde nas traves uma galinha dorme. Isto não é sítio para receber uma dona. Emborco mais hidromel. Como estaria eu nos montes gerião agora? Se meu pai não tivesse morrido e meus tios me tivessem dado a terra que é minha? UM SENHOR? Mas aqui sou um senhor, um senhor de merda, mas um senhor e só respondo perante o rei, tais como todos os alcaides espalhados em Ibéria.
Estava todo enregelado sentindo os fémures e as tíbias a doerem-me, estou nu e com as águas gélidas do tuda abaixo um bocadito dos tomates. Odoacro e Frumário tem o gozo estampado na cara. Eles não são cristãos, ou se algum dia forem, creio que se converterão no pico do Verão para não terem que tomar banho no pico do Inverno. Estou abraçado a mim mesmo como maneira de tentar reter algum calor, enquanto Cassiano, coadjuvado pelo jovem eremita, tenta ganhar coragem para entrar com seus ricos pés no Inferno gelado do vagaroso rio. Por fim, lá toma coragem e chapinha na água até onde eu estou, sua cara roboriza, o sangue é obrigado a correr dum lado para o outro do seu esquelético corpo, o jovem eremita atira-lhe uma garrafinha de vidro contendo um óleo santo, sinto o padre a tremer, enquanto retira a pequena rolhinda e unta a ponta do dedo indicador:
- O poder de Cristo Salvador vos defenda. Em sinal desse poder eu vos faço esta unção em nome do mesmo Cristo nosso senhor que vive e reina por todos os séculos.
Unta-me fazendo uma cruz na minha testa. Os lobos uivaram, Odoacro e Frumário ficaram apreensivos, os lobos são sinais de Woden, o velho pai. A cruz untada recebe vento frio, provocando-me uma sensação esquisita de remorso, os montes escuros estão recortados sobre um pálido luar, a sensação de remorso acentua-se, pensei que fosse mais fácil, as lágrimas querem aflorar em meu duro rosto. Cassiano diz-me para ajoelhar, respiro fundo, ajoelho-me, meus colhões são alagados de água fria:
- Ahhhhhh!
- Que se passa?
- Nada senhor padre, espere um bocadito. – minhas bolas encolhem e parece que rebentam, raios! acho que assim não vou poder receber condignamente a minha noiva cristã no leito. Cassiano continuou:
- Crês em Deus Pai Todo-poderoso Criador do Céu e da Terra? – penso em Woden, com a sua lança e seus dois corvos percorrendo o mundo e honestamente respondo:
- Creio.
- Crês em Jesus Cristo, seu único filho, nosso senhor, que nasceu da Virgem Maria, padeceu e foi sepultado, ressuscitou dos mortos e está à direita do Pai?
- Sim, creio. – miro Odoacro a encolher-me os ombros.
- Crês no Espírito Santo, na Santa Igreja Católica, na comunhão dos santos, na remissão dos pecados, na ressurreição da carne e na vida eterna?
- Sim, creio. – pisco o olho a Frumário, eu acreditava na vida eterna e na festa com as valquírias e nos banquetes de caça no palácio de estacas do velho pai. Cassiano guarda o santo óleo na bolsa. Aproxima-se de mim e pondo as mãos na nuca e na minha testa dizendo:
- Eu te baptizo em nome do Pai… - faz a primeira imersão….do Filho… - Faz a segunda imersão. - … e do Espirito Santo. - faz a terceira imersão.
- Agora sois Luz em Cristo. Caminhai sempre como filhos da Luz. Permanecei firmes na fé, para que, quando o senhor vier, estejais prontos a ir ao seu encontro com todos os santos no Reino do Céu.
- Já posso sair daqui padre? Nem sinto o meu nariz.
De regresso a Saturnring fizemos um banquete em honra à minha conversão e às minhas expensas, servimos queijo, pão de centeio, borrego e carne de pato nas brasas, juntamente com uma sopa de pedra que Hermelinda fez e que estava divinal. Frumário produziu bom hidromel e cerveja amarga, que nos conseguia pôr de rastos.
Cassiano discute com o eremita de nome Teófilo, que hoje interrompeu a sua solidão imposta em nome do criador. “solidão imposta pelo criador”, hoje retenho muito os pensamentos, tou com a testa quente, deve ter sido a acção do frio na mona. Já aqueci os pés e o vinho tolda-me o raciocínio. “ solidão imposta pelo criador”, que bonito! Cassiano discute a Santíssima trindade com Teófilo, batendo duro com o punho na mesa e salpicando-me vinho da terra quente.
- Desde Niceia que Anastasio defende uma natureza, três pessoas. - ergue três dedos da mão.
- Diabo dos arianos, dizem que o filho foi criado no tempo, logo tem principio e não é eterno nem igual ao pai. Pró inferno todos com eles! – grita exaltado Cassiano toldado pelo vinho da sacristia. Téofilo põe-se a reflectir na co-eternidade de Cristo com o Pai, trincando uma asa de pato salteada com alho e orégãos, e pela cara de satisfeito dele a co-eternidade devia estar a saber bem. Pusemos a escrava a ajudar Hermelinda com a ameaça de que, se não ajudasse a púnhamos a ferros lá fora, no frio das muralhas. Nunca a vi tão diligentemente a servirmos e a cortar as carnes dos espetos para os pratos de estanho, a avõ de Hermelinda está sentada num banquinho e parece mais viçosa, é! Sou um grande runamal. Levanto-me, cristão converso, ordenando:
- Camalo, toca-me essa gaita de foles, dancemos pois! - O pastor ainda tem de encher o fole, mas desiste e é Brigo que o substitui pegando na gaita longa celta de fole de carneiro negro e enchendo-a de ar. Do seu tubo de sobreiro saíam notas cutilantes duma beligerante melodia arcaica conhecida pela dança-das-espadas. Ébrio e de tronco nu, dou um ágil salto de gato, pondo-me em cima da mesa e dançando intrincados passos antes da eterna batalha. Todos marcavam o ritmo aplaudindo e cantando
Cantemos pois companheiros, todos archeiros entre fundeiros
Entre as falanges que romperemos
Entre o ouro que sacaremos
Vitoriosos sairemos
Entoando a canção da vitória
Tropeço num prato de barro cheio de ossos de borrego e estatelo-me no chão batido de terra, a dor no nariz é atroz e levo os dedos à cana a ver se a tinha partido, estou tonto, ajudam-me a levantar:- Deixem passar, lá para fora, lá para fora a respirar ar puro. - Odoacro e Brigo encostam-me num acento de granito que saia da base da torre. Lá, deixam-me sozinho a recozer as minhas dores, de tronco nu e recebendo a geada no lombo, “filhos da puta esqueceram-se de mim»! A lua está pálida e encolhida sobre si mesma como que hibernando na letargia da Estação da neve. – Ó da torre! Ó da torre! – o vento frio fustiga-me os ossos afectando-me os pulmões. – Ó da torre! Ó da torre! – nu, no mais desolado cenário montanhês. – Ó da torre! Ó da torre! – creio que chamam, mas será o hidromel a circ
- Quando acordei, ela estava a andar nas traves com as pombas. - Bloqueio a mente e o problema, pensando noutro assunto: - Existem casebres vagos intra-muros? Hermelinda deixa de olhar a avô malabarista e responde-me: - Eu arranjo-lhe casa, mas não espere grande coisa, mas pelo menos um braseiro e uma rede onde não entra chuva arranja-se, há gente que deixou as casas e nunca mais voltaram, procuraram o mar para se assentar com as invasões. - Sim eu sei. - dirijo-me à parede onde dependuradas estão longas lanças de caçar javalis e matar homens. A pele da avô de Hermelinda está esticadinha e mesmo sua voz está mais límpida, bloqueio o assunto perante Hermelinda que me perguntava com o seu olhar inquisidor: que raios fizeste com a minha avó? Envergamos coletes de lobo e ovelha e empunhamos longas lanças, Camalo fica de guarda nas ameias, penso no absurdo de ter só um homem nas ameias, mas pelo menos consegue fechar a porta caso alguém tente entra
Eu fico eternamente a olhar a fogueira, e, em meu sono de vigília, imagens díspares aparecem-me e desaparecem-me. Os lobos, a cauda de Odoacro o eleito, Quinto Célio empalado nas lanças juntamente com a minha noiva… Odoacro mexe-me com a lança. O dia vai clareando, Frumário mija ao longe e o vento leva a sua urina por caminhos tortuosos. Um vento frio fustiga-me os ossos. Enlaço-me na capa, aconchegando minha cabeça e pescoço. Pegamos no javali, dependurado com as quatros patas num escarnado tronco de jovem pinheiro, a descida para o lugar de Ulfe ainda é trabalhosa e maçadora. Fomos vagarosamente seguindo pelos inclinados trilhos de cabras da serra sagma[1], onde ao fundo um ribeiro sinuoso entre o penedio se transformará num rio formoso onde me baptizaram. Ao final da manhã chegávamos às margens onde verificámos as armadilhas em forma de rede para as trutas. Enchemos meia cesta de trutas e lampreias, onde esperaríamos trocar por carne no lugar de Ulf. Merendamos pão duro,
Ouço alguém e rio-me, “Fantasma! Fantasminha”, dirijo-me ao horto, saindo da casa do senhor, ena! As couves estão altíssimas! É uma pena que ninguém as venha colher com medo dos peidos dos espectros.Entro num edifício já mais fechado e fresco, com um tanque rodeado por uma faixa de ladrilhos, pouso a pesada lança, descalço as botas de camurça, desapertando os incomodativos atilhos de couro, deixo cair o pesado manto castanho de meu corpo, abrindo o alfinete do broche circular bretão, uma das poucas heranças de meus pais que escaparam às garras dos meu tios que me querem ver morto. “Boríngio! Boríngio! Não te deixes levar pela tua paranóia…” Retiro o colete de peles e a túnica suada preta, descalço as bragas quadriculadas e meto-me como vim ao mundo na água tépida, esfregando-me com o barrote.
Está gelo aqui. Sento-me num banquinho e tiro meia moeda de prata da minha bolsinha anexa ao cinto. Tudo no mundo da magia faz-se por trocas . O rapaz, o sétimo filho do sétimo filho, acorda com a moeda a aterrar no seu peito. Está branco e tísico e parece que vai morrer, mas Inverno apôs Inverno mantém-se firme na cama, só se levantando na Primavera e no Verão e tornando a adoecer no Outono. Se não fosse um sétimo filho do sétimo filho há muito que Ulf o teria afogado no Cuda, mas um sétimo sabe coisas, e é uma espécie de talismã, e a vida de Ulf tem corrido bem nestas serranias. - Minorca. - Não o chameis assim. - Minorca, brinquei contigo o Verão passado, fomos pescar e subir às árvores, lembras-te? – pergunto ao puto. Ele abre seus bogalhudos olhos, limpa-os e perscruta-me dizendo: - Boríngio. - Aldo. - Fizeste-me uma espada de madeira - ..E um arco. - E um arco. – o mancebo remata e tosse convulsivamente. Cib
Retiro, dum armário enfaixado na parede acima da cama, uma túnica, envergo-a e acerco-me do fogo, está um gato pachorrento num dos cantos vigiando as frechas dos ratos.- Como se chama o gato?- Sexta-feira.- Sexta-feira? – pergunto surpreendido por ela ter falado.Sexta? Dia de frig? observo o gato preto com seus olhos azuis demónio-saltitantes. É sempre bom ter um gato, para fazer trabalhos contra os génios maus que se alojam nos cantos da casa. Toco no martelo lembrando-me de runas fortes. Desembainho a espada, apontando-a à noiva.- Como vos chamais?- Sardenna.- Que raio de nome é esse? Sarmata? Dacio? Cita? - Embainho a espada, pescando-lhe o olho. Seus olhos rasgados continuavam sem alguma emoção, senta-se no chão e recua num doloroso passado:- Minha origem é gépida. Vivíamos em grandes tendas redondas nas margens d
Odoacro aponta a mesma, lentamente a pesado portal ficou escancarado e da escuridão saiu o nosso pesadelo, cavaleiros irrompiam do caos com longas crinas nos capecetes, ondulando ao vento e retesando os arcos.- Mexam-se! Dispersem! - grito enquanto vejo um cavaleiro de mitra na cabeça atirando sobre as indefesas gentes das muralhas. Hermelinda recebeu a frechada na barriga e caiu redonda no empedrado. Corro levando Sardenna, mas alguém em fuga vem contra mim e caímos os dois, a mão de Sardenna vai-se, levanto-me em pânico, procurando a minha noiva, corria algures no meio da multidão que descia das muralhas e se embrenhava pelas ruelas estreitas do horror. Olho para trás e evito um cimitarra que falha a minha cabeça por milímetros. Amarro-me ao rabo de cavalo, puxo-o, impulsiono o meu corpo para a frente apoio o braço na perna do filho da espete, ele dá-me com o punho da cimitarra na cabe
Por fim, tudo pára e tento situar-me. Estou numa espécie de nicho, ouço ao longe ecos da conversa entre a avô e Anwari e grito de pânico ao ver um enorme homem de dois metros, gordo e agachado a contemplar-me. Estava totalmente nu e tinha a cabeça rapada. - Tu és um gigante? - Ná! sou um descendente dos gigantes, sou um dos últimos descendentes dos gigantes, e sou hábil a coser. – apresenta-me uma agulha sem pico e um fio finíssimo feito dos tendões dos gamos, minha cabeça lateja e o sangue caindo-me das espessas sobrancelhas toldava-me a visão. - E agora adormece! – a agulha sem pico aproxima-se da minha cabeça. Estava anestesiado enquanto o gigante me cose, esgravatava um chão de palha, e ouvia Anwari a dizer a avó: - Vocês entraram na gruta, é aqui que trabalhamos o ferro, vocês são humanos, só poderão sair na Primavera. O melhor é adormecerem até lá. - Olho a cara diligente do gigante, sua cabeça andava à roda. Quero vomitar, em agonia digo adeus