Capt.7

Eu fico eternamente a olhar a fogueira, e, em meu sono de vigília, imagens díspares aparecem-me e desaparecem-me. Os lobos, a cauda de Odoacro o eleito, Quinto Célio empalado nas lanças juntamente com a minha noiva… Odoacro mexe-me com a lança. O dia vai clareando, Frumário mija ao longe e o vento leva a sua urina por caminhos tortuosos. Um vento frio fustiga-me os ossos. Enlaço-me na capa, aconchegando minha cabeça e pescoço. Pegamos no javali, dependurado com as quatros patas num escarnado tronco de jovem pinheiro, a descida para o lugar de Ulfe ainda é trabalhosa e maçadora. Fomos vagarosamente seguindo pelos inclinados trilhos de cabras da serra sagma[1], onde ao fundo um ribeiro sinuoso entre o penedio se transformará num rio formoso onde me baptizaram. Ao final da manhã chegávamos às margens onde verificámos as armadilhas em forma de rede para as trutas. Enchemos meia cesta de trutas e lampreias, onde esperaríamos trocar por carne no lugar de Ulf.

Merendamos pão duro, cerveja amarga que sobrou do festejo e Frumário descarnou um peixe esquisito mas gordo e assou-o na grelha com coentros. Odoacro ralhou a Quinto por beber a água do Cuda que causa melancolia e dor de cabeça, creio que o poço de água de Saturnring vem de um braço subterraneo do rio, mum!!!

Embrenhamos pela ponte baixa dos três arcos, decerto um trabalho romano, e seguimos por um desfiladeiro negro que ia novamente subindo até às alturas de Sagma. Finalmente, a meio da tarde, chegamos aos sopés. Estou a ficar chagado nos ombros com o peso do javali no tronco.

Os pastores  transcudanos de Ulf saúdam-nos e tomam o meu lugar e o de Odoacro no transporte do pesado animal. Estavam ávidos de notícias do exterior, mas que noticias do exterior? Não se passa nada em Saturnring e depois de Saturning não sabemos o que corre.

- Claro que há novidades! – diz Odoacro contrariando-me:

- Sim, o mestre foi baptizado e sua noiva já chegou, que por sinal é pagã. – os pastores piolhosos, com guedelhas desgrenhadas ao vento e mantos felpudos ficaram confusos e pararam o andamento. Eu viro-me ríspidos para eles:

- Logo teremos tempo para vos contar tudo, agora toca a andar cambada de preguiçosos!

O lugar de ulfe era uma antiga villa romana que produzia bom vinho e azeite.

A estrada empredrada que levava ao centro da propriedade ainda estava ladeada de videiras selvagens  e as estacas por onde sobem as videiras ainda se mantinham de pé, enegrecidas pelos anos. Não seguiríamos para a velha villa romana cujas fachadas se erguiam em ruínas. Os suevos têm medo dos velhos fantasmas que por lá andam. Em noites silenciosas ouvem-se lamúrias e lamentos, provocando o uivar dos cães, como testemunhando a desventura dos seus espectros ocupantes. A trezentos passos da villa fantasma situava-se o aldeamento dos escravos e foi lá que Ulf, com a sua prole de Marsignos mais seus sete filhos e duas mulheres, se estabeleceu. Reergueu as casas de granito, entelhando-as; pôs tábuas nas portas; recebeu os escravos de braços abertos, tornando-os homens livres; criou gado, cultivou, enviou os filhos para a guerra e foi prosperando sob os auspícios do martelo de Donnar, creio que no yule[2] ainda consegue comprar um prisioneiro de guerra para ser sacrificado. Velho pagão!

A canalha anda à nossa volta atirando-nos pétalas de rosas e coroando-nos com louros, as mulheres, vestindo amplos vestidos de fazenda listrada cingidos na cintura, recebem-nos com vinho, um hábito novo que suplanta a oferta de cerveja e hidromel ao viajante que chega. Existe um pelourinho no centro onde encostamos o pesado javali. Um homem de avental chamado Badomil, com um facalhão de talhante, pergunta:

- É para nós?

Meu séquito mira-me à espera de uma resposta.

- Sim, é! Tentarei trocá-lo por galinhas que dêem bons ovos e por queijo. – respondo, limpando o suor do rosto e olho as peles de arminhos e as enguias e trutas que ainda mexiam na cesta

- Por queijo não, eles têm leitãozinhos, é melhor um casal de leitãozinhos. – o indolente Frumário vê mais longe do que eu.

- Vosso chefe onde está?

- Uma das mulheres de Ulfe, de nome Veremunda, de face vermelha, rechonchuda e ancas de barril, aponta os distantes soutos:

- Supervisionando os porcos, com seus filhos.

- O tanque na villa tem água?

- Tem água e tem peixes a que damos pão, não vos importais de nadar com os peixes? – pergunta Vermunda arranjando-me um barrote de sabão para a mão.

- A água está quentinha, não é a água gelada do Cuda. –diz-me provocadora Veremunda. Mirei meus homens que se entretinham a pôr a conversa em dia com as mulheres, bebicando vinho tinto.

Torno a enveredar pelo caminho largo que conduz à villa, entro no jardim, onde as ainda viçosas macieiras rodeadas por sebes que outrora eram rigídamente cortadas por mãos hábeis, agora crescem selvaticamente sem amparo. A estátua de Diana, a caçadora estava incólume a olhar para leste, para um distante coelho, no meio do átrio. Contorno o antigo e decrépito chafariz e entro pelo peristilo na antiga domus, onde as velhas colunas de granito ainda se mantinham de pé… segurando o quê? Um telhado com as vigas desfalcadas de telhas, onde as rolas ainda pernoitam. Evito calcar a merda deixada pelos animais que deambulam, procurando refúgio. Passo pelo scriptorium onde os móveis, onde os pergaminhos enrolados encaixavam, já há muito foram pasto para chamas. Os romanos escreviam tudo, creio que o nosso rei, rodeado do Clero que o circunda como cães também está a apanhar esse hábito.

[1] serra de nome xalma, existente em Castela onde nasce o rio coa

[2] festival germânico-pagão que se realiza de nove em nove anos

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