Eu fico eternamente a olhar a fogueira, e, em meu sono de vigília, imagens díspares aparecem-me e desaparecem-me. Os lobos, a cauda de Odoacro o eleito, Quinto Célio empalado nas lanças juntamente com a minha noiva… Odoacro mexe-me com a lança. O dia vai clareando, Frumário mija ao longe e o vento leva a sua urina por caminhos tortuosos. Um vento frio fustiga-me os ossos. Enlaço-me na capa, aconchegando minha cabeça e pescoço. Pegamos no javali, dependurado com as quatros patas num escarnado tronco de jovem pinheiro, a descida para o lugar de Ulfe ainda é trabalhosa e maçadora. Fomos vagarosamente seguindo pelos inclinados trilhos de cabras da serra sagma[1], onde ao fundo um ribeiro sinuoso entre o penedio se transformará num rio formoso onde me baptizaram. Ao final da manhã chegávamos às margens onde verificámos as armadilhas em forma de rede para as trutas. Enchemos meia cesta de trutas e lampreias, onde esperaríamos trocar por carne no lugar de Ulf.
Merendamos pão duro, cerveja amarga que sobrou do festejo e Frumário descarnou um peixe esquisito mas gordo e assou-o na grelha com coentros. Odoacro ralhou a Quinto por beber a água do Cuda que causa melancolia e dor de cabeça, creio que o poço de água de Saturnring vem de um braço subterraneo do rio, mum!!!
Embrenhamos pela ponte baixa dos três arcos, decerto um trabalho romano, e seguimos por um desfiladeiro negro que ia novamente subindo até às alturas de Sagma. Finalmente, a meio da tarde, chegamos aos sopés. Estou a ficar chagado nos ombros com o peso do javali no tronco.
Os pastores transcudanos de Ulf saúdam-nos e tomam o meu lugar e o de Odoacro no transporte do pesado animal. Estavam ávidos de notícias do exterior, mas que noticias do exterior? Não se passa nada em Saturnring e depois de Saturning não sabemos o que corre.
- Claro que há novidades! – diz Odoacro contrariando-me:
- Sim, o mestre foi baptizado e sua noiva já chegou, que por sinal é pagã. – os pastores piolhosos, com guedelhas desgrenhadas ao vento e mantos felpudos ficaram confusos e pararam o andamento. Eu viro-me ríspidos para eles:
- Logo teremos tempo para vos contar tudo, agora toca a andar cambada de preguiçosos!
O lugar de ulfe era uma antiga villa romana que produzia bom vinho e azeite.
A estrada empredrada que levava ao centro da propriedade ainda estava ladeada de videiras selvagens e as estacas por onde sobem as videiras ainda se mantinham de pé, enegrecidas pelos anos. Não seguiríamos para a velha villa romana cujas fachadas se erguiam em ruínas. Os suevos têm medo dos velhos fantasmas que por lá andam. Em noites silenciosas ouvem-se lamúrias e lamentos, provocando o uivar dos cães, como testemunhando a desventura dos seus espectros ocupantes. A trezentos passos da villa fantasma situava-se o aldeamento dos escravos e foi lá que Ulf, com a sua prole de Marsignos mais seus sete filhos e duas mulheres, se estabeleceu. Reergueu as casas de granito, entelhando-as; pôs tábuas nas portas; recebeu os escravos de braços abertos, tornando-os homens livres; criou gado, cultivou, enviou os filhos para a guerra e foi prosperando sob os auspícios do martelo de Donnar, creio que no yule[2] ainda consegue comprar um prisioneiro de guerra para ser sacrificado. Velho pagão!
A canalha anda à nossa volta atirando-nos pétalas de rosas e coroando-nos com louros, as mulheres, vestindo amplos vestidos de fazenda listrada cingidos na cintura, recebem-nos com vinho, um hábito novo que suplanta a oferta de cerveja e hidromel ao viajante que chega. Existe um pelourinho no centro onde encostamos o pesado javali. Um homem de avental chamado Badomil, com um facalhão de talhante, pergunta:
- É para nós?
Meu séquito mira-me à espera de uma resposta.
- Sim, é! Tentarei trocá-lo por galinhas que dêem bons ovos e por queijo. – respondo, limpando o suor do rosto e olho as peles de arminhos e as enguias e trutas que ainda mexiam na cesta
- Por queijo não, eles têm leitãozinhos, é melhor um casal de leitãozinhos. – o indolente Frumário vê mais longe do que eu.
- Vosso chefe onde está?
- Uma das mulheres de Ulfe, de nome Veremunda, de face vermelha, rechonchuda e ancas de barril, aponta os distantes soutos:
- Supervisionando os porcos, com seus filhos.
- O tanque na villa tem água?
- Tem água e tem peixes a que damos pão, não vos importais de nadar com os peixes? – pergunta Vermunda arranjando-me um barrote de sabão para a mão.
- A água está quentinha, não é a água gelada do Cuda. –diz-me provocadora Veremunda. Mirei meus homens que se entretinham a pôr a conversa em dia com as mulheres, bebicando vinho tinto.
Torno a enveredar pelo caminho largo que conduz à villa, entro no jardim, onde as ainda viçosas macieiras rodeadas por sebes que outrora eram rigídamente cortadas por mãos hábeis, agora crescem selvaticamente sem amparo. A estátua de Diana, a caçadora estava incólume a olhar para leste, para um distante coelho, no meio do átrio. Contorno o antigo e decrépito chafariz e entro pelo peristilo na antiga domus, onde as velhas colunas de granito ainda se mantinham de pé… segurando o quê? Um telhado com as vigas desfalcadas de telhas, onde as rolas ainda pernoitam. Evito calcar a merda deixada pelos animais que deambulam, procurando refúgio. Passo pelo scriptorium onde os móveis, onde os pergaminhos enrolados encaixavam, já há muito foram pasto para chamas. Os romanos escreviam tudo, creio que o nosso rei, rodeado do Clero que o circunda como cães também está a apanhar esse hábito.
[1] serra de nome xalma, existente em Castela onde nasce o rio coa
[2] festival germânico-pagão que se realiza de nove em nove anos
Ouço alguém e rio-me, “Fantasma! Fantasminha”, dirijo-me ao horto, saindo da casa do senhor, ena! As couves estão altíssimas! É uma pena que ninguém as venha colher com medo dos peidos dos espectros.Entro num edifício já mais fechado e fresco, com um tanque rodeado por uma faixa de ladrilhos, pouso a pesada lança, descalço as botas de camurça, desapertando os incomodativos atilhos de couro, deixo cair o pesado manto castanho de meu corpo, abrindo o alfinete do broche circular bretão, uma das poucas heranças de meus pais que escaparam às garras dos meu tios que me querem ver morto. “Boríngio! Boríngio! Não te deixes levar pela tua paranóia…” Retiro o colete de peles e a túnica suada preta, descalço as bragas quadriculadas e meto-me como vim ao mundo na água tépida, esfregando-me com o barrote.
Está gelo aqui. Sento-me num banquinho e tiro meia moeda de prata da minha bolsinha anexa ao cinto. Tudo no mundo da magia faz-se por trocas . O rapaz, o sétimo filho do sétimo filho, acorda com a moeda a aterrar no seu peito. Está branco e tísico e parece que vai morrer, mas Inverno apôs Inverno mantém-se firme na cama, só se levantando na Primavera e no Verão e tornando a adoecer no Outono. Se não fosse um sétimo filho do sétimo filho há muito que Ulf o teria afogado no Cuda, mas um sétimo sabe coisas, e é uma espécie de talismã, e a vida de Ulf tem corrido bem nestas serranias. - Minorca. - Não o chameis assim. - Minorca, brinquei contigo o Verão passado, fomos pescar e subir às árvores, lembras-te? – pergunto ao puto. Ele abre seus bogalhudos olhos, limpa-os e perscruta-me dizendo: - Boríngio. - Aldo. - Fizeste-me uma espada de madeira - ..E um arco. - E um arco. – o mancebo remata e tosse convulsivamente. Cib
Retiro, dum armário enfaixado na parede acima da cama, uma túnica, envergo-a e acerco-me do fogo, está um gato pachorrento num dos cantos vigiando as frechas dos ratos.- Como se chama o gato?- Sexta-feira.- Sexta-feira? – pergunto surpreendido por ela ter falado.Sexta? Dia de frig? observo o gato preto com seus olhos azuis demónio-saltitantes. É sempre bom ter um gato, para fazer trabalhos contra os génios maus que se alojam nos cantos da casa. Toco no martelo lembrando-me de runas fortes. Desembainho a espada, apontando-a à noiva.- Como vos chamais?- Sardenna.- Que raio de nome é esse? Sarmata? Dacio? Cita? - Embainho a espada, pescando-lhe o olho. Seus olhos rasgados continuavam sem alguma emoção, senta-se no chão e recua num doloroso passado:- Minha origem é gépida. Vivíamos em grandes tendas redondas nas margens d
Odoacro aponta a mesma, lentamente a pesado portal ficou escancarado e da escuridão saiu o nosso pesadelo, cavaleiros irrompiam do caos com longas crinas nos capecetes, ondulando ao vento e retesando os arcos.- Mexam-se! Dispersem! - grito enquanto vejo um cavaleiro de mitra na cabeça atirando sobre as indefesas gentes das muralhas. Hermelinda recebeu a frechada na barriga e caiu redonda no empedrado. Corro levando Sardenna, mas alguém em fuga vem contra mim e caímos os dois, a mão de Sardenna vai-se, levanto-me em pânico, procurando a minha noiva, corria algures no meio da multidão que descia das muralhas e se embrenhava pelas ruelas estreitas do horror. Olho para trás e evito um cimitarra que falha a minha cabeça por milímetros. Amarro-me ao rabo de cavalo, puxo-o, impulsiono o meu corpo para a frente apoio o braço na perna do filho da espete, ele dá-me com o punho da cimitarra na cabe
Por fim, tudo pára e tento situar-me. Estou numa espécie de nicho, ouço ao longe ecos da conversa entre a avô e Anwari e grito de pânico ao ver um enorme homem de dois metros, gordo e agachado a contemplar-me. Estava totalmente nu e tinha a cabeça rapada. - Tu és um gigante? - Ná! sou um descendente dos gigantes, sou um dos últimos descendentes dos gigantes, e sou hábil a coser. – apresenta-me uma agulha sem pico e um fio finíssimo feito dos tendões dos gamos, minha cabeça lateja e o sangue caindo-me das espessas sobrancelhas toldava-me a visão. - E agora adormece! – a agulha sem pico aproxima-se da minha cabeça. Estava anestesiado enquanto o gigante me cose, esgravatava um chão de palha, e ouvia Anwari a dizer a avó: - Vocês entraram na gruta, é aqui que trabalhamos o ferro, vocês são humanos, só poderão sair na Primavera. O melhor é adormecerem até lá. - Olho a cara diligente do gigante, sua cabeça andava à roda. Quero vomitar, em agonia digo adeus
À minha volta é só gritos e sangue, as gens das muralhas são alvejadas com flechas, miro o poço começo a correr e escondo-me dentro dele, sofro uma abrupta queda mas miraculosamente não bato nas rochas irregulares que saiam da circular parede, mergulho na água escura e fria e escondo-me no túnel que serve de ligação ao rio, ali enregelado esperei, até que eles começam a atirar os corpos cá para baixo. Camalo, Frumário sem pernas, um dos filhos de Ulf, gente e mais gente, quase a encher até cá cima, era um fedor insuportável, minha amputação não parava de sangrar, creio que desmaiei, talvez me lamuriasse enquanto as Valquírias não me levavam, talvez isso tivesse chamado a atenção de alguém de cima,…- torna a tossir…. Senti-me içado, e o resto já sabes, Ulf me salvou. - Ulf, os dois filhos dele morreram? - Sim. - Pobre Ulf. - Pobre porquê? viu-se livre de dois filhos que o contestavam. Porque raios achais que ele se retirou da cerimónia? – fiquei pensat
Odoacro e Falbilda renascida retornam ao carvalho com um odre de água. Eu estou agastado, estirado e cheio de terra peganhenta. Enervado, ralho ao duo:- Demoraram muito tempo para ir buscar água. - Os dois estavam ofegantes e ruborizados. A bela loira avó não responde e põe-se a tratar do nosso almoço. Odoacro lança-me um olhar cúmplice e guloso, eu censuro-o com a cabeça, segregando-lhe ao ouvido, “ não sei como te podes aproveitar de uma senhora idosa”. Ele muda de assunto com uma cara satisfeita, olhando para o baú poeirento que eu tinha aberto com um pé-de-cabra.- Já não me lembro onde deixei ficar a chave. De qualquer maneira não é grande coisa:Dois torques de prata, três braceletes de latão, valem pouco, trinta moedas de bronze com a efígie do nosso rei Hermerico..- Ele mandou cunhar moeda, o filho da pu
- Eu não concordo com o meu pai. Ele, dez milhas mais à frente, vai-vos fazer uma emboscada com dez homens. Não devereis seguir por aí, ide pelo norte. – dito isto volteia o cavalo e esporeia, subindo a colina barrenta e acenando-nos.- Espera! Precisamos de saber mais coisas. – vejo-o, desperançado, desaparecendo por entre os arbustos altaneiros. - E agora? - pergunto ao meu estranho duo.- Seguimos para Viseum. – diz-me Odoacro limpando o suor da testa. Seguimos então para as alturas de Viseum. Atravessamos duas pontes de arcos de pedra sobre o rio Monda e foi nas margens desse rio que pernoitamos. Acercamo-nos de umas lavadeiras que nos miram desconfiadas. Fabilda procurou obter informações sobre Viseum, as lavadeiras dizem-nos que não há gente sueva lá e quem manda na cidade e nos arrebaldes é um bispo de nome Remisol.- Que raio de nome, será luso-ro