- Quando acordei, ela estava a andar nas traves com as pombas. - Bloqueio a mente e o problema, pensando noutro assunto:
- Existem casebres vagos intra-muros?
Hermelinda deixa de olhar a avô malabarista e responde-me:
- Eu arranjo-lhe casa, mas não espere grande coisa, mas pelo menos um braseiro e uma rede onde não entra chuva arranja-se, há gente que deixou as casas e nunca mais voltaram, procuraram o mar para se assentar com as invasões.
- Sim eu sei. - dirijo-me à parede onde dependuradas estão longas lanças de caçar javalis e matar homens. A pele da avô de Hermelinda está esticadinha e mesmo sua voz está mais límpida, bloqueio o assunto perante Hermelinda que me perguntava com o seu olhar inquisidor: que raios fizeste com a minha avó?
Envergamos coletes de lobo e ovelha e empunhamos longas lanças, Camalo fica de guarda nas ameias, penso no absurdo de ter só um homem nas ameias, mas pelo menos consegue fechar a porta caso alguém tente entrar? Alguém? Os visigodos além Pirinéus? Os bagaudas vasconnes? Ou os resquícios dos alanos e vândalos que se tornaram salteadores de estrada nas amplas pradarias hispânicas? Porque é que o rei não nos dá mais homens? Querem é que sejamos mortos e esquecidos aqui; O bastarzinho e o incomodativo sobrinho. É isso que querem? Pegunto a um puto que por lá pairava:
- Queres ir numa caçada?
Estirado estou no solo de Inverno, respirando a terra. Minhas mãos, como garras, esgaravatavam-na quente, a Deusa-mãe Freya está quente. Pequenas valquírias de pólen esvoaçam no ar, louvando a Deusa dos bosques. Procuro o martelo de prata dependurada no meu peito por um fio de robusto couro, sentindo as estrias trabalhadas por um artesão bretão que me fizera em Britonnia[1]. Quando o toco tento achar uma sintonia com o céu azul que me encima. Quando a acho, fruo o momento uno com o céu, devotando-me ao velho pai Woden que expulsou os gigantes chegado do Leste. Os gritos dos homens despertam-me da minha letargia.
- Boríngio, Boríngio, que raios fazeis aí deitado?
Ergo o tronco, procurando o puto acima do feno, ele detém-se, surpreendido, a olhar o meu cabelo cheio de folhas e mato avisando-me com o dardo:
- Tás maluco, queres que os outros te vejam assim, sabes qual é o castigo por te baldares numa caçada? – pergunta aflito o miúdo Quinto Célio, olhando para todos os lados da imersa mata, eu, calmamente, ponho-me de pé, fazendo-lhe uma careta. Ele queria sorrir, mas, como me tinha ralhado, conteve o riso, acena-me então com o dardo dizendo-me “anda daí!”, embrenhando-se como um lince arvoredo adentro. Sacudo as folhagens, torno a atar as botas de camurça, envolvendo as pernas com os atilhos até às virilhas. Ajeito a túnica preta de linho por baixo do felpudo colete, puxando-a, por debaixo do cinto para a endireitar. Tomo a longa lança do chão e recoloco o atilho na testa. Embrenho-me com passo furtivo no encalço do puto, evitando picos e silvas. A gritaria começava a aumentar à medida que eu corria para o desconhecido, gritando por Quinto. Até que vejo surgir por entre os arbustos um focinho de javali com as suas presas afiadas. O bicharoco investe contra mim e eu não tive tempo de parar e enristar a lança. Preparei-me para o embate dele contra as minhas pernas, mas o bicharoco, com uma agilidade notável, guina para a minha esquerda. Vejo as suas crias com riscas amareladas no lombo dirigindo-se apavoradas a mim e preparo a lança mirando a umas delas. De repente, recebo uma chifrada da minha esquerda desprotegida que me fez rodar e cambalear pró chão. O raio do javali fez meia volta atrás e investiu contra mim para proteger as suas crias. A gritar no chão, permaneço agachado levando chifradas nos rins, até que os homens cercam o animal e tentam espetar-lhe lanças no lombo, Odoacro atira-se ao pescoço da besta cutilando o crânio, a lança de Frumário perfura-lhe as costelas e quase me vaza. Por fim, Odoacro, com a cara manchada de sangue, ergue o seu cutelo em sinal de vitória. A caçada tombou e todos gritamos uivos de contentamento. Ajudam-me a levantar agarrado aos meus rins. Quinto não consegue disfarçar um riso irónico, sinal de que apanhei com o javali em cima por descurar a caçada. Eu dava graças aos deuses por estar vivo, um primo meu morreu duma investida de um javali há três anos. Atamos as patas do javali a um tronco jovem de pinheiro, era o primeiro animal que caçávamos, ainda nos faltava mais um do mesmo porte, tínhamos bocas para alimentar em Saturnring e o Inverno e a bolsa do distante rei em Mérida não nos mostravam sinais de abundância tal como o Atrace deduziu das entranhas dos animais.
Deixamos a floresta cerrada dos seixos e faias e subimos para um deserto monte queimado onde pernoitaríamos antes de descer para o vale de Ulf. Lá, entre fragas de cabeças de gigante das outras eras, acampamos, vendo o sol descer para os lados do mar externo. Bebemos o sangue dos javalis, comemos bolota esmigalhada, damos graças aos deuses cantando.
Vou untando as feridas, nas minhas pernas, com uma gema de ovo para cicatrizarem mais depressa. Odoacro ainda não limpara da sua cara e cabelo o sangue do animal, assim sendo a sua densa barba loira estava agora avermelhada como Donnar, o nosso deus popular. Deita um olhar desinteressado à minha perna arranhada e depois olha a fogueira bebendo vinho tinto por um odre de ovelha.
- Estamos fodidos Boríngio.
- Ah, e porquê?
- Quanto tempo julgas mais que eu e tu sobreviveremos, estou à espera do dia em que assassinos contratados pelos teus tios ou por quem se quer ver livre de mim…
- Hermerico? – interrompe-o.
- …Hermerico ou alguém próximo, porque julgas que nos enviaram a Saturning com tão poucos homens para defendê-la, querem-nos é ver mortos Boríngio. Não tarda teus tios e o rei enviam-nos uns párias para nos degolar, podes ter a certeza. – Frumário e o puto Quinto Célio miram-nos com ar de assustados. Eles fazem parte de Saturnring e não deve ser agradável viver com alguém com a cabeça a prémio. Será que meus tios querem-me ver morto? Recordava o longínquo passado, vi mães a comerem os próprios filhos que geraram cozendo-os, meu pai obrigava-me a manter os olhos abertos perante tais monstruosidades como maneira de me endurecer, vi feras a comerem homens fortes, enquanto nós estávamos bem protegidos pelos carros dos bois em círculos na espartana invernia.Recordo-me da Grande Reunião em que tirámos as sortes das províncias hispânicas com os filhos de leste, a nós coube-nos a parte mais ocidental da Galécia. Eu já começava a ser um robusto jovem endurecido pela vida, via Odoacro algures, também jovem, perdido entre as muitas famílias de Arivões, Varinos, Eudosos, Suardões, Nuitões, Marsignos e Burios, relembro buria, uma terra fértil ao longo da Gar[2]. Os galaicos deram-nos luta, combatemos bem até se consertar a paz e ficamos no nosso cantinho, enquanto que Valia despedaçava os alanos e vandalos na Lusitânia e Bética, os vândalos na Bética acabaram, e Adace rei dos alanos pereceu sob o machado gótico. Até que Gunderico rei dos vandalos da Galécia decide atirar-nos borda fora e nos cerca nos montes Narbassos, foi o meu primeiro combate e Odoacro estava lá. Formámos um escudo defensivo em cima dos carros de bois e aguentámos pedraça, granizo, chuva, calor, frio, imóveis como uma estátua, estancando a onda vândala, que acabou por se retirar. Erguemo-nos dos escombros e meu pai continua a consolidar o poderio suévico até que perece. Ao rei vândalo Guderico sucede Genserico e os vândalos partem para África. Estamos sós, minha mãe não quer saber da terra búria, meus tios mandam-me servir o rei Hermerico que quer conquistar a Lusitânia e sua capital Mérida sem alanos e vândalos por perto. É tempo de agir! mandam-me para a guerra, Odoacro foi comigo, também não muito feliz.
A fogueira crepitava, Frumário bebe pelo odre de ovelha, os lobos uivam e eu toco do meu martelo de Donnar, o puto Quinto Célio está inquieto.
- Não te apoquentes rapaz, o fogo protege-nos.
- E a nós Odoacro, quem nos protege, a tua cauda?
- Que cauda? – pergunta curioso o puto.
- Não me digas que não sabes que ele tem uma cauda, só os filhos de rei é que tem uma cauda. – informa Frumário muito sério. O puto risse desalmadamente, torna a ouvir os lobos e fica calado, “cauda, cauda têm os que uivam à nossa volta”, envolve-se no manto e tenta recostar a sua cabeça num penedio.
- Durmam, eu não deixo que os assassinos nos matem. –
- Mostra-lhes a tua cauda que eles assustam-se. He! He! – ironiza Frumário. Odoacro põe-se de pé apoiando-se na lança para evitar dormir.
[1] Mondonedo, norte da Galiza.
[2] Geira, estrada romana que atravessava o geres
Eu fico eternamente a olhar a fogueira, e, em meu sono de vigília, imagens díspares aparecem-me e desaparecem-me. Os lobos, a cauda de Odoacro o eleito, Quinto Célio empalado nas lanças juntamente com a minha noiva… Odoacro mexe-me com a lança. O dia vai clareando, Frumário mija ao longe e o vento leva a sua urina por caminhos tortuosos. Um vento frio fustiga-me os ossos. Enlaço-me na capa, aconchegando minha cabeça e pescoço. Pegamos no javali, dependurado com as quatros patas num escarnado tronco de jovem pinheiro, a descida para o lugar de Ulfe ainda é trabalhosa e maçadora. Fomos vagarosamente seguindo pelos inclinados trilhos de cabras da serra sagma[1], onde ao fundo um ribeiro sinuoso entre o penedio se transformará num rio formoso onde me baptizaram. Ao final da manhã chegávamos às margens onde verificámos as armadilhas em forma de rede para as trutas. Enchemos meia cesta de trutas e lampreias, onde esperaríamos trocar por carne no lugar de Ulf. Merendamos pão duro,
Ouço alguém e rio-me, “Fantasma! Fantasminha”, dirijo-me ao horto, saindo da casa do senhor, ena! As couves estão altíssimas! É uma pena que ninguém as venha colher com medo dos peidos dos espectros.Entro num edifício já mais fechado e fresco, com um tanque rodeado por uma faixa de ladrilhos, pouso a pesada lança, descalço as botas de camurça, desapertando os incomodativos atilhos de couro, deixo cair o pesado manto castanho de meu corpo, abrindo o alfinete do broche circular bretão, uma das poucas heranças de meus pais que escaparam às garras dos meu tios que me querem ver morto. “Boríngio! Boríngio! Não te deixes levar pela tua paranóia…” Retiro o colete de peles e a túnica suada preta, descalço as bragas quadriculadas e meto-me como vim ao mundo na água tépida, esfregando-me com o barrote.
Está gelo aqui. Sento-me num banquinho e tiro meia moeda de prata da minha bolsinha anexa ao cinto. Tudo no mundo da magia faz-se por trocas . O rapaz, o sétimo filho do sétimo filho, acorda com a moeda a aterrar no seu peito. Está branco e tísico e parece que vai morrer, mas Inverno apôs Inverno mantém-se firme na cama, só se levantando na Primavera e no Verão e tornando a adoecer no Outono. Se não fosse um sétimo filho do sétimo filho há muito que Ulf o teria afogado no Cuda, mas um sétimo sabe coisas, e é uma espécie de talismã, e a vida de Ulf tem corrido bem nestas serranias. - Minorca. - Não o chameis assim. - Minorca, brinquei contigo o Verão passado, fomos pescar e subir às árvores, lembras-te? – pergunto ao puto. Ele abre seus bogalhudos olhos, limpa-os e perscruta-me dizendo: - Boríngio. - Aldo. - Fizeste-me uma espada de madeira - ..E um arco. - E um arco. – o mancebo remata e tosse convulsivamente. Cib
Retiro, dum armário enfaixado na parede acima da cama, uma túnica, envergo-a e acerco-me do fogo, está um gato pachorrento num dos cantos vigiando as frechas dos ratos.- Como se chama o gato?- Sexta-feira.- Sexta-feira? – pergunto surpreendido por ela ter falado.Sexta? Dia de frig? observo o gato preto com seus olhos azuis demónio-saltitantes. É sempre bom ter um gato, para fazer trabalhos contra os génios maus que se alojam nos cantos da casa. Toco no martelo lembrando-me de runas fortes. Desembainho a espada, apontando-a à noiva.- Como vos chamais?- Sardenna.- Que raio de nome é esse? Sarmata? Dacio? Cita? - Embainho a espada, pescando-lhe o olho. Seus olhos rasgados continuavam sem alguma emoção, senta-se no chão e recua num doloroso passado:- Minha origem é gépida. Vivíamos em grandes tendas redondas nas margens d
Odoacro aponta a mesma, lentamente a pesado portal ficou escancarado e da escuridão saiu o nosso pesadelo, cavaleiros irrompiam do caos com longas crinas nos capecetes, ondulando ao vento e retesando os arcos.- Mexam-se! Dispersem! - grito enquanto vejo um cavaleiro de mitra na cabeça atirando sobre as indefesas gentes das muralhas. Hermelinda recebeu a frechada na barriga e caiu redonda no empedrado. Corro levando Sardenna, mas alguém em fuga vem contra mim e caímos os dois, a mão de Sardenna vai-se, levanto-me em pânico, procurando a minha noiva, corria algures no meio da multidão que descia das muralhas e se embrenhava pelas ruelas estreitas do horror. Olho para trás e evito um cimitarra que falha a minha cabeça por milímetros. Amarro-me ao rabo de cavalo, puxo-o, impulsiono o meu corpo para a frente apoio o braço na perna do filho da espete, ele dá-me com o punho da cimitarra na cabe
Por fim, tudo pára e tento situar-me. Estou numa espécie de nicho, ouço ao longe ecos da conversa entre a avô e Anwari e grito de pânico ao ver um enorme homem de dois metros, gordo e agachado a contemplar-me. Estava totalmente nu e tinha a cabeça rapada. - Tu és um gigante? - Ná! sou um descendente dos gigantes, sou um dos últimos descendentes dos gigantes, e sou hábil a coser. – apresenta-me uma agulha sem pico e um fio finíssimo feito dos tendões dos gamos, minha cabeça lateja e o sangue caindo-me das espessas sobrancelhas toldava-me a visão. - E agora adormece! – a agulha sem pico aproxima-se da minha cabeça. Estava anestesiado enquanto o gigante me cose, esgravatava um chão de palha, e ouvia Anwari a dizer a avó: - Vocês entraram na gruta, é aqui que trabalhamos o ferro, vocês são humanos, só poderão sair na Primavera. O melhor é adormecerem até lá. - Olho a cara diligente do gigante, sua cabeça andava à roda. Quero vomitar, em agonia digo adeus
À minha volta é só gritos e sangue, as gens das muralhas são alvejadas com flechas, miro o poço começo a correr e escondo-me dentro dele, sofro uma abrupta queda mas miraculosamente não bato nas rochas irregulares que saiam da circular parede, mergulho na água escura e fria e escondo-me no túnel que serve de ligação ao rio, ali enregelado esperei, até que eles começam a atirar os corpos cá para baixo. Camalo, Frumário sem pernas, um dos filhos de Ulf, gente e mais gente, quase a encher até cá cima, era um fedor insuportável, minha amputação não parava de sangrar, creio que desmaiei, talvez me lamuriasse enquanto as Valquírias não me levavam, talvez isso tivesse chamado a atenção de alguém de cima,…- torna a tossir…. Senti-me içado, e o resto já sabes, Ulf me salvou. - Ulf, os dois filhos dele morreram? - Sim. - Pobre Ulf. - Pobre porquê? viu-se livre de dois filhos que o contestavam. Porque raios achais que ele se retirou da cerimónia? – fiquei pensat
Odoacro e Falbilda renascida retornam ao carvalho com um odre de água. Eu estou agastado, estirado e cheio de terra peganhenta. Enervado, ralho ao duo:- Demoraram muito tempo para ir buscar água. - Os dois estavam ofegantes e ruborizados. A bela loira avó não responde e põe-se a tratar do nosso almoço. Odoacro lança-me um olhar cúmplice e guloso, eu censuro-o com a cabeça, segregando-lhe ao ouvido, “ não sei como te podes aproveitar de uma senhora idosa”. Ele muda de assunto com uma cara satisfeita, olhando para o baú poeirento que eu tinha aberto com um pé-de-cabra.- Já não me lembro onde deixei ficar a chave. De qualquer maneira não é grande coisa:Dois torques de prata, três braceletes de latão, valem pouco, trinta moedas de bronze com a efígie do nosso rei Hermerico..- Ele mandou cunhar moeda, o filho da pu