Tropeço num prato de barro cheio de ossos de borrego e estatelo-me no chão batido de terra, a dor no nariz é atroz e levo os dedos à cana a ver se a tinha partido, estou tonto, ajudam-me a levantar:
- Deixem passar, lá para fora, lá para fora a respirar ar puro. - Odoacro e Brigo encostam-me num acento de granito que saia da base da torre. Lá, deixam-me sozinho a recozer as minhas dores, de tronco nu e recebendo a geada no lombo, “filhos da p**a esqueceram-se de mim»! A lua está pálida e encolhida sobre si mesma como que hibernando na letargia da Estação da neve. – Ó da torre! Ó da torre! – o vento frio fustiga-me os ossos afectando-me os pulmões. – Ó da torre! Ó da torre! – nu, no mais desolado cenário montanhês. – Ó da torre! Ó da torre! – creio que chamam, mas será o hidromel a circular no sangue e a pregar partidas ao ouvido? A custo levanto-me dorido e atontado dirigindo-me com cuidado à amurada, enquanto dentro da torre a festa com a gaita-de-foles continuava. Acerco-me espreitando para de lá das ameias. Em baixo, um grupo de trinta cavaleiros olhava cá para cima, com elmos de crina e os raios de lua reflectidos em suas armaduras de escamas prateadas. Permaneciam silenciosos, mirando-me. Arranjo forças para perguntar?
- QUEM SOIS?
- Avaz, líder do esquadrão alano ao serviço de Réquila, filho do nosso Rex Hermerich. a mando do chefe da guarnição de Olissipo, tenho que entregar alguém ao chefe de Saturnring.
«alguém?! A minha noiva é de Olissipo, a cidade das laranjas e das éguas fertilizadas pelo vento?
- Já lá vou! – grito, enquanto desço as tortuosas escadas e pego nos arreios do garanhão, açoitando ao mesmo tempo na garupa. O cavalo relincha estremunhado e puxa as cordas da pesada trave da porta abrindo-a. Os altivos trinta cavaleiros alanos vêem um bêbado a cambalear de tronco nu e perguntam-se:
- É este o chefe de Saturnring?
- Onde está a minha noiva? –inquiro, vomitando amarelo para os cascos do cavalo de Avaz, o mesmo trota para trás e o alano controla a montada, dizendo a seus pares que despejem um saco, o mesmo à atirado para o duro chão de pedras, o saco não era mais do que um emaranhado de cobertores de lã com alguém a mexer lá dentro, consigo discernir um tufo de cabelos ruivos.
- Ei, algo está mal! – digo, estranhado e limpando o vómito dos meus lábios com as costas da mão.
- Missão cumprida homens, boa sorte nobre suevo! – escocearam rapidamente os cavalos e alancaram daqui feitos loucos, fiquei só, com as portas abertas e um saco de pulgas debatendo-se. Dou três espirros e pego no tufo de cabelos, pondo um corpo a reclamar de pé e ponho-o em meus ombros, como se faz com as ovelhas. O corpo começa a amaldiçoar-me numa língua familiar, em cima dos meus ombros.
- Algo está mal.
Entro de rompante porta adentro, dando um valente pontapé na mesma. A música pára e todos ficam estáticos a olhar para mim, dirijo-me à mesa do banquete e, depositando lá o cobertor, peço a Odoacro que destape os mantos. Ele rapidamente desvelou uma hirta moçoila de cabelos vermelhos de fogo a amaldiçoar todos numa língua eslava. Uma cara de assombro assume-se em todos.
- Diacho se isto é uma luso-romana! – constata abismado Ulfe, um proprietário que tem um merdoso terreno nos arrebaldes de Saturnring, apartando as tranças para detrás das costas. A moçoila toma, de maneira ríspida, novamente o cobertor para tapar seus seios.
- Existe alguma confusão, esta moçoila é germana! – constata, abismado, Cassiano, pegando num tufo de cabelos vermelhos.
- Não me parece germana padre, tem a cara meia quadrada e olhos das estepes, de que tribo és moçoila? Vandala, Sarmata, Alana? – pergunta Odoacro, pegando com o polegar e o indicador no queixo da ruiva. – ela instintivamente morde-lhe os dedos. O suevo, desfere-lhe uma valente bofetada nas faces que lhe rompeu o lábio. A moçoila cai no chão amparada por Hermelinha que começa a gritar. Odoacro quer continuar a dar-lhe porrada, uma galinha, na confusão, esvoaça nas minhas trombas, atiro-me ás costas de Odoacro:
- Pára, bastarzinho! Luso-romana ou não é minha noiva! - Dependurado continuo nele puxando-lhe a trança, ele tenta desembainhar a adaga da sua bainha, mas Cassiano e Teófilo intervêm tentando apartar-nos. Frumário começa a bater-nos com uma moca na cabeça e atontados lá desisto do pescoço de Odoacro e o bastardo repõe a adaga na sua ilharga.
Procuro com a nuca a sangrar a minha noiva, está encolhida num canto mal alumiado com ar assustadiço a olhar para todos os lados. Pego num archote da parede aclarando-lhe a cara. Hermelinda sussurra-me ao ouvido:
- Leve-a para minha casa. – imediatamente, pego-a pelos cabelos e deposito-a como as ovelhas nas minhas costas, toda a gente começa a aplaudir-me dizendo:
- Leva-a para a cama!
- Dá-lhe uma por mim.
Rio-me e abrem-me a porta para o exterior. A noiva dá-me murros nas costas e eu aproveito para lhe apalpar o rabo saído dos cobertores, resvalo no húmido empedrado, e desta vez magoamo-nos bem. Ai a minha anca! sou ajudado pela noiva estranha. Embrenhamo-nos nas ruas estreitas com os cães a ladrar, com o caos a ladrar, rio-me com a associação de ideias, até que dou um valente pontapé nas tábuas velhas da casa baixa de Hermelinda, acendo uma lucerna e dirigi-mo ao quarto da avô. A noiva senta-me na cama resguardando-se nos cobertores. Eu dirijo-me à arca, retirando de lá uma broa de centeio meia dura, dou-lhe a comicar, e a noiva esfomeada quase que engole o pão. Procuro debaixo da cama de Hermelinda uma ânfora contendo um vinho amargo, bebemo-lo mudos à luz da lucerna.
- Quem sois? De onde viestes? – a ruiva oriental olha para mim e não me responde, sondo seus olhos cinzentos rasgados e suas sardas, apetecia-me acariciá-la. Mas contive-me, nem sequer ia forçá-la, apesar de me apetecer virá-la ao contrário e metê-lo bem fundo. Retiro duma tábua encaixada no xisto uma coberta de lã e cubro-nos, deito-me e obrigo-a a deitar-se comigo. Ficamos juntos, até que o sono a venceu e começa levemente a roncar. A bebedeira estava-me a passar e tento meditar no que acontecera. Tinham enviado a noiva errada decerto, saber o que se passara implicava enviar uma missiva a Olissipo e isso era impensável, se mandava Odoacro ele perder-se-ia nas putas e ainda acabava esfaqueado e afogado no Tagus, além de que se punha a dizer que ele é o filho de Hermerico e um dia é pretendente ao trono. Se mandasse Frumário não aguentaria a viagem e morreria de cansaço em Scalabis. Eu não posso sair daqui, se saísse a anarquia reinaria e o rei quer manter esta cidadela em pé custe o que custar, mesmo que tenha apenas um jovem, um preguiçoso e dois exilados e uma muralha de granito a cair de podre.
De manhã acordo gelado deixando a minha noiva estranha envolta em lã. Envergo um manto listrado sobre os costados e dirijo-me ao celeiro ao lado do forno comunitário. Lá uma menina tirava leite das tetas de uma vaca malhada chamada Brunilde, para um cântaro de latão. Afasto-a com ar de mau, abaixo-me, pego na teta da vaca e esguicho leite quente para minha goela, respingando meu queixo barbudo e provocando asco à menina sentada num banquinho baixo de madeira. Pisco-lhe o olho, levanto-me e dirijo-me ao forno comunitário onde Brigo, com uma pá retirava três boas de centeio. O rei Hermerico envia medidas de farinha por ano, logo temos todos acesso ao pão, o mesmo está quente e pela-me nas mãos quando pego nele, aguento a dor da pele a queimar quase me rompendo os ouvidos. Racho a broa ao meio, abro as mãos de Odoacro que estava nas ameias e coloco rapidamente meia broa, obrigando-o a fechar as mãos. O bastardo loiro olha para mim e começa a lamuriar-se com a dor e a chamar-me filho da grandessíssima, dou três passos para trás e Odoacro esquecendo a dor alerta-me:
- Tens que arranjar uma casa para a tua noiva. - Entro na torre:
- Ele tem razão, enganada ou não ela é tua noiva. Não podes ficar na torre meu senhor e amo. – diz irónico Frumário, rematando de seguida:
- Temos que ir caçar, hoje é terça, dia de Tir, é um dia propício para a caça, precisamos de carne.
- Onde está Hermelinda? Frumário acena com a cabeça para as redes. Hermelinda balançava nelas olhando para cima para as traves onde sua avô estava sentada. “como raios foi ela lá parar? Sozinha!” relembro o pano runico: Que a vida regresse ao corpo da avo de hermelinda.” Atrace disse-me que não deveria ter feito assim. A medo pergunto a Hermelinda, tocando-lhe ao de leve no ombros.
- Ela subiu sozinha para ali? – Hermelinda, assustada diz-me:
- Quando acordei, ela estava a andar nas traves com as pombas. - Bloqueio a mente e o problema, pensando noutro assunto: - Existem casebres vagos intra-muros? Hermelinda deixa de olhar a avô malabarista e responde-me: - Eu arranjo-lhe casa, mas não espere grande coisa, mas pelo menos um braseiro e uma rede onde não entra chuva arranja-se, há gente que deixou as casas e nunca mais voltaram, procuraram o mar para se assentar com as invasões. - Sim eu sei. - dirijo-me à parede onde dependuradas estão longas lanças de caçar javalis e matar homens. A pele da avô de Hermelinda está esticadinha e mesmo sua voz está mais límpida, bloqueio o assunto perante Hermelinda que me perguntava com o seu olhar inquisidor: que raios fizeste com a minha avó? Envergamos coletes de lobo e ovelha e empunhamos longas lanças, Camalo fica de guarda nas ameias, penso no absurdo de ter só um homem nas ameias, mas pelo menos consegue fechar a porta caso alguém tente entra
Eu fico eternamente a olhar a fogueira, e, em meu sono de vigília, imagens díspares aparecem-me e desaparecem-me. Os lobos, a cauda de Odoacro o eleito, Quinto Célio empalado nas lanças juntamente com a minha noiva… Odoacro mexe-me com a lança. O dia vai clareando, Frumário mija ao longe e o vento leva a sua urina por caminhos tortuosos. Um vento frio fustiga-me os ossos. Enlaço-me na capa, aconchegando minha cabeça e pescoço. Pegamos no javali, dependurado com as quatros patas num escarnado tronco de jovem pinheiro, a descida para o lugar de Ulfe ainda é trabalhosa e maçadora. Fomos vagarosamente seguindo pelos inclinados trilhos de cabras da serra sagma[1], onde ao fundo um ribeiro sinuoso entre o penedio se transformará num rio formoso onde me baptizaram. Ao final da manhã chegávamos às margens onde verificámos as armadilhas em forma de rede para as trutas. Enchemos meia cesta de trutas e lampreias, onde esperaríamos trocar por carne no lugar de Ulf. Merendamos pão duro,
Ouço alguém e rio-me, “Fantasma! Fantasminha”, dirijo-me ao horto, saindo da casa do senhor, ena! As couves estão altíssimas! É uma pena que ninguém as venha colher com medo dos peidos dos espectros.Entro num edifício já mais fechado e fresco, com um tanque rodeado por uma faixa de ladrilhos, pouso a pesada lança, descalço as botas de camurça, desapertando os incomodativos atilhos de couro, deixo cair o pesado manto castanho de meu corpo, abrindo o alfinete do broche circular bretão, uma das poucas heranças de meus pais que escaparam às garras dos meu tios que me querem ver morto. “Boríngio! Boríngio! Não te deixes levar pela tua paranóia…” Retiro o colete de peles e a túnica suada preta, descalço as bragas quadriculadas e meto-me como vim ao mundo na água tépida, esfregando-me com o barrote.
Está gelo aqui. Sento-me num banquinho e tiro meia moeda de prata da minha bolsinha anexa ao cinto. Tudo no mundo da magia faz-se por trocas . O rapaz, o sétimo filho do sétimo filho, acorda com a moeda a aterrar no seu peito. Está branco e tísico e parece que vai morrer, mas Inverno apôs Inverno mantém-se firme na cama, só se levantando na Primavera e no Verão e tornando a adoecer no Outono. Se não fosse um sétimo filho do sétimo filho há muito que Ulf o teria afogado no Cuda, mas um sétimo sabe coisas, e é uma espécie de talismã, e a vida de Ulf tem corrido bem nestas serranias. - Minorca. - Não o chameis assim. - Minorca, brinquei contigo o Verão passado, fomos pescar e subir às árvores, lembras-te? – pergunto ao puto. Ele abre seus bogalhudos olhos, limpa-os e perscruta-me dizendo: - Boríngio. - Aldo. - Fizeste-me uma espada de madeira - ..E um arco. - E um arco. – o mancebo remata e tosse convulsivamente. Cib
Retiro, dum armário enfaixado na parede acima da cama, uma túnica, envergo-a e acerco-me do fogo, está um gato pachorrento num dos cantos vigiando as frechas dos ratos.- Como se chama o gato?- Sexta-feira.- Sexta-feira? – pergunto surpreendido por ela ter falado.Sexta? Dia de frig? observo o gato preto com seus olhos azuis demónio-saltitantes. É sempre bom ter um gato, para fazer trabalhos contra os génios maus que se alojam nos cantos da casa. Toco no martelo lembrando-me de runas fortes. Desembainho a espada, apontando-a à noiva.- Como vos chamais?- Sardenna.- Que raio de nome é esse? Sarmata? Dacio? Cita? - Embainho a espada, pescando-lhe o olho. Seus olhos rasgados continuavam sem alguma emoção, senta-se no chão e recua num doloroso passado:- Minha origem é gépida. Vivíamos em grandes tendas redondas nas margens d
Odoacro aponta a mesma, lentamente a pesado portal ficou escancarado e da escuridão saiu o nosso pesadelo, cavaleiros irrompiam do caos com longas crinas nos capecetes, ondulando ao vento e retesando os arcos.- Mexam-se! Dispersem! - grito enquanto vejo um cavaleiro de mitra na cabeça atirando sobre as indefesas gentes das muralhas. Hermelinda recebeu a frechada na barriga e caiu redonda no empedrado. Corro levando Sardenna, mas alguém em fuga vem contra mim e caímos os dois, a mão de Sardenna vai-se, levanto-me em pânico, procurando a minha noiva, corria algures no meio da multidão que descia das muralhas e se embrenhava pelas ruelas estreitas do horror. Olho para trás e evito um cimitarra que falha a minha cabeça por milímetros. Amarro-me ao rabo de cavalo, puxo-o, impulsiono o meu corpo para a frente apoio o braço na perna do filho da espete, ele dá-me com o punho da cimitarra na cabe
Por fim, tudo pára e tento situar-me. Estou numa espécie de nicho, ouço ao longe ecos da conversa entre a avô e Anwari e grito de pânico ao ver um enorme homem de dois metros, gordo e agachado a contemplar-me. Estava totalmente nu e tinha a cabeça rapada. - Tu és um gigante? - Ná! sou um descendente dos gigantes, sou um dos últimos descendentes dos gigantes, e sou hábil a coser. – apresenta-me uma agulha sem pico e um fio finíssimo feito dos tendões dos gamos, minha cabeça lateja e o sangue caindo-me das espessas sobrancelhas toldava-me a visão. - E agora adormece! – a agulha sem pico aproxima-se da minha cabeça. Estava anestesiado enquanto o gigante me cose, esgravatava um chão de palha, e ouvia Anwari a dizer a avó: - Vocês entraram na gruta, é aqui que trabalhamos o ferro, vocês são humanos, só poderão sair na Primavera. O melhor é adormecerem até lá. - Olho a cara diligente do gigante, sua cabeça andava à roda. Quero vomitar, em agonia digo adeus
À minha volta é só gritos e sangue, as gens das muralhas são alvejadas com flechas, miro o poço começo a correr e escondo-me dentro dele, sofro uma abrupta queda mas miraculosamente não bato nas rochas irregulares que saiam da circular parede, mergulho na água escura e fria e escondo-me no túnel que serve de ligação ao rio, ali enregelado esperei, até que eles começam a atirar os corpos cá para baixo. Camalo, Frumário sem pernas, um dos filhos de Ulf, gente e mais gente, quase a encher até cá cima, era um fedor insuportável, minha amputação não parava de sangrar, creio que desmaiei, talvez me lamuriasse enquanto as Valquírias não me levavam, talvez isso tivesse chamado a atenção de alguém de cima,…- torna a tossir…. Senti-me içado, e o resto já sabes, Ulf me salvou. - Ulf, os dois filhos dele morreram? - Sim. - Pobre Ulf. - Pobre porquê? viu-se livre de dois filhos que o contestavam. Porque raios achais que ele se retirou da cerimónia? – fiquei pensat