Ouço alguém e rio-me, “Fantasma! Fantasminha”, dirijo-me ao horto, saindo da casa do senhor, ena! As couves estão altíssimas! É uma pena que ninguém as venha colher com medo dos peidos dos espectros.
Entro num edifício já mais fechado e fresco, com um tanque rodeado por uma faixa de ladrilhos, pouso a pesada lança, descalço as botas de camurça, desapertando os incomodativos atilhos de couro, deixo cair o pesado manto castanho de meu corpo, abrindo o alfinete do broche circular bretão, uma das poucas heranças de meus pais que escaparam às garras dos meu tios que me querem ver morto. “Boríngio! Boríngio! Não te deixes levar pela tua paranóia…” Retiro o colete de peles e a túnica suada preta, descalço as bragas quadriculadas e meto-me como vim ao mundo na água tépida, esfregando-me com o barrote. Os ex-escravos da quinta dizem que esta água é a água do demónio. Ulf e seus marsignos dizem que a água é de Hel, a senhora dos infernos dos mortos. A água mantém-se quente, mesmo no Inverno, mas isto tem a ver com um veio do solo que irradia calor e que habilmente foi aproveitado pelos arquitectos dos antigos donos do mundo tal como Cassiano me explicara. Dou umas braçadas, sentindo-me relaxado e pleno, como se o mundo lá fora não existisse e os meus problemas fossem coisa dum passado distante e enterrado. Faço bolinhas até que uma mão me empurra para debaixo das águas, as narinas ficam alagadas, enquanto me viro e amarro-me ao jovem e robusto corpo, encostando-o violentamente ao meu peito enquanto respirava ar e tossia água.
- És terrível Cibelle!
- Larga-me grande bruto! – tentei beijá-la, mas a mulher morde-me no lábio, livra-se de mim a murro e começa a nadar. Eu amarro-lhe um pé sentindo um colar de pedras no tornozelo… um peixe raspa em meus colhões… assustado, deixo escapar Cibelle, que nada até encostar a cabeça na borda do tanque. Aproximo-me, sentindo sangue a sair do meu lábio rachado, toco ao de leve em seus ombros e na sua pele macia. Cibelle toca nos meus lábios, vê que tenho sangue e beija-me.
- Com que então tens uma noiva?! – levo a mão ao meu lábio ferido, o caudal ainda era grande e apeteceu-me esbofetear Cibelle.
- Nós não temos nada, sempre disseste que não querias sair da quinta, que eras velha e que tinhas já enterrado dois pretendentes.
- Não te queria ver morto, foi por isso que não te aceitei como pretendente mas como amante. - leva suas mãos às minhas e obriga-me a tactear seus seios. Desabrocho seus mamilos, sentindo-os rígidos:
- Tenho uma maldição sobre mim.
- Não digas isso. – conforto-a, enlaçando-a e tocando no martelo de Donnar. Ela de facto tem azar, o primeiro pretendente sofrera, há alguns anos, uma queda de cavalo partindo a espinha, o segundo, até auxiliei na cremação, caíu num poço e afogou-se, um dia antes da boda. A partiu de então Cibelle ficou marcada como algo a evitar pelos homens e olhada de canto pelas mulheres. Inicíamos nossos encontros aqui e já passaram dois anos. Agora eu tenho noiva, como será? Nós temos um código, o velho pai tinha muitas amantes, mas os suevos tem um código do tempo de Ariovistos: a família é a unidade fundamental da nossa grei, da nossa gens, da nossa gau, é inviolável e incorruptível. Eu posso ter várias mulheres, com o seu assentimento, mas nunca uma amante. Teria que levar Cibelle para Saturnring, falar com a noiva estranha, e se elas assentirem viver na mesma casa, compartilhando tudo, então iniciaríamos as cerimónias. Mas todos me dizem, Ulf incluído, que é confusão a mais ter duas mulheres na mesma casa:
“o ideal é ter um mulher luso ou galo-romana e desembainhar a espada sempre que se puder como o velho pai fez e como todos fazem”. Permaneço frio, não correspondendo às carícias de Cibelle.
- Eu tenho uma noiva. – sentencio. Cibelle mira-me, estranhando-me, seus olhos de amêndoa ocres humedeceram, mas não se descompôs. Afasta-me com um repentino empurrão e nada até à faixa de ladrilhos, sai da água revelando umas ancas de barril e umas boas mamas leiteiras. Pega na túnica, ata seu longo cabelo negro num picho e, dolorosa, olha-me antes de sair do decrépito edifício. Mergulho a cabeça e deixo-me estar sem respirar, invocando as donzelas da água. Volto à tona, pensando em como vou negociar as trutas, as valiosas peles de arminho e o javali para as provisões de Saturnring.
Volto à aldeia, a noite caía e senti vários arrepios na espinha, enquanto deixava a villa de volta aos fantasmas
Estamos todos sentados à volta da fogueira, somos cerca de trinta almas, os filhos de Ulf, dois dos quais detesta e estão a meu lado, as suas mulheres, alguns trabalhadores e nós. Bebe-se bom vinho e algum bardo alumiado pelas chamas fala nos inícios do mundo. Lembro-me do gigante Ymir e do sonho da minha noiva e de como está tudo previsto no nosso destino, Cibelle está embalando uma criança com carinho e olha distante para as chamas, enquanto Veremunda lhe fala qualquer coisa. Frumário está a negociar com Ulf o que levaremos para casa:
- Três galinhas, nós temos um capão em Saturning, dois leitãozinhos, macho e fêmea que terão crias. – diz resoluto Frumário, pondo-se de pé e apontando os dedos das mãos.
- Bah! O javali e os peixes não valem isso.
- Valem, valem, - assenta Odoacro, enquanto bebe por um corno vinho amargo tinto e arrota. Ulf olha para mim e eu concordo com a cabeça com Frumário e Odoacro. O preguiçoso pega nas peles de arminho e desenrola uma:
- Mas as peles de arminho valem isso, em qualquer cidade hispânica dariam-nos um boi por elas.
- Sim…mas estamos longe das cidades, estamos no cu do mundo e as coisas aqui valem pouco. Afinal quem é o vosso chefe? Tu, Boríngio, não dizes nada, deixas que eles falem por ti? – eu corto com o punhal um pedaço de porco no espeto, miro-o indiferente e digo-lhe:
- Frumário negocia melhor do que eu. Precisamos das galinhas para o capão as montar e queremos um casal de porquinhos para aumentar a prole. As peles de arminho para ti serão quase de graça, podes escondê-las para tempos mais duros, elas valerão sempre um bom preço. – mastigo a carne e continuo a ouvir a saga de Ymir, pensando em Cibelle. Levar a Cibelle para Saturnring, fazer a proposta à minha noiva, não! Isso é estranho. Olho Veremunda e procuro a outra mulher, uma asturiana de nome Galena, gorda como uma chiva a amamentar o oitavo filho de Ulf.
- Nobre Ulf, onde está teu sétimo? – pergunto-lhe curioso. Ulf deixa de trincar a coxa e torna-se repentinamente sério.
- Para quereis meu sétimo?
- Para nada. – respondo-lhe, mas depois dou o braço a torcer. - Bom queria saber porque é que trocaram a minha noiva.
- O rapaz não faz dessas coisas, deixa-o em paz! Então vosso mago o, o… Atrace?!
- Está caduco, velho e não diz coisa com coisa. - respondo-lhe mentindo-lhe. Ulf mira a encoberta lua como à espera de um sinal. As duas mulheres olham o chefe e Cibelle deixa de brincar com a criança. Por fim, Ulf assinala-me a sua cabana. Pego numa tocha e enlaço-me na capa. As duas mulheres discutem com Ulf, mas a ordem de seu amo e senhor não volta atrás. Decidido, dirijo-me iluminando o caminho, para a cabana. Um cão amigo segue-me e eu vou acariciando o lombo, enquanto espero que Cibelle se levante no meio da confusão que se gerou com Ulf e as mulheres.
- Espera por mim, não podes ir sozinho, -diz-me Cibelle, amarrando-me no braço.
- Raios! um sétimo filho dum sétimo filho é isto que faz, está preparado para fazer isto e é imprestável para outra coisa, digo-me andando rápido, sentindo a cauda do cão nas minhas pernas.
- Porque raios é que ele está sempre doente? Deveriam-no pôr era a atender pessoas que precisam do seu dom.- digo-lhe ríspido. Cibelle pára-me, dirige-se à porta, b**e nela e diz que vai entrar. Entramos os dois e eu dependuro a tocha na parede.
- Amorzinho, é a tua madrinha Cibelle. – a mulher tira o xaile e debruça-se sobre uma baixa cama, aconchegando o pescoço ao rapaz. Eu olho a cara do mancebo alumiada pela frágil lucerna
Está gelo aqui. Sento-me num banquinho e tiro meia moeda de prata da minha bolsinha anexa ao cinto. Tudo no mundo da magia faz-se por trocas . O rapaz, o sétimo filho do sétimo filho, acorda com a moeda a aterrar no seu peito. Está branco e tísico e parece que vai morrer, mas Inverno apôs Inverno mantém-se firme na cama, só se levantando na Primavera e no Verão e tornando a adoecer no Outono. Se não fosse um sétimo filho do sétimo filho há muito que Ulf o teria afogado no Cuda, mas um sétimo sabe coisas, e é uma espécie de talismã, e a vida de Ulf tem corrido bem nestas serranias. - Minorca. - Não o chameis assim. - Minorca, brinquei contigo o Verão passado, fomos pescar e subir às árvores, lembras-te? – pergunto ao puto. Ele abre seus bogalhudos olhos, limpa-os e perscruta-me dizendo: - Boríngio. - Aldo. - Fizeste-me uma espada de madeira - ..E um arco. - E um arco. – o mancebo remata e tosse convulsivamente. Cib
Retiro, dum armário enfaixado na parede acima da cama, uma túnica, envergo-a e acerco-me do fogo, está um gato pachorrento num dos cantos vigiando as frechas dos ratos.- Como se chama o gato?- Sexta-feira.- Sexta-feira? – pergunto surpreendido por ela ter falado.Sexta? Dia de frig? observo o gato preto com seus olhos azuis demónio-saltitantes. É sempre bom ter um gato, para fazer trabalhos contra os génios maus que se alojam nos cantos da casa. Toco no martelo lembrando-me de runas fortes. Desembainho a espada, apontando-a à noiva.- Como vos chamais?- Sardenna.- Que raio de nome é esse? Sarmata? Dacio? Cita? - Embainho a espada, pescando-lhe o olho. Seus olhos rasgados continuavam sem alguma emoção, senta-se no chão e recua num doloroso passado:- Minha origem é gépida. Vivíamos em grandes tendas redondas nas margens d
Odoacro aponta a mesma, lentamente a pesado portal ficou escancarado e da escuridão saiu o nosso pesadelo, cavaleiros irrompiam do caos com longas crinas nos capecetes, ondulando ao vento e retesando os arcos.- Mexam-se! Dispersem! - grito enquanto vejo um cavaleiro de mitra na cabeça atirando sobre as indefesas gentes das muralhas. Hermelinda recebeu a frechada na barriga e caiu redonda no empedrado. Corro levando Sardenna, mas alguém em fuga vem contra mim e caímos os dois, a mão de Sardenna vai-se, levanto-me em pânico, procurando a minha noiva, corria algures no meio da multidão que descia das muralhas e se embrenhava pelas ruelas estreitas do horror. Olho para trás e evito um cimitarra que falha a minha cabeça por milímetros. Amarro-me ao rabo de cavalo, puxo-o, impulsiono o meu corpo para a frente apoio o braço na perna do filho da espete, ele dá-me com o punho da cimitarra na cabe
Por fim, tudo pára e tento situar-me. Estou numa espécie de nicho, ouço ao longe ecos da conversa entre a avô e Anwari e grito de pânico ao ver um enorme homem de dois metros, gordo e agachado a contemplar-me. Estava totalmente nu e tinha a cabeça rapada. - Tu és um gigante? - Ná! sou um descendente dos gigantes, sou um dos últimos descendentes dos gigantes, e sou hábil a coser. – apresenta-me uma agulha sem pico e um fio finíssimo feito dos tendões dos gamos, minha cabeça lateja e o sangue caindo-me das espessas sobrancelhas toldava-me a visão. - E agora adormece! – a agulha sem pico aproxima-se da minha cabeça. Estava anestesiado enquanto o gigante me cose, esgravatava um chão de palha, e ouvia Anwari a dizer a avó: - Vocês entraram na gruta, é aqui que trabalhamos o ferro, vocês são humanos, só poderão sair na Primavera. O melhor é adormecerem até lá. - Olho a cara diligente do gigante, sua cabeça andava à roda. Quero vomitar, em agonia digo adeus
À minha volta é só gritos e sangue, as gens das muralhas são alvejadas com flechas, miro o poço começo a correr e escondo-me dentro dele, sofro uma abrupta queda mas miraculosamente não bato nas rochas irregulares que saiam da circular parede, mergulho na água escura e fria e escondo-me no túnel que serve de ligação ao rio, ali enregelado esperei, até que eles começam a atirar os corpos cá para baixo. Camalo, Frumário sem pernas, um dos filhos de Ulf, gente e mais gente, quase a encher até cá cima, era um fedor insuportável, minha amputação não parava de sangrar, creio que desmaiei, talvez me lamuriasse enquanto as Valquírias não me levavam, talvez isso tivesse chamado a atenção de alguém de cima,…- torna a tossir…. Senti-me içado, e o resto já sabes, Ulf me salvou. - Ulf, os dois filhos dele morreram? - Sim. - Pobre Ulf. - Pobre porquê? viu-se livre de dois filhos que o contestavam. Porque raios achais que ele se retirou da cerimónia? – fiquei pensat
Odoacro e Falbilda renascida retornam ao carvalho com um odre de água. Eu estou agastado, estirado e cheio de terra peganhenta. Enervado, ralho ao duo:- Demoraram muito tempo para ir buscar água. - Os dois estavam ofegantes e ruborizados. A bela loira avó não responde e põe-se a tratar do nosso almoço. Odoacro lança-me um olhar cúmplice e guloso, eu censuro-o com a cabeça, segregando-lhe ao ouvido, “ não sei como te podes aproveitar de uma senhora idosa”. Ele muda de assunto com uma cara satisfeita, olhando para o baú poeirento que eu tinha aberto com um pé-de-cabra.- Já não me lembro onde deixei ficar a chave. De qualquer maneira não é grande coisa:Dois torques de prata, três braceletes de latão, valem pouco, trinta moedas de bronze com a efígie do nosso rei Hermerico..- Ele mandou cunhar moeda, o filho da pu
- Eu não concordo com o meu pai. Ele, dez milhas mais à frente, vai-vos fazer uma emboscada com dez homens. Não devereis seguir por aí, ide pelo norte. – dito isto volteia o cavalo e esporeia, subindo a colina barrenta e acenando-nos.- Espera! Precisamos de saber mais coisas. – vejo-o, desperançado, desaparecendo por entre os arbustos altaneiros. - E agora? - pergunto ao meu estranho duo.- Seguimos para Viseum. – diz-me Odoacro limpando o suor da testa. Seguimos então para as alturas de Viseum. Atravessamos duas pontes de arcos de pedra sobre o rio Monda e foi nas margens desse rio que pernoitamos. Acercamo-nos de umas lavadeiras que nos miram desconfiadas. Fabilda procurou obter informações sobre Viseum, as lavadeiras dizem-nos que não há gente sueva lá e quem manda na cidade e nos arrebaldes é um bispo de nome Remisol.- Que raio de nome, será luso-ro
Paramos numa fonte para beber água, enquanto que Asdróbal continuava-me a apresentar a cidade, - ali era um anfiteatro, agora é um tribunal e mercado de escravos. - Pára com isso, quando é que chegamos à casa à domus do bispo? não comi nada e o vinho anda às voltas do meu estômago. - Asdrobal, melindrado, pára de falar. Continuamos a atravessar o jardim, até que paramos numa domus com muros de estuque altos e brancos. O servo põe-se a bater numa porta de carvalho grossa com incrustações de ferro. Passado pouco tempo, a porta abre-se, Asdrobal entra e eu fico a olhar as paredes e dou uma mija nelas. A porta torna-se a abrir e a cabeça decorada com caracóis de Asdrobal apanha-me com as calças na mão. Envergonhado, sacudo as últimas pingas da pila e entro no atrium da casa. As paredes caiadas permitiam ver na escuridão os recortes de formas de grandes ânforas de barro e enormes vasos contendo mini-palmeiras. Entramos no peristilo já bem iluminado por tochas e com um tanque ao m