304ª olimpíada
....os suevos confirmam a paz consertada com a parte do povo da Galécia com a qual estavam em guerra.
O rei Hermenico acabrunhado pela doença, entrega o poder real a seu filho Réquila…
Crónica de Idácio
Saturnring, 438 d.c.
A geada dos montes Hermínios para norte era trazida em violentas rajadas de vento que encolhia mais a sentinela na sua guarita. Sorri perante o encolher de Camalo e detenho-me a olhar a longínqua neve mergulhada na escuridão, aconchegando a pele de raposa ao pescoço. O nebuloso branco fez-lhe recordar da travessia dos Pirinéus quando era criança e duma descida com os ovais escudos virados ao contrário deslizando serra abaixo e rindo à gargalhada com os primos. Velhos tempos esses… vagabundos por esse ocidente fora.
Miro a porta escura da torre tentando discernir que tipo de sombras eram aquelas que pulavam ao longo da muralha. Homens não eram, os homens não pulam assim! Pensou em ir dar algum alento a Camalo, sossegá-lo quanto às sombras.
Era um jovem, e para os luso-romanos as sombras são ninfas que lhe querem sugar o sangue enviadas pelo próprio demo que é o antagonista de Cristo: o carpinteiro crucificado que seguem. Para mim as sombras não passam de valquírias que deambulam pelos três mundos. A porta negra da torre é mais aconchegante do que ir fazer companhia a Camalo, depois da porta há hidromel e uma lareira quentinha. Decido-me a entrar, percorrendo com cuidado o escorregadio e pedregoso passadiço cheio de gelo que resvala. Demoro uma eternidade a percorrer o caminho debatendo-me com a pesada capa castanha de fazenda grosseira que me esvoaçava e me tapava o rosto. Por fim, abro a férrea porta. O que me custa imenso sem a habitual ajuda de dentro. A porta range de esforço… por fim, acho-me dentro e torno a arrastar a porta para fechar.
- Raios Frumário! Porque não me auxiliaste com a porta? – digo enervado, encarando Frumário que me mirava inerte e coçando a sua farta cabeleira negra.
- Tou preguiçoso… – responde-me.
- …O inverno põe-me indolente. – conclui, coçando na sua barba entrelaçada. Eu penso que Frumário, no tempo quente, também é indolente, mas guardei isso para mim. Dirijo-me ao alambique, retirando um recipiente de madeira debaixo da serpentina, o líquido amarelado ao fundo reflectia as tremelicantes luzes da lucerna e do archote. É suficiente para me aclarar a garganta. Sorvo-o todo, perante a passividade de Frumário. Está um tanto adocicado, mas não faz mal. Depois, detenho-me a olhar o preguiçoso, defronte da porta de braços caídos.
- Que raios estás a fazer?
- Nada.
- Nada? Porra! Vou dormir!
- Mas estais de turno de sentinela.
- Não se passa nada, está um frio de rachar lá fora e Camalo está na guarita, daqui a três horas vou substitui-lo… e depois eu sou o chefe da fortaleza e eu faço o que me apetecer. - dito isto traço a minha capa e procuro uma das redes que balançam presas entre as duas paredes de granito. Odoacro está numa delas, abro uma e meto-me a balançar, mirando Frumário ainda de pé. Passado pouco tempo o preguiçoso encosta-se à parede dormitando e eu, lentamente, entro em vigília.
Abria e fechava os olhos, repetindo as imagens dos archotes a arder. Estava no princípio anárquico do mundo, quando o gelo do norte se fundia com os ventos quentes do sul, Ymir dormia a sono alto e debaixo do seu braço esquerdo suado surgiram duas figuras a quererem respirar. Desperto violentamente alagado em suor procurando ar, tento reter o sonho para decifrá-lo com um runamal[1]. Comtemplo Odroaco e sua trança loira balançando de fora da rede. Odroaco tem o sono dos justos, não tem o sono alterado como o meu. Penso em levantar-me, mas está frio lá fora, tenho que me aguentar mais algum tempo aqui, remetendo-me ao silêncio na noite mais fria da Lusitânia. O tempo passou lento e vagaroso. Por momentos parecia que andava para trás, ia e vinha do mundo dos sonhos no dorso do cavalo branco dos presságios. Meu nome é Boringio, filho de Boringio e neto de Boringio. Sim, sou um primogénito, mas um primogénito deserdado. pai morreu sem deixar terra legada, creio que meus tios ficaram com a terra dele algures na nebulosa Gallaecia e não me deram cavaco, tenho um irmão algures, perdido na Bética que nem sei se é vivo ou morto, minha mãe faleceu há um ano e quis ser enterrada à maneira cristã. Depois da morte de meu pai tornou-se serva de Cristo e desceu a Bracara Augusta onde, sob o arcebispado de Balcónio, entregou-se ao senhor entregando-me a meus tios que me mandaram para longe, ainda me lembro das exéquias de minha mãe, feitas por um jovem monge retirado da sua cela na montanha com seu manto branco ao vento, no alto do promontório extra-muros. Tudo parece tão distante… e as exéquias falavam da ressurreição da carne e da vinda do reino do senhor, ele, tal como Wotan entregou-se ao sacrifício num lenho de uma árvore. Toco no meu martelo de Donnar e lembro-me que hoje é dia de Frig[2] e eu ainda não lhe dediquei nenhuma oração, tão alheado dos Deuses ando.
Um destes dias, um dos meus tios, que menos me detesta, veio-me visitar da longínqua terra búria[3] nas ulteriores partes da Gaellecia. Chegara agastado com vinte homens, uns salteadores alanos tinha-lhe estragado a viagem, em sua missiva queria tratar de me arranjar noiva.
- Para que é eu quero uma noiva, aqui enterrado?
- Boringio Langobardo, o rei Hermerico e seu jovem filho Réquila querem fomentar uma união com os galo e luso-romanos com o fim de cimentar e pacificar as relações com o povo do meio-dia, quanto mais enlaces existirem entre os filhos de Suevia e as mulheres do meio-dia, mais probabilidades existe de paz e união, agora que os Vândalos partiram, os Alanos já não existem como tribo, e os Visigodos espreitam os Pirinéus. Nosso grande rei Hermerico, portador do sangue do velho pai, ainda se lembra dos valorosos serviços de teu pai em prol do reino. Tu és o alcaide de Saturnring[4], uma das entradas pelo norte para a Lusitânia e pelo sul para a Gallaecia. - diz meu tio apontando os montanhosos planaltos lá em baixo.
- Estás numa posição importante meu rapaz, dado que tu és um sem-terra. - apeteceu-me responder mas calei-me.
- Alguém te trará a noiva, será uma luso-romana. Terás que casar à maneira dela, logo tens que ser baptizado.
- Não pense que eu vou deixar a maneira antiga.
- Calma rapaz, podes praticar o culto ao velho pai na obscuridade, é o que todos fazemos com as nossas esposas nativas.
[1] Feiticeiro germânico
[2] Sexta-Feira
[3] Terras de bouro
[4] Sortelhã
Levanto-me da rede, essa conversa ocorreu já há um ano, lembro-me da queda dos Alanos e dos últimos navios vândalos partirem, a noiva ainda não chegou, penso em Cibelle e desferrolho a pesada porta, dando um pontapé a Frumário e recebendo o gélido vento, protejo-me com a capa e empunho um archote, procurando o jovem Camalo, encolhido na garita, surpreendo-o gritando: - Raios mestre Langobardo! Por momentos pensei que fosse um demónio. - As sombras tem-te apoquentado? – pergunto-lhe, tremendo com as pernas de frio. Camalo tira a cabeça da guarita, amarelo e enregelado e com olhos dormentes, tinha o cabelo em forma de malga, de facto foi Cassiano, o padre que lhe cortou o cabelo à tesourada, pondo-lhe uma malga de barro de vinho tinto em cima da cabeça. Camalo perscruta as muralhas para sul e para norte, apontando-me com a sua manga felpuda de ovelha: - Além. - miro atentamente e parece que as sombras em forma de homens e cavalos pulavam a muralha, tornando-a a
Rodeado de húmido matagal, encontro um caminho de folhas secas dos teixos, freixos, carvalhos e aveleiras que ladeiam o mesmo. Percorro-o durante meia hora olhando para todos os lados e vendo os fumos saídos da fortaleza que coroa o monte Gerião[1], baptizei-o assim em nome do monte do norte onde a minha grei assentou. Uma elevação granítica estava à minha frente, salpicada de declinados carvalhos e oliveiras, dois corvos desciam e subiam uma dessas árvores e eu achei aquilo um bom presságio. Começo a subir o penedio monte, calcando as caganitas das cabras, encontro as fendas xistosas e embrenho-me nelas a medo entoando cânticos contra os duendes do ferro, um anão estava à minha frente de gorro vermelho e varapau. - O teu mestre está? – pergunto-lhe dando-lhe uma moeda com a esfinge do Imperador Teodósio. O anãozinho, de cara enrugada, toma o peso do metal e trinca-o avaliando o seu valor, depois dá-me passagem pela fenda, eu passo por ele e quando lhe ia agradecer o mesmo j
Nessa noite, em Saturnring, bebi muito, como se toda a minha vida não tivesse sentido o que de facto não estava muito longe da verdade. Relembrava a infância despreocupada com meu pai em que brincávamos com cavalos de madeira nos acampamentos. Debruçado sobre a mesa estou com uma ligeira dor de barriga, tive que implorar a Frumário que produzisse hidromel. Observo a escrava que comprámos para nós os quatro, que é a guarnição sueva que guarda Saturning, Camalo olha para a moçoila a medo, creio que ele ainda é virgem e a mim não me apetece nada meter com ela. Odoacro é o único que fala com ela brincando com as mamas. Frumário crê que comprar a escrava foi um mau negócio e eu tenho a mesma opinião. Veio de Tarragona, trazida por um árabe, há muito tempo estabelecido em Hispânia, não percebe nada do que nós lhe dizemos e é imprestável para qualquer serviço. Como será
Tropeço num prato de barro cheio de ossos de borrego e estatelo-me no chão batido de terra, a dor no nariz é atroz e levo os dedos à cana a ver se a tinha partido, estou tonto, ajudam-me a levantar:- Deixem passar, lá para fora, lá para fora a respirar ar puro. - Odoacro e Brigo encostam-me num acento de granito que saia da base da torre. Lá, deixam-me sozinho a recozer as minhas dores, de tronco nu e recebendo a geada no lombo, “filhos da puta esqueceram-se de mim»! A lua está pálida e encolhida sobre si mesma como que hibernando na letargia da Estação da neve. – Ó da torre! Ó da torre! – o vento frio fustiga-me os ossos afectando-me os pulmões. – Ó da torre! Ó da torre! – nu, no mais desolado cenário montanhês. – Ó da torre! Ó da torre! – creio que chamam, mas será o hidromel a circ
- Quando acordei, ela estava a andar nas traves com as pombas. - Bloqueio a mente e o problema, pensando noutro assunto: - Existem casebres vagos intra-muros? Hermelinda deixa de olhar a avô malabarista e responde-me: - Eu arranjo-lhe casa, mas não espere grande coisa, mas pelo menos um braseiro e uma rede onde não entra chuva arranja-se, há gente que deixou as casas e nunca mais voltaram, procuraram o mar para se assentar com as invasões. - Sim eu sei. - dirijo-me à parede onde dependuradas estão longas lanças de caçar javalis e matar homens. A pele da avô de Hermelinda está esticadinha e mesmo sua voz está mais límpida, bloqueio o assunto perante Hermelinda que me perguntava com o seu olhar inquisidor: que raios fizeste com a minha avó? Envergamos coletes de lobo e ovelha e empunhamos longas lanças, Camalo fica de guarda nas ameias, penso no absurdo de ter só um homem nas ameias, mas pelo menos consegue fechar a porta caso alguém tente entra
Eu fico eternamente a olhar a fogueira, e, em meu sono de vigília, imagens díspares aparecem-me e desaparecem-me. Os lobos, a cauda de Odoacro o eleito, Quinto Célio empalado nas lanças juntamente com a minha noiva… Odoacro mexe-me com a lança. O dia vai clareando, Frumário mija ao longe e o vento leva a sua urina por caminhos tortuosos. Um vento frio fustiga-me os ossos. Enlaço-me na capa, aconchegando minha cabeça e pescoço. Pegamos no javali, dependurado com as quatros patas num escarnado tronco de jovem pinheiro, a descida para o lugar de Ulfe ainda é trabalhosa e maçadora. Fomos vagarosamente seguindo pelos inclinados trilhos de cabras da serra sagma[1], onde ao fundo um ribeiro sinuoso entre o penedio se transformará num rio formoso onde me baptizaram. Ao final da manhã chegávamos às margens onde verificámos as armadilhas em forma de rede para as trutas. Enchemos meia cesta de trutas e lampreias, onde esperaríamos trocar por carne no lugar de Ulf. Merendamos pão duro,
Ouço alguém e rio-me, “Fantasma! Fantasminha”, dirijo-me ao horto, saindo da casa do senhor, ena! As couves estão altíssimas! É uma pena que ninguém as venha colher com medo dos peidos dos espectros.Entro num edifício já mais fechado e fresco, com um tanque rodeado por uma faixa de ladrilhos, pouso a pesada lança, descalço as botas de camurça, desapertando os incomodativos atilhos de couro, deixo cair o pesado manto castanho de meu corpo, abrindo o alfinete do broche circular bretão, uma das poucas heranças de meus pais que escaparam às garras dos meu tios que me querem ver morto. “Boríngio! Boríngio! Não te deixes levar pela tua paranóia…” Retiro o colete de peles e a túnica suada preta, descalço as bragas quadriculadas e meto-me como vim ao mundo na água tépida, esfregando-me com o barrote.
Está gelo aqui. Sento-me num banquinho e tiro meia moeda de prata da minha bolsinha anexa ao cinto. Tudo no mundo da magia faz-se por trocas . O rapaz, o sétimo filho do sétimo filho, acorda com a moeda a aterrar no seu peito. Está branco e tísico e parece que vai morrer, mas Inverno apôs Inverno mantém-se firme na cama, só se levantando na Primavera e no Verão e tornando a adoecer no Outono. Se não fosse um sétimo filho do sétimo filho há muito que Ulf o teria afogado no Cuda, mas um sétimo sabe coisas, e é uma espécie de talismã, e a vida de Ulf tem corrido bem nestas serranias. - Minorca. - Não o chameis assim. - Minorca, brinquei contigo o Verão passado, fomos pescar e subir às árvores, lembras-te? – pergunto ao puto. Ele abre seus bogalhudos olhos, limpa-os e perscruta-me dizendo: - Boríngio. - Aldo. - Fizeste-me uma espada de madeira - ..E um arco. - E um arco. – o mancebo remata e tosse convulsivamente. Cib