CAPÍTULO 2

 Cristiano 

Quando decidi entrar para a polícia, ainda estudava direito, pesquisei sobre o trabalho, funções e salário. Isso me encheu os olhos, me deixou deslumbrado. Então me matei de estudar, passei no concurso e em todos os testes físicos e psicológicos sem qualquer auxílio do meu pai e suas influências. Aí, na prática, descobri que não é nada como imaginei. E não estou reclamando por estar encostado no carro, em frente à padaria Pão Nosso De Cada Dia, uma das melhores de Serra dos Anjos, esperando a Vanessa comprar o lanche para todo o departamento. Imagina, isso não é nada perto das tardes em que o chefe me coloca para atender telefone como se eu fosse recepcionista. Nada contra essa função, acontece que eu não sou recepcionista, porra. Nem presto serviço de delivery, como estou fazendo nesse momento. 

Com os braços cruzados, olho o relógio no pulso só para implicar com a Vanessa quando ela voltar. Entrou há vinte minutos com a lista de brioches, croissants e coxinhas que fizeram na DP. Com a panturrilha cruzada sobre a outra perna, balanço o corpo ansioso, porque tenho um monte de coisas para fazer, enquanto perco tempo no serviço de entrega. Quarta-feira já começa pesada, com aquela sensação de que a semana não passa nunca, isso só aumenta meu mau humor. 

— Veio pegar outro depoimento? — ouço uma voz conhecida, clara e bem modulada, com uma musicalidade natural que me chama a atenção; e ao erguer a cabeça, me deparo com Emilly, a moça de quem aquele marginal tentou furtar a bolsa no sábado. Está séria, mas abre um sorriso quando nosso olhar se cruza. 

 — O quê?! — pergunto, confuso, pensando: O que ela está fazendo aqui? Será que está me seguindo?

E com um tom bem provocativo, comenta, repetindo um gesto que reparei no outro dia, graciosamente j**a o cabelo para trás do ombro.

— Veio pedir outro panfleto, já que jogou o que te dei fora? — O sorriso se transforma em um olhar estreito e sinto uma pontinha de acusação em sua voz.

— Ah... — que mancada! Ela viu?! — Eu... — Tento pensar em uma desculpa plausível para dar, mas nada me ocorre. Resolvo chutar o balde. — É... foi mal, eu joguei fora. 

Não parece se importar, meneia com a cabeça e ajeita a alça da bolsa preta no ombro; não é a mesma bege que resgatei, essa tem a alça maior, e pelo jeito que a segura, se a tentarem roubar, terão que levar seu braço junto. Hoje está mais despojada, com uma calça jeans e camisa feminina comprida até a metade da coxa, o cinto realça uma cintura fina acima de um quadril proporcionalmente avantajado. 

Não dá pra evitar o que penso sobre isso, mas é melhor deixar pra lá.

Interrompendo minha análise, cruza os braços diante do corpo em uma postura extremamente defensiva ao lançar outra pergunta:

— Em que posso te ajudar? Algo relacionado ao assalto de sábado? 

Ainda confuso pra caralho, me desencosto do carro olhando-a, acho que perdi o fio da meada. Pessoas passam e todas a cumprimentam, algumas me cumprimentam também, e ainda que eu não me lembre de onde as conheço, respondo educadamente, mas sempre volto a atenção para a louca em minha frente, me sentindo bastante curioso.

— Desculpa... por que eu estaria aqui por você? — pergunto ao mesmo tempo em que aceno para um senhor que passa.

Parece um jogo de peteca, joguei minha pergunta, transferindo minha confusão para ela, mas parece entender menos do que eu. Dois retardados conversando.

— Porque eu moro aqui. — Aponta o prédio sobre a padaria. — Quando te vi, pensei que estivesse me esperando.

Então eu solto uma alta risada e balanço a cabeça, coçando a nuca. Outro senhor passa atrás dela e nos cumprimenta.

— Bom dia.

— Bom dia, senhor Silvio. — Respondemos juntos e, quando voltamos a nos encarar, eu ainda estou rindo.

— Não, não, Emilly, eu... — Antes que eu responda, Vanessa sai da padaria com várias sacolas de papelão, e parece desesperada por socorro.

— Nunes, me ajuda aqui — pede. 

— Estou esperando por ela. — Aponto minha parceira.

Emilly se vira para ver quem me chama e avanço na direção de Vanessa, que passa algumas sacolas para minhas mãos, avisando.

— É a última vez que me ofereço pra isso. Se eu perguntar aos outros o que querem da padaria mais uma vez, me tranca no banheiro até essa loucura passar. — Embora esteja séria, sei que mente para si mesma, ela ama as guloseimas dessa padaria e não consegue deixar de fazer favores para os outros. Volta-se sorrindo ao passar pela mulher com quem eu conversava, e cumprimenta com exagerada simpatia. — Oi, tudo bem?  

Exagerada sim, forçada não. Vanessa é gente boa demais; abre a porta de trás do Jetta preto, j**a as sacolas no banco traseiro e estende a mão para cumprimentá-la. Emilly assente e percebo que a deixei sem graça.

— Olá... — responde depois de um pigarro e se volta para mim. — Bem, foi um prazer te rever. — Tenta disfarçar o constrangimento, mas, por sua falta de talento, nem preciso ser perspicaz para notar um clima estranho. Não posso negar que, vermelha de vergonha, fica ainda mais linda.

Colocando um pouco de lenha na fogueira, dou uma alfinetada de leve.

— Só por curiosidade, por que pensou que vim atrás de você? Está acostumada com policiais virem confirmar se está bem depois das encrencas em que se enfiam por sua causa?

 Abre a boca para me responder, antes que diga algo, quem decide inverter o jogo e constranger a mim, é Vanessa. 

— Ah, essa que é a Emilly? — Olha para ela e sorri abertamente, até de forma bem exacerbada para meu gosto. — Realmente, você é muito bonita!

Nós dois a encaramos ao mesmo tempo. Seria uma cena hilária, se eu não fosse essa vontade de enforcar minha parceira. A baixinha trabalha com a camisa social presa no cós da calça jeans e o cabelo cheio de tranças em volta da cabeça, não sei o nome desse penteado, mas ainda que a deixe com a errônea aparência de policial meiga, penso em agarrar as trancinhas e puxá-la por vários quarteirões até a DP. Chego a visualizar a cena: Ela correndo ao lado do carro pela avenida de Serra dos Anjos. 

Imagino o espetáculo enquanto as duas se cumprimentam.

— Sim, prazer, sou eu mesma. — Estica a mão para Vanessa, que a aperta mais uma vez. A peste parece totalmente alheia ao fato de que falou demais. Tenho que dar um jeito de consertar, pois não me passa despercebido o sorrisinho convencido que repuxa os lábios da Emilly, deixando evidente a satisfação por saber que falei sobre ela.

— É ela mesma, a pessoa que foi furtada sábado em frente ao supermercado. — Solto um suspiro e encaro Emilly. — Comentei com ela que tive que correr atrás de um trombadinha.

— Ah, entendi. — Embora esteja assentindo sem parar com a cabeça, me olha ainda com o sorriso de quem está se achando a última bolacha do pacote. Mas analisando com calma, preciso dar o braço a torcer e admitir que ela tem o direito de “se achar”. É gostosa mesmo.

Espantando tais pensamentos, abro a porta da frente do carro, seguro a cabeça da Vanessa desejando apertar os dedos até perfurar seu crânio e apertar seus miolos, e a giro, forçando-a para que entre no carro. 

— Então, vamos ou metade do departamento morre de fome.

— Foi um prazer, Emilly. — Vanessa se senta e a outra acena de volta com um belo sorriso cheio de deboche. 

— Tchau, Vanessa, o prazer foi meu — diz isso me encarando, ela realmente gostou de saber que falei sobre ela. Ordinária. Aceno ao dar a volta no veículo e abro a porta.

— Até mais. — Me esforço para pensar apenas nos defeitos dela, além de seu nariz empinado, claro, que nem chega a ser um defeito. 

Quando me sento ao volante, dou uma olhada discreta para trás e a vejo abrir uma porta de ferro e vidro que fica ao lado da padaria, certamente é a entrada do prédio. Vanessa, distraída, vasculha uma das sacolas e pergunto, irritado.

— Qual é o seu problema? 

Erguendo a cabeça, totalmente absorta em seu lanche, me encara interrogativa.

— O que foi?

Estou mais indignado pelo fato de ela parecer não notar a vergonha que me fez passar, do que pelo comentário que fez com a mulher, entregando que falei sobre ela.

— Precisava dar essa guela? Ela está pensando que andei falando dela e deve achar que estou interessado.

Vanessa morde um pedaço de croissant despreocupada, mastiga me olhando por um tempo como quem pensa se deve ou não se dignar a responder e, por fim, fala ainda com a boca cheia.

— Mas você falou dela.

— Ah, legal... — minha indignação só aumenta. — Eu só contei o que aconteceu, mas do jeito que você falou, agora a mulher deve estar pensando que andei falando sobre ela de outra forma.

Vanessa ri alto se ajeitando no banco e se vira totalmente para mim:

— E não foi exatamente isso que você fez? Eu ouvi sua conversa com o Alexandre no pub, quando disse que ela era uma gata muito gostosa. Vai dizer que não ficou a fim?

Trinco os dentes balançando a cabeça para os lados e giro a chave.

— Vanessa, eu juro que qualquer dia desses, vão me investigar pelo seu assassinato.

A ordinária gargalha jogando a cabeça para trás e volta a dar uma enorme mordida no croissant.

Bom, diferente da Polícia Militar, que atua na prevenção da merda, meu trabalho começa depois que a merda é feita. Então, se os coleguinhas PM´s fizerem seu serviço bem-feito, estou livre para esperar meu plantão terminar, jogando paciência no computador, ou, no máximo, registrando um boletim de ocorrência por estelionato. Pelo menos até os relatórios dos peritos e do legista sobre o caso do corpo carbonizado que encontraram na mata, chegarem ao meu e-mail.

Mas quando meu chefe abre a porta e grita:

— Nunes, vem aqui.

Só consigo pensar que alguma coisa ruim aconteceu e ninguém sabe quem é o culpado.

Ainda.

Paro a pesquisa sobre preço de sofá que venho fazendo há dias para escolher um mais confortável que o meu, que caiba na minha sala e no meu orçamento, fecho a janela do Chrome e me levanto para atravessar o enorme cômodo onde ficam as baias de trabalho.

A sala do chefe é totalmente de vidro, o que é divertido, pois de fora sabemos quando ele está brigado com a esposa ou quando viu algum “passarinho verde”. Às vezes, o pessoal observa sua sala como quem assiste a um reality show, fazemos até apostas sobre qual é o motivo do estresse do dia. 

Quando paro do lado de fora, gesticula para que eu entre. Depois que abro a porta, faz outro gesto impaciente, como sempre, para que a feche, e aponta a cadeira.

— Sem ser nesse sábado, no próximo, haverá um evento beneficente no salão Paschoal, um empresário do ramo da construção irá oferecer a festa e alguns baba ovos da cidade desfilarão suas bundas gordas por lá. Geralmente só os chefes de batalhões e departamentos são convidados, mas o prefeito estendeu o convite a você. — Ele se encosta na cadeira, que balança para trás dando a impressão de que vai cair, e não sei se fico receoso ou ansioso para que isso aconteça. O delegado Afonso Mello morde a pera que segura e fica me olhando como quem espera minha reação.

— Por que o prefeito estendeu o convite a mim? Não entendi. — É uma pergunta plausível, quem não ficaria curioso? Pois o que motivaria o prefeito a me convidar? Eu fui transferido da capital há apenas oito meses, nunca estivemos juntos e não me lembro de ter alguma fama que me preceda.

Mas Afonso me lança seu olhar entediado. 

— Dá uma olhada lá fora, Nunes. — Impaciente, aponta por cima do meu ombro e me viro; os colegas estão concentrados, a maioria finge que trabalha, não vejo nada diferente. 

— O quê?

— Todos esses policiais dariam um braço por um convite pra uma festa onde possam beber e comer de graça, então, para de encher a porra do meu saco com perguntas tolas, arrume um terno decente e tire essa barba, pois a festa é a rigor. 

Não consigo evitar o riso, seu jeito “doce” de falar é hilário, e me levanto ouvindo-o passar a última instrução:

— Encaminhei o convite para o seu e-mail, deve apresentá-lo na entrada com um documento.

— Sim, senhor. Algo mais?

— Não falte a este evento. — É uma ordem. — Pode ir.

Mello é um cara legal, do tipo que faz de tudo para ajudar a equipe, contudo, seu sistema nervoso carrega anos de trabalho e muito pepino ralado. Vive estressado, cabreiro, e seu jeito de falar pode parecer grosseiro, mas depois de pouco tempo notei que é pura fachada. 

Não o julgo, pois acho que sou bem parecido, embora eu pense que ele deva fazer algum tipo de terapia. Esse homem carrega carga demais.

Saio da sala e encontro Vanessa no corredor entre as baias. Ela vem do banheiro balançando as mãos úmidas, e olha para a sala de Afonso, curiosa.

— O chefe te chamou? Aconteceu alguma coisa?

— Sim. Parece que fui convidado pra uma festa beneficente.

— Convidado por quem?

— Pelo prefeito — respondo distraído, verificando, pelo celular, a mensagem no e-mail que acabou de chegar.

— Uau! —  Cruzando os braços na altura do peito e, emburrada, reclama. — Também quero. 

Paro no lugar ao ler uma notícia que vai animá-la e alargo o sorriso.

— E eu posso te levar. — Viro o celular em sua direção, onde diz: com direito a acompanhante.

— Que massa! — Entusiasmada, Vanessa faz uma dancinha louca, rebolando e rodando no mesmo eixo. Nem se importa que isso atraia os olhares de todos. E, enquanto eu me afasto o mais rápido possível, alguns riem e outros assobiam. Ao sentar em minha cadeira, a vejo erguer o braço teatralmente para os outros. — Eu estou bem, obrigada, feliz e super bem... — Lança um beijo para o próprio ombro, aponta para mim. — Nunes é o cara.

Quando se aproxima da minha mesa, balanço a cabeça para os lados.

— Se fizer algo assim na festa, eu juro que te afogo no ponche. 

— Vai ter ponche?! — Arregala os olhos, sua animação é contagiante. Gargalhando, se senta em minha frente toda animadinha e junta as mãos como quem faz uma prece. 

— Eu posso te arrumar?

Desvio o olhar da tela do computador para sua carinha de smile feliz e nego com a cabeça veementemente.

— Não mesmo, tá me confundindo com a Barbie?

— A Barbie não, o Ken, talvez. Ah, é sério, Cris. Não é só vestir um terno, essas festas são muito chiques. Precisa arrumar o cabelo, fazer a barba, passar uma base...

— Que base, o quê?! — Minha voz sai até fina.

— Sério, até os artistas fazem maquiagem, seu idiota. E tem mais, uma pulseira legal, uma corrente, um relógio bacana, sapato. Irmãozinho, você tem que ir gatão, até porque, vai ser meu acompanhante e eu não ando com homem feio.

— Rá, tá... eu só não vou comentar nada a respeito, porque o Marcos é gente boa. — O garoto com quem ela anda se agarrando é um cara bacana, desprovido de beleza, se é que posso opinar. — Eu já fui em festas assim, Vanessa, sei como me arrumar.

— Por favor. — Seus olhos redondos me lembram o Gato de Botas da animação Shrek, é o mesmo olhar que me convence a levá-la na padaria todas as manhãs para comprar o lanche da galera.

Solto o ar pesadamente, estreitando o olhar em sua direção. Eu posso me arrepender muito disso, mas...

— Tudo bem, só que eu não vou sair de casa se me deixar igual ao Ken da Barbie.

— Não se preocupa, gatinho, você é muito mais lindo que ele. — Vanessa b**e no meu nariz com a ponta do dedo e se afasta na direção de sua mesa, divagando sozinha. — Vou ser a melhor personal stylist do mundo.

Talvez se eu a afogar no Rio Ângelo, ninguém descubra — cogito.

Olho desanimado para a pilha de papéis em minha frente, estou aguardando alguns laudos do laboratório sobre a investigação de um assassinato ocorrido em um distrito próximo do qual somos responsáveis, mas me sinto em um beco sem saída. Essa história de evento beneficente e traje a rigor me desconcentrou ainda mais. Como a hora não passa e reler esses arquivos não me levarão mais longe do que cheguei até agora, me levanto, pego a jaqueta jeans no encosto da cadeira e caminho para a porta, chamando.

— Andrade, vamos dar uma volta? — Vanessa Andrade se levanta no mesmo pique em que havia sentado, pega o celular sobre a mesa e me segue.

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