CAPÍTULO 5

Emilly

A semana passou voando e a segunda-feira começa agitada com a organização de um evento beneficente ao qual estou engajada. Preciso de café logo cedo, e como o da padaria que fica embaixo do apartamento onde moramos é divino, e o dono, tio de Evans, nos dá excelentes descontos, é para lá que descemos todas as manhãs para o desjejum. Sentados à mesa perto da parede de vidro onde sempre ficamos, minha cabeça dá uma viajada enquanto ouço Evans falar sobre seu namoro, olho o movimento de pessoas e automóveis que passam pela avenida, pensando naquele maldito pen-drive. Será que é seguro ficar com aquilo? E se Margot falar com mais alguém a respeito e disser que o entregou a mim? Eu não faço ideia do que tem nele, não tentei abri-lo, nem perdi meu tempo, ela avisou que está criptografado e eu não faço ideia de qual é a senha. Além do mais, Margot pediu que o guardasse enquanto estivesse ausente em uma viagem, e me fez garantir que eu o manteria seguro.

“Ninguém pode saber desse pen drive.” — Seus olhos arregalados me deixaram perturbada. Peguei o tubo em forma de batom e ela repetiu. — Ninguém, Emilly, nem a pessoa em quem mais confia.”

— Alô. — Uma mão abana o ar em minha frente e me desligo da lembrança. Volto minha atenção para um curioso Evans que me olha interrogativo e muito preocupado. — Tudo bem? Falei um quilo e você parece não ter ouvido nem uma grama.

— Desculpa, o que você disse? — Encaro-o torcendo para que o sorriso falsificado que exibo disfarce o quanto estou intrigada.

— Perguntei se vai trabalhar em home-office hoje ou se vai pro escritório. Porque se não for ficar em casa, terei que subir pra buscar minhas chaves.

— Ah, eu vou pro escritório hoje. Semana passada trabalhei de casa e não rendeu nada. Mas vou lá em cima retocar a maquiagem, se quiser, deixo a chave com você na DP.

Juro que eu não pensei em Cristiano, não antes de Evans me encarar com esse olhar desconfiado, repleto de julgamento, falando com seu tom mais sarcástico. 

— Que disposição pra desviar do seu caminho só pra levar as chaves pra mim. Quanta gentileza! — Se levanta e balança a cabeça para os lados. — Não vou te dar essa brecha. Nem pensar que deixarei você pagar o mico de ir até lá com a desculpa esfarrapada de entregar minhas chaves. — Nem me dá tempo para protestar, se afasta na direção do caixa e fico rindo, olhando o celular até que uma voz chama minha atenção.

— Oi, tudo bem? — Ergo os olhos e me deparo com Vanessa. Apenas o fato de ela ser parceira de Cristiano, me faz sentir um gelinho na barriga. Coisa estranha! A investigadora parece o tipo de pessoa que está sempre sorrindo, de bom humor. De pé, do outro lado da mesa, tem a mão esquerda enfiada no bolso da calça e a outra segura o celular. Deixa o aparelho sobre a mesa e estica o braço para me cumprimentar. — Nos conhecemos, aqui na frente, na semana passada.

— Sim, eu lembro. — Aperto sua mão e devolvo o sorriso. Não é difícil ser simpática, ela é do tipo que extrai bons sentimentos de nós. — É a parceira do Cristiano, não é?

— Sim, sou. Eu... — Olha em volta, a fila está um pouco mais intensa do que de costume. — Vim comprar pães para o café da manhã, mas a gente se atrasou e está lotado demais aqui hoje. Não poderei esperar, o pessoal vai ter que se contentar com os pães de outra padaria.

— Estão de serviço hoje? — quero saber de Cristiano, mas não vou perguntar diretamente, porque tenho o espírito de uma adolescente de doze anos, mas nem ligo.

— Sim, todos os dias. Nós folgamos no final de semana. 

— Ah, sim. — Lanço um olhar discreto em volta, buscando ver seu parceiro, e me frustro.

— Foi um prazer te encontrar, até mais. — Vanessa dá um passo para trás, e me ocorre uma ideia quando vejo Evans se aproximar. 

— Espera um minuto. — Estico a mão em sua direção e Vanessa para, então, peço ao Evans assim que ameaça se sentar. — Será que você pode pedir alguém pra atender sua colega?

Ela o reconhece e não espera a resposta dele, estica um papel em sua direção com um exagerado sorriso que expõe muitos de seus dentes e forma uma bochecha engraçadinha. Vanessa não deve ser o tipo de policial que impõe medo. Respeito, talvez.

— Oi, Evans, tudo bem? Esta é a lista. 

Confuso, ele pega o papel de sua mão e o examina com um enorme vinco na testa, enquanto isso, explico para Vanessa.

— O tio dele é o dono da padaria. 

— Ah é? — ela arqueia as sobrancelhas e comenta, cruzando os braços diante do corpo. — Você bem que poderia levar o lanchinho dos coleguinhas todos os dias, né?  

Encarando a mim e em seguida Vanessa, Evans não diz nada. Abre a lista enorme na minha frente, me fulmina com o olhar e se vira para voltar à cozinha, resmungando:

— Vou ver o que posso fazer, mas tira seu cavalinho da chuva, não se acostuma com isso não.

Depois que Evans passa pela porta metálica, aponto a cadeira em minha frente.

— Senta aí, Vanessa, ele não vai demorar. 

Ela aceita ao convite e pega o aparelho celular, cruza os braços sobre a mesa e confessa, olhando a rua pelo vidro.

— Essa padaria é a melhor da cidade e os caras sabem que compro aqui todos os dias. Acredita que quando acordo já tem milhões de mensagens deles fazendo pedidos? Estão me confundindo com entregadora de lanche. — Torce os lábios e ri. — O Cris fica muito bravo, mas fico sem graça de recusar.

Não consigo ignorar a sensação quente e úmida à simples citação do nome dele. Que maluquice! O cara é gostoso, tem um olhar penetrante e um cheiro maravilhoso, mas nada justifica essa sandice. Talvez eu deva voltar a frequentar o consultório da doutora Marta. “Oi, doutora, tudo bem? Tem algo errado comigo, vi um homem duas vezes e não consigo tirar ele da minha cabeça.”

— Onde eu trabalho tem uns folgados assim também. — Comento para me manter focada na conversa, e não é mentira que na minha empresa tem uns funcionários bem abusadinhos. — Há quanto tempo você trabalha aqui em Serra dos Anjos?

— Dois anos. Eu morava na capital, mas me candidatei para a transferência depois de vir passear em Serra. Simplesmente me apaixonei pela cidade — responde com entusiasmo.

— Parece que todo mundo que vem passear aqui, decide ficar. — Lembro de Virgílio e tantos outros que conheço. Enquanto conversamos, pelo canto do olho vejo alguém surgir na calçada do lado de fora da janela, meu coração dispara quando meu olhar cruza com o de Cristiano. 

O que é isso?! Uma sensação gostosa e ao mesmo tempo devastadora. O coração dispara de um jeito absurdo e exagerado. Remexo na cadeira e finjo procurar algo em minha bolsa, tentando ser menos óbvia. Cristiano gesticula impaciente para Vanessa e aponta o relógio no pulso. Dá para perceber que está com muita pressa.

— Espera. — Esticando a palma da mão em sua direção, ela responde em voz alta, como se o parceiro a pudesse ouvir do outro lado do vidro. Depois aponta para a porta metálica por onde Evans sumiu há pouco. 

Durante essa conversa estranha através do vidro, mais uma vez meu olhar encontra o de Cristiano, que, dessa vez acena, me cumprimentando. Noto algo diferente em seu olhar e fisionomia. Das outras vezes em que estivemos juntos, parecia agitado e estressado, mas dessa vez me parece triste e cansado, isso me incomoda e ao mesmo tempo gela a barriga.

— Quer que eu verifique por que Evans está demorando?

— Não. Ele deve estar esperando algum item ficar pronto. — Vanessa comenta e volta a olhar para o parceiro, e pelo modo como o olhar, também parece preocupada com ele. Cristiano se virou de costas e está com as mãos nos bolsos olhando os carros que passam na rua. 

— Ele está bem? — Pergunto, mas logo me arrependo. Posso estar sendo invasiva demais. Contudo, ela responde tranquilamente.

— Está sim. O Cris deve ter jogado rocha na cruz e está pagando seus pecados. — Vanessa força um riso e desvia o olhar dele para mim, soltando um suspiro. — Mas vai ficar bem.

— Espero que sim. — Minha curiosidade alcança níveis altíssimos e não sei como perguntar sem parecer intrometida demais. Também não sei explicar o que vejo no olhar de Cristiano, mas é como se escondesse dores parecidas com as minhas, como se refletisse minhas angústias. Talvez seja por isso que me identifico com ele.

Além do bumbum bonito, moldando aquela calça de brim azul marinho.

Ouvimos o barulho da porta metálica da cozinha, e voltamos nossa atenção para Evans, que sai desajeitadamente com várias sacolas de papel.

— Você acabou com o estoque da padaria. — Seu humor ácido arranca um riso de Vanessa, e ele continua. — Se a galera da DP vai comprar lanche aqui todos os dias, acho que vou avisar ao meu tio para aumentar a receita.

Ela se levanta assentindo, tira algumas notas do bolso da camisa e segue na direção do caixa, comentando.

— E, eu, sonsa, deveria ter ficado na fila do caixa enquanto isso. — Realmente. Há uma dúzia de pessoas naquela fila.

— Não precisa, mulher. — Evans a puxa pelo braço e aponta as sacolas. — Eu já paguei, fica com o dinheiro como pagamento pelo serviço de hoje. — Aponta o dedo diante dela e diz sério. — Mas vou repetir: não se acostume porque eu não alimentarei a gente daquela DP todos os dias.

— Ótimo. Valeu. — Mesmo Evans dizendo que não precisava, ela deixa o dinheiro em sua mão sem esperar o troco, junta as sacolas da melhor forma que consegue e sai acenando com a cabeça. — Obrigada, até mais tarde, Evans. — E me olha confusa. — Tchau... — Pela careta que faz, sei que esqueceu meu nome. 

— Emilly — digo.

— Isso, Emilly... até outro dia. — Ela, definitivamente, não tem jeito de policial. Talvez seja bom para trabalhar disfarçada, à paisana. É meiga e tem um jeitinho divertido.

Volto a olhar para fora, Cristiano está de cabeça abaixada e quando a vê sair da padaria, se aproxima para ajudá-la. Espero que olhe para mim, e sigo com os olhos os dois, até que somem da minha vista e ele não dá, sequer, uma olhadinha em minha direção. Sinto o peito esquentar com a sensação dolorosa de decepção e me recrimino no mesmo instante. Ainda bem que Evans está alheio a tudo, digita no celular e fala de várias coisas ao mesmo tempo, mas me sinto estática, perplexa com o quanto a indiferença de Cristiano me incomoda. Para me permitir sentir mal desse jeito ridículo por um homem, eu realmente devo estar louca.

Abano a cabeça, espantando tais pensamentos perturbadores, me sinto patética. Pego minha bolsa na cadeira ao lado e me levanto. Sou um desastre tentando disfarçar meus incômodos, derrubo a cadeira e sinto o olhar de Evans queimar sobre mim enquanto a pego do chão.

— Vou subir, Evans, se esperar cinco minutos eu trago suas chaves.

Ele tem razão, nem morta vou me abalar até a delegacia com a desculpa de levar um objeto, tendo como intuito ver alguém que parece ignorar totalmente a minha existência. Ridículo. 

Até a adolescente em mim, se incomoda com isso.

Não espero pela resposta, saio da padaria pisando fundo, agora, chateada por considerar Cristiano ridículo, só pelo fato de ter feito pouco caso de mim. Ridícula sou eu, isso sim. Continuo brigando comigo mesma escada acima, indignada com meus próprios sentimentos.

Acho que estou abalada, um chá de maracujá talvez me ajude.

Margot e eu éramos amigas desde o ensino fundamental, contudo, conforme fomos crescendo e as responsabilidades nos sufocando, nosso tempo juntas foi se tornando cada vez mais escasso. Além disso, tinha ciúmes da minha amizade com Evans e ambos se alfinetavam muito.

Trocava de homem como eu de roupas, mas quem sou eu para julgá-la? Nunca fui muito diferente. Mas há uns dias ela parecia feliz com seu novo namorado e pouco nos víamos. Quando a encontrei na rua, certa vez, notei que estava apreensiva, e em uma tarde, quando nos encontramos para almoçar, parecia se afogar em ansiedade. Margot sempre foi uma mulher tranquila e divertida, mas seu olhar denunciava haver algo errado. Não quis me falar e se desviou do assunto, então tentei respeitá-la e não me preocupar. Até que me ligou dizendo que precisava me encontrar urgente. Eu estava no supermercado, aproveitei o horário do almoço para comprar alguns itens, pois ao sair do trabalho não teria tempo. Margot me esperou na porta e, ao me ver, segurou minhas mãos, deixando um objeto dentro delas e falou muito séria:

— Vou viajar, não sei quando volto, mas só confio em você pra guardar isso. Está criptografado, mas, mesmo assim, ninguém mais pode saber sobre esse pen drive. 

— Você está me assustando. — Apertei seu pulso. — Me conta o que aconteceu. 

Um homem passou ao nosso lado, nos encarava de forma estranha e Margot o encarou de volta. Havia pânico em seu olhar e se voltou para mim forçando um sorriso ao dizer, entredentes. 

— Esconde muito bem escondido. — E notando que o objeto em formato de batom ainda estava na minha mão, apontou a bolsa. — Guarda isso. Não conte nem para a pessoa em quem mais confia.

— Margot... — comecei a falar, mas se afastou apressada, atravessou a rua olhando para os lados e correu pela calçada até sumir na esquina. 

De joelhos no meu quarto, repasso essa cena, segurando o pen drive e pensando no que ela estará metida. Talvez deva contar ao Evans, mas ela foi categórica ao pedir que não falasse com ninguém.

Escondi o pen drive embaixo da última gaveta do guarda-roupa, mas não sei se devo deixá-lo ou se o levo comigo. Acabo voltando-o para onde estava, prendo com fita isolante no fundo da gaveta e a coloco no lugar.

— Emilly, cadê você, mulher? De cinco minutos, já se passaram quinze. — Tremo quando Evans grita do corredor e b**e na madeira da porta que deixei aberta.

— Já vou! — Grito de volta.

Saio do quarto pensando se aquele homem que passou por Margot e eu no sábado, acaso desconfiou de que ela havia me entregado o objeto e mandou alguém roubar minha bolsa. É bem possível que sim. Claro que é. Caso contrário, estou começando a ficar paranoica, criando teorias da conspiração.

Evans b**e o pé no assoalho, segurando a maçaneta e olhando a tela do celular que tem em sua a mão livre.

— Vamos, mulher, estamos atrasados. Você é a chefe, mas eu não. — Ao olhar meu rosto, franze a testa e me sinto gelar por dentro. Que droga! Pensei que estava sendo boa atriz, escondendo o alvoroço que revirava minha cabeça. — Não ia retocar a maquiagem? Você nem passou batom. — Para minha sorte, a preocupação dele é minha cara de fantasma. Aponta por cima do meu ombro e ordena. — Pode voltar, não vou deixar você sair com essa cara de água de miojo pra rua afora. Eu hein. 

Volto apressada até o banheiro. Ao me olhar no espelho dou razão para Cristiano não ter voltado a olhar para mim nem para se despedir, que horror! Acabo rindo sozinha desse pensamento que me ocorre. Passo o batom que fica no estojo de maquiagens sobre a pia, retoco o pó e saio.

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