A primeira coisa que percebo é o cheiro. Um perfume forte, adocicado demais. Não é meu.
Meus olhos se abrem devagar. A luz é baixa. Os lençóis, desconhecidos. E o teto... definitivamente não é o da minha casa. Meu corpo está dolorido, como se eu tivesse dançado a noite inteira ou brigado com o mundo. Talvez as duas coisas. Minhas pernas doem. Meus lábios ardem. Há uma nota de cinquenta dobrada no bolso da minha jaqueta. Não lembro de tê-la colocado ali. A sensação de vazio no peito é mais familiar do que eu gostaria de admitir. — Que dia é hoje? — murmuro, tentando encontrar respostas que nunca vêm. Levanto cambaleando, tentando montar o quebra-cabeça da noite anterior. Mas tudo que encontro são peças que não se encaixam: um salto quebrado no chão, um copo de uísque pela metade, uma gargalhada que ainda ecoa na minha cabeça, mas que não é minha. Foi ela de novo. A mulher que vive dentro de mim. A que desperta quando eu apago. Não sei o nome dela. Só sei que, quando ela assume, eu desapareço. E quando volto, é como se tivesse vivido uma vida que não é minha. Mas as consequências... essas, ela sempre deixa pra mim. Queria contar pra alguém. Dizer que estou perdendo o controle. Que tenho medo. Mas como explicar ao mundo que há uma outra eu vivendo em segredo... ...e que, no fundo, eu a invejo? Sento na beira da cama e apoio o rosto nas mãos. Meus dedos tremem. Não sei se é medo ou cansaço. Talvez os dois. Fecho os olhos por um instante... e sou engolida pelas lembranças. O cheiro de sabão barato. O som das freiras andando de salto pelos corredores. As meninas brigando pelo cobertor mais quente. E eu... sempre no canto, com um livro no colo e a cabeça cheia de perguntas que ninguém queria responder. "Você não tem pais", disseram. "Mas vai crescer forte." Forte. Aprendi cedo que ser forte significava calar a dor. Significava não perguntar por que ninguém veio me buscar. Significava sorrir quando outra criança era adotada e eu ficava para trás. Lembro do dia em que fiz onze anos. Ganhei um bolo pequeno e uma vela torta. Fiz um pedido em silêncio. Não por uma família. Nem por amor. Pedi para deixar de sentir. Desde então, aprendi a me proteger com distância. A me esconder no barulho da rotina. A ocupar cada hora do dia para não ouvir o que sussurra dentro de mim à noite. Mas ela ouve. Ela sente. Ela existe. E quanto mais eu tento ignorar... mais forte ela se torna. Demoro um pouco até conseguir me levantar. Meu corpo pesa como se estivesse carregando algo invisível — ou como se ela ainda estivesse aqui, presa à minha pele. Me visto com pressa. Tento ignorar o gosto metálico na boca e o roxo escondido sob a gola da blusa. Um táxi passa, e eu aceno, quase com vergonha. O motorista me encara pelo retrovisor como se visse algo que nem eu sei o que é. Talvez ele veja. A cidade ainda dorme. O céu está pálido, tingido por um azul frio que corta a alma. Quando o carro para em frente ao meu prédio, fico um instante observando as janelas acesas. Não sei se alguém me espera. E sei que ninguém vai notar se eu sumir. Abro a porta do pequeno apartamento e sou recebida pelo silêncio. Meu lugar seguro — ou pelo menos era. Um quarto apertado, uma cozinha mal iluminada e pilhas de livros de enfermagem espalhados pela mesa. É a vida que construí sozinha. Mas às vezes parece que nem é minha. Jogo a bolsa no sofá e vou direto ao banheiro. Preciso ver meu rosto. Ver se ainda sou eu. O espelho devolve uma imagem borrada: rímel escorrido, cabelo bagunçado, olhos... estranhos. — O que você fez essa noite? — murmuro. A pergunta ecoa pelas paredes. Pego o celular. Nenhuma mensagem. Nenhuma chamada perdida. Mas há algo estranho. Um número desconhecido. Uma foto. Um nome salvo como “Vermelho”. E um endereço. Meu coração dispara. Não faço ideia de quem seja. Mas alguma parte de mim... sabe. Sente. Ela esteve lá. E quer que eu vá também.O uniforme da lanchonete ainda gruda no meu corpo quando chego na faculdade. O cheiro de gordura impregnado na jaqueta me dá náuseas, mas não tenho tempo — nem dinheiro — para pensar nisso agora. Trabalho, estudo, sobrevivo. E repito. A sala está quase cheia quando entro. Sento no fundo, como sempre, torcendo para que ninguém repare nas olheiras profundas ou no leve tremor das minhas mãos. — Você está um caco — diz uma voz familiar ao meu lado. Milles. Com aquele sorriso de canto e os olhos castanhos atentos demais, ele se senta ao meu lado como se já estivesse ali há horas. Milles sempre sabe quando algo não está certo. — Bom dia pra você também — murmuro, tentando brincar. — Trabalhou até tarde de novo? — É. Mais do que devia. Ele me encara, mas não insiste. Milles tem esse dom. Não pressiona, mas está sempre ali, como se bastasse. — Você precisa de uma distração — diz, tirando da mochila uma garrafa de café e me oferecendo. — Que tal uma noite de jogos hoje? Sem aula aman
— Merda! — grito, pulando da cama com o despertador apitando há pelo menos meia hora.O uniforme ainda está pendurado na cadeira, amarrotado, e a toalha que eu deveria ter lavado ontem me encara do chão com cheiro de desespero. Não dá tempo. Pulo o banho, amarro o cabelo num coque torto, escovo os dentes com uma mão e enfio o pé no tênis com a outra.A lanchonete já está abrindo quando chego, e Dona Nair me recebe com aquele olhar de julgamento que só ela sabe dar.— Atrasada. De novo.— Não vai acontecer de novo — minto com a cara mais convincente possível.Começo o turno me sentindo ainda fora do lugar. Meus olhos estão pesados, como se tivessem assistido a um filme inteiro durante a noite. E talvez tenham.O sonho — ou o que quer que tenha sido — ainda pulsa na minha cabeça como um eco surdo. A risada, o vestido vermelho, o espelho... Não eram só imagens. Tinha cheiro. Tinha gosto.A sensação de que eu realmente vivi aquilo me dá calafrios.— Marina! Mesa 4! — grita a cozinheira.P
A escuridão vai se tornando cor.Primeiro, um vermelho profundo. Como veludo. Depois, um borrão de luzes tremeluzentes, como faróis vistos à distância em uma rua molhada.Estou em um lugar que não reconheço, mas que não me assusta. A música é baixa, envolvente. Um jazz antigo, talvez. Sinto o salto dos meus sapatos contra o chão de madeira — e estranho estar usando salto, já que nunca uso.Ao meu redor, risos abafados e vozes que parecem estar sempre ao fundo, nunca claras o suficiente para eu entender.Eu caminho. Meus passos são firmes, confiantes. Meus dedos tocam o corrimão de uma escada espiral. A luz é quente, amarelada, e tudo parece girar em câmera lenta.Então, me vejo passando por um espelho. Só que não paro. Não olho de verdade. Mas sei que era eu. De um jeito que não costumo ser. Cabelos soltos, lábios pintados de um tom escuro, vestido justo. Olhar decidido.E uma frase ecoa dentro de mim, mas não sei de onde vem:"Você não precisa ter medo de quem é de verdade."Acordo c
O silêncio pesa entre nós como uma tempestade prestes a cair.— O quê?— Ela apareceu hoje de manhã. A Celine. Bateu na minha porta com o bebê no colo, disse que era meu, entregou a certidão e... foi embora.— Ela o quê?! — Dou um passo mais perto, ainda sem saber se devia rir, gritar ou sentar.— Eu também não tô conseguindo acreditar — ele diz, olhando para o pequeno rolinho de cobertor no sofá, que até então eu não tinha notado. — Marina, esse é o Yves. Ele tem dois meses.Me aproximo devagar. O bebê dorme, bochechas rosadas, as mãozinhas fechadas como se segurassem o universo inteiro.— Ele é... lindo — murmuro, sentindo algo dentro de mim que não sei nomear.Milles sorri com um misto de orgulho e pavor.— Tentei montar o berço, mas... — ele aponta para a bagunça de parafusos e tábuas. — Eu não consigo nem entender o manual.Suspiro, tirando o casaco.— Então vamos lá, pai de primeira viagem. Me passa a chave Philips.Enquanto montamos o berço, ele me conta tudo. O sumiço repentin
A manhã estava clara, sem pressa. O tipo de dia que me convida a andar sem rumo, só ouvindo o som dos meus passos contra o chão da cidade.Dobrei a esquina e avistei a pequena confeitaria, com sua fachada azul-clara e cortinas brancas. Era meu refúgio desde os dezoito. Ninguém me incomodava ali. Ninguém fazia perguntas.Empurrei a porta e fui recebida pelo aroma de café fresco, açúcar queimado e alguma torta de maçã que acabara de sair do forno. Sorri sem pensar.— A mulher do pudim chegou — anunciou Liam, atrás do balcão, enquanto polia uma xícara. Seu avental branco estava torto, como sempre.— E o funcionário mais irônico da cidade ainda trabalha aqui? — retruquei, divertida.— Infelizmente pra mim, sim. — Ele piscou. — Mesa de sempre?— Você ainda pergunta?— É só protocolo, Marina. Eu sou muito profissional. — Ele girou nos calcanhares e seguiu para a cozinha.Me sentei na minha mesa, a do canto, encostada à janela. Era quase automática aquela rotina, como um ritual secreto entre
A cidade à noite tem um gosto diferente. Mais denso. Mais real.As luzes borradas dos postes dançavam nas janelas do táxi, enquanto eu passava o batom com um toque firme, segura. Nenhuma hesitação. Marina jamais entenderia o que é andar por essas ruas com poder nas pontas dos dedos e nos saltos. Mas eu entendia.— Tem certeza que quer descer aqui? — o motorista pergunta, hesitante, olhando pelo retrovisor.Sorrio. Um daqueles sorrisos que confundem e perturbam.— Absoluta.Desço antes da entrada do clube. Meu salto ecoa pelo asfalto. O vestido vermelho colado ao corpo atrai olhares sem nenhum esforço, e eu absorvo cada um como se fossem energia líquida.Luzes néon pintam a calçada. “Club Stigma”, o letreiro pulsa como um coração noturno. Entro sem fila — o segurança apenas assente, como se soubesse quem eu sou, ou talvez só sentisse que era melhor não questionar.Lá dentro, a batida eletrônica preenche o ar. Rostos, corpos, promessas não ditas. Peço uma dose dupla no bar e observo.Eu
O despertador tocou com seu som irritante e metálico, arrancando-me de um sono pesado. Abri os olhos devagar, o corpo dolorido como se tivesse atravessado a madrugada inteira acordada.Sentei-me na cama, o quarto ainda mergulhado na penumbra. O relógio marcava 6h47.“Droga. A prova.”Levei as mãos ao rosto, tentando me recompor. A cabeça latejava. Eu me sentia... estranha. Como se tivesse vivido algo intenso enquanto dormia, mas as imagens escapavam da minha mente como areia entre os dedos.Um beco. Um sussurro. O gosto de bebida. A sensação da música vibrando sob a pele.Pisquei várias vezes, tentando afastar o torpor. Levantei, quase tropeçando no próprio chinelo. No banheiro, encarei meu reflexo: o rosto estava normal, nada fora do lugar... mas havia algo nos meus olhos. Uma expressão que eu não reconhecia.“Sonhos esquisitos de novo?”Lavei o rosto com água gelada, como se pudesse acordar completamente daquela sensação. Quando voltei ao quarto, abri o caderno de anatomia deixado s
O sol já se despedia quando ajeitei a manta sobre Yves, garantindo que ele estivesse quentinho no carrinho. O bebê dormia profundamente, os pequenos lábios entreabertos, as bochechas coradas. Era impossível não sorrir.Milles surgiu da cozinha com um prato de macarrão instantâneo e duas garrafas de refrigerante.— Jantar de pai solo — disse, sentando-se no sofá. — Não julgue.— Estou te ajudando a criar um ser humano. A última coisa que farei é julgar seu macarrão — peguei o prato dele e provei uma garfada. — Hm. Comível. Para um zumbi faminto.Milles fingiu uma expressão ofendida, mas riu em seguida. Comemos em silêncio por alguns minutos, compartilhando o tipo de calmaria que só existe entre velhos amigos.— Você nunca pensou em ter filhos? — ele perguntou de repente.Desviei o olhar, como se a pergunta me empurrasse para um canto do passado.— Já pensei, sim. Mas... nunca consegui me imaginar criando alguém sem saber quem eu sou de verdade.Ele franziu a testa, tentando entender.—