As peças do jogo estavam espalhadas pela mesa de centro, mas ninguém parecia se importar. A pizza esfriava na caixa aberta, os copos meio vazios refletiam a luz suave do abajur e as risadas ecoavam entre nós. Yves, no meu colo, gargalhava a cada careta que eu fazia, os olhos pequenos brilhando com aquela alegria pura que só os bebês têm.— Ei, não destrói minha torre! — reclamei, rindo, enquanto ele derrubava pela terceira vez o castelo improvisado de peças.— Acho que ele já decidiu o lado dele na guerra — comentou Milles, sorrindo da cozinha enquanto pegava mais guardanapos.Luca, sentado no tapete, observava a cena com um interesse discreto. Era a primeira vez que participava de um encontro como aquele, mais íntimo, mais caseiro — e estava surpreso por não se sentir deslocado. Havia uma naturalidade em tudo. No caos leve da sala, no som do bebê rindo, nos olhares trocados entre nós.— Ele parece gostar de você, Marina — disse Luca, gesticulando com o queixo em direção a Yves. — Fic
ENTRE ROTINAS E ESCOLHASAcordei com o som do despertador tocando insistentemente. Ainda era escuro lá fora, e o vento gelado escapava por entre as frestas da janela. Estiquei o braço, desligando o alarme com um suspiro preguiçoso. Mais um dia.A cozinha cheirava a café fresco enquanto eu esquentava uma fatia de pão no grill. Meus movimentos já automáticos — preparar a mochila, separar os livros da aula da noite, revisar mentalmente o que precisava fazer no trabalho. O tempo parecia escorrer entre os dedos.A lanchonete estava movimentada, como sempre. Fui recebida com os bons-dias apressados dos colegas e o som da cafeteira funcionando sem parar. Passei horas entre bandejas, pedidos e clientes apressados, sorrindo mecanicamente e tentando não derrubar nada, mesmo com o cansaço acumulado da semana.No intervalo, sentei na área de descanso dos funcionários, com um café ralo e meu caderno de anatomia. Era quase poético estudar o corpo humano entre pedidos de hambúrguer e batata frita. Q
Ainda deitada na cama, encarei a tela do celular por vários minutos. A mensagem de Milles piscava ali, com o peso de uma decisão que poderia mudar muita coisa. Ele precisava aceitar a proposta de trabalho fora do país — uma chance única — mas Yves, seu filho de apenas três meses, não podia ir com ele.“É só por um tempo. Eu não confio em deixá-lo com qualquer pessoa. Confio em você.”Respirei fundo, os dedos hesitando sobre o teclado. Então digitei:"Pode deixar ele comigo. Vai ficar tudo bem. Boa sorte com a entrevista."Apertei “enviar” e encarei a mensagem enviada como se ela pudesse desdobrar o futuro ali mesmo. A decisão estava tomada.---A manhã foi tomada por uma movimentação diferente no apartamento. Limpei com atenção os cantos, forrei o sofá, separei mantas e panos de boca com a sensação de estar preparando um pequeno santuário. Esterilizei mamadeiras que Milles prometera trazer e improvisei uma caminha baixa com almofadas e mantas no quarto, ao lado da minha cama. Coloquei
Era pouco mais de duas da manhã quando acordei com o choro. Demorei um segundo para lembrar que não estava sozinha, que aquele som agudo e insistente vinha do pequeno ser dormindo a poucos passos da minha cama.— Calma, amor... tô aqui — murmurei, a voz ainda sonolenta, levantando-me com cuidado.Yves chorava de olhos fechados, os punhos erguidos como se lutasse com o ar. Peguei-o no colo com delicadeza, embalando-o contra o peito. Meu corpo reagia no automático: o coração acelerado, os olhos meio cerrados, mas os braços firmes, protetores.Verifiquei a fralda, trocando com agilidade, enquanto sussurrava coisas que nem fazia ideia se ele entendia.— A gente vai aprender isso juntos, tá bom? Não desiste de mim não.Preparar a mamadeira foi um exercício de foco entre o calor, o choro insistente e o medo de não fazer tudo certo. Coloquei a fórmula, testei a temperatura várias vezes e enfim o alimentei no silêncio da sala, sentada com ele no colo e o olhar fixo na janela. A cidade dormia,
Fazia pouco mais de um mês desde que Yves havia entrado na minha vida, e ainda me surpreendia com o quanto as coisas haviam mudado. O tempo parecia correr em uma nova medida — não mais em horas ou dias, mas em mamadas, cochilos e trocas de fralda.Naquela manhã, o apartamento estava silencioso. Yves, depois de uma madrugada mais agitada, finalmente dormira. Aproveitei o breve momento de calmaria para sentar no sofá com uma xícara de café pela metade e o notebook apoiado nas pernas. Na tela, o portal da faculdade exibia o botão vermelho que eu tentava ignorar há dias: "Solicitar trancamento de matrícula."Suspirei. Meus olhos estavam cansados, as olheiras mais fundas do que o habitual. Tinha passado as últimas semanas equilibrando turnos na lanchonete, as aulas, os cuidados com Yves e as contas que não paravam de chegar. Milles enviava ajuda sempre que podia, mas o valor mal cobria os gastos do bebê, e eu precisava lidar com o restante sozinha.Já havia reduzido minhas saídas, cortado
O som suave do choro de Yves ecoava pelo quarto quando abri os olhos. Ainda sonolenta, levei alguns segundos para processar onde estava — e com quem. Desde que Milles partiu, os dias vinham se misturando uns aos outros, cada um carregando o peso de ser tudo ao mesmo tempo: cuidadora, estudante, trabalhadora. E agora... talvez, algo mais.Me levantei devagar, sentindo o corpo pedir mais algumas horas de descanso que não viriam. Fui até o berço improvisado no canto do quarto. Yves agitava os bracinhos, o rostinho enrugado de quem exigia atenção imediata. Quando me viu, seus olhos se suavizaram, e um som quase risonho escapou de seus lábios.— Você nunca dorme até tarde, né? — sorri, pegando-o com delicadeza.Levei o bebê para a cozinha e, enquanto esquentava a mamadeira, notei algo diferente. Um envelope. Estava sobre a bancada, dobrado ao meio, sem nome ou qualquer identificação. Franzi a testa. Tinha certeza de que aquilo não estava ali na noite anterior.Com Yves ainda nos braços, pe
O som calmo da manhã preenchia o apartamento. Aproveitei os poucos minutos de silêncio enquanto a chaleira apitava suavemente e o café tomava conta do ar. No berço, Yves dormia tranquilo, com a respiração ritmada e os punhos fechados junto ao rosto.Observei a cena com carinho — uma ternura silenciosa, quase tímida. Nunca imaginei estar ali, cuidando de um bebê, mas a rotina havia se transformado, e com ela, o vínculo também. Ainda era tudo novo, frágil, como um fio de seda que eu temia puxar com força demais.Meu celular vibrou sobre a bancada. Uma mensagem de um número desconhecido:[08:04] Número Desconhecido: "Oi, Marina. Me chamo Elias. Um amigo me falou sobre você. Estou buscando uma secretária para meu escritório. Vi que você tem perfil para o cargo. Podemos conversar?"Franzi o cenho. “Um amigo.” Era sempre assim. Não era eu — era Sara. A outra. A que acordava quando eu dormia, que vivia entre brilhos de neon, perfumes caros e conversas esquecidas ao amanhecer.Respondi confir
O despertador tocou antes mesmo do sol nascer completamente. Me levantei com movimentos cuidadosos, tentando não acordar Yves, que dormia em seu berço improvisado, abraçado ao paninho azul. Meus olhos ainda ardiam do sono, mas havia algo diferente naquela manhã: não era medo. Era expectativa.Me arrumei em silêncio, vestindo a calça social escura e a blusa de tecido leve que tinha separado na noite anterior. O blazer antigo ajudava a compor a imagem que eu queria passar — alguém confiável, profissional, pronta para recomeçar. Passei um rímel discreto, prendi o cabelo e conferi o celular pela quinta vez. Vanessa chegaria em vinte minutos.Preparei uma mamadeira, deixei tudo à vista: fraldas, roupinhas extras, lenços umedecidos. Quando Vanessa bateu à porta, eu estava com a lista de instruções em mãos, mas ela sorriu com tranquilidade.— Pode ir tranquila, Marina. Ele e eu vamos nos dar bem hoje também.Sorri, agradecida, e saí.O ônibus não demorou. Passei a viagem olhando pela janela,