A manhã começou mais lenta do que o habitual. O despertador tocou às sete, mas só consegui sair da cama quase meia hora depois. Yves resmungava no berço, chutando o paninho azul como se estivesse protestando contra o novo dia.
— Eu também não tô com vontade de levantar, sabia? — murmurei, com a voz ainda rouca, enquanto o pegava no colo.Ele se acomodou no meu peito com aquele calorzinho de quem não cobra nada, mas exige tudo — e eu deixei. Ficamos ali por alguns minutos, enrolados sob a luz suave que entrava pela janela, respirando o mesmo ar.Depois de prepará-lo, arrumei o básico para a Vanessa e deixei um bilhete com as instruções do dia. Como sempre, ela chegou pontualmente, com o sorriso calmo e os passos silenciosos.— Ele dormiu bem? — ela perguntou, tirando a jaqueta.— Dormiu. Mas eu... não.Ela apenas assentiu, como quem entende sem exigir explicações.Eu precisava estar no estúdio antes das nove. Tinha sido cOs vidros do ônibus refletiam a cidade de um jeito embaçado. Luzes amareladas misturadas com o céu nublado, carros se arrastando no trânsito como se estivessem presos no tempo. Encostei a cabeça na janela, sentindo o frescor do vidro contra a pele, e por um instante quase cochilei.Quase.Yves estava com Vanessa naquela tarde. Depois da sessão de fotos e do turbilhão da semana anterior, eu precisava de algumas horas sozinha. Não exatamente para descansar — eu já sabia que isso era luxo — mas para andar sem pressa, sem horários, sem fraldas na bolsa ou listas mentais de compras urgentes.Desci duas quadras antes do ponto de costume, só para mudar o caminho. As ruas estavam quietas, o tipo de silêncio urbano que parece sussurrar segredos pelas calçadas. Meus passos ressoavam baixos, e tudo parecia suspenso.Foi quando passei em frente à vitrine da “Galeria Armand”.Parei.Ali, pendurado sob uma luz direcionada, estava um colar idên
Meus pés me levaram até lá antes que eu pudesse tomar uma decisão consciente. Quando percebi, estava na frente da confeitaria de fachada azul-clara, encarando a porta de vidro como se ela fosse um portal entre mundos. E talvez fosse.O sino tilintou quando empurrei a porta, e o som soou mais alto do que de costume — ou talvez fosse só dentro de mim. Tudo estava mais alto, mais colorido, mais… carregado. O cheiro de canela, baunilha e café veio como um soco doce no estômago. Me fez fechar os olhos por um segundo. Um segundo só.— Você tá com uma cara de quem viu um fantasma — disse Liam, já me observando do balcão.— Eu… talvez tenha visto — murmurei, tentando forçar um sorriso.Ele ergueu uma sobrancelha.— Mesa de sempre?Assenti, sem forças pra inventar ousadia hoje.Me sentei devagar, como se meu corpo pesasse o triplo. A cadeira de madeira era firme, mas tudo em mim parecia querer desabar. Apoiei os cotovelos na mesa
O celular vibrou sobre a mesa enquanto eu terminava de organizar as roupinhas de Yves na cômoda. Era sábado, fim de tarde, e o apartamento estava envolto naquele silêncio raro que só se instalava quando o bebê dormia profundamente.Olhei a tela.[18:37] Milles: “Posso te ligar daqui a pouco?”Fazia dias desde a última mensagem. Curtas, sempre. Objetivas. Quase como se ele tentasse manter uma presença mínima, sem se envolver demais.[18:38] Marina: “Claro. Yves acabou de dormir.”Esperei com o celular na mão por longos minutos. Caminhei pela sala, dei uma ajeitada no tapete, conferi pela terceira vez se a mamadeira da madrugada já estava pronta. E quando finalmente o aparelho tocou, o som me fez pular.— Oi — atendi, tentando soar natural.— Oi, Ma. Tá tudo bem por aí?A voz dele vinha limpa, como se estivesse num ambiente calmo. Sem ruídos, sem pressa. Havia algo estranho ali — uma leveza que não combinava com a
A noite caiu devagar, como se tivesse pena de mim.A luz da cozinha ficou acesa mais tempo do que o necessário. A mamadeira lavada, a bancada limpa, o chão varrido — tudo em ordem, menos eu. Yves dormia no quarto com um pé pra fora da coberta, o paninho azul grudado no queixo. E mesmo que eu soubesse que deveria deitar, fechar os olhos e tentar descansar, algo em mim se recusava a parar.Ainda estava vibrando com a ligação de Milles. Com o que ele disse — e com o que não disse.As palavras dele, tão suaves e disfarçadas de gratidão, ainda ecoavam como um abandono travestido de gentileza. Eu sabia que isso aconteceria. Que ele, aos poucos, se afastaria até virar uma lembrança que responde mensagens com emojis e transferências bancárias esporádicas. Mas saber não é o mesmo que aceitar.Peguei o celular. Rolei a tela sem intenção. Redes sociais, nada novo. Notícias que eu não queria ler. Conversas arquivadas.E então vi o nome.Lore
A primeira coisa que percebo é o cheiro. Um perfume forte, adocicado demais. Não é meu.Meus olhos se abrem devagar. A luz é baixa. Os lençóis, desconhecidos. E o teto... definitivamente não é o da minha casa.Meu corpo está dolorido, como se eu tivesse dançado a noite inteira ou brigado com o mundo. Talvez as duas coisas. Minhas pernas doem. Meus lábios ardem. Há uma nota de cinquenta dobrada no bolso da minha jaqueta. Não lembro de tê-la colocado ali.A sensação de vazio no peito é mais familiar do que eu gostaria de admitir.— Que dia é hoje? — murmuro, tentando encontrar respostas que nunca vêm.Levanto cambaleando, tentando montar o quebra-cabeça da noite anterior. Mas tudo que encontro são peças que não se encaixam: um salto quebrado no chão, um copo de uísque pela metade, uma gargalhada que ainda ecoa na minha cabeça, mas que não é minha.Foi ela de novo.A mulher que vive dentro de mim.A que desperta quando eu apago.Não sei o nome dela. Só sei que, quando ela assume, eu desa
O uniforme da lanchonete ainda gruda no meu corpo quando chego na faculdade. O cheiro de gordura impregnado na jaqueta me dá náuseas, mas não tenho tempo — nem dinheiro — para pensar nisso agora. Trabalho, estudo, sobrevivo. E repito. A sala está quase cheia quando entro. Sento no fundo, como sempre, torcendo para que ninguém repare nas olheiras profundas ou no leve tremor das minhas mãos. — Você está um caco — diz uma voz familiar ao meu lado. Milles. Com aquele sorriso de canto e os olhos castanhos atentos demais, ele se senta ao meu lado como se já estivesse ali há horas. Milles sempre sabe quando algo não está certo. — Bom dia pra você também — murmuro, tentando brincar. — Trabalhou até tarde de novo? — É. Mais do que devia. Ele me encara, mas não insiste. Milles tem esse dom. Não pressiona, mas está sempre ali, como se bastasse. — Você precisa de uma distração — diz, tirando da mochila uma garrafa de café e me oferecendo. — Que tal uma noite de jogos hoje? Sem aula aman
— Merda! — grito, pulando da cama com o despertador apitando há pelo menos meia hora.O uniforme ainda está pendurado na cadeira, amarrotado, e a toalha que eu deveria ter lavado ontem me encara do chão com cheiro de desespero. Não dá tempo. Pulo o banho, amarro o cabelo num coque torto, escovo os dentes com uma mão e enfio o pé no tênis com a outra.A lanchonete já está abrindo quando chego, e Dona Nair me recebe com aquele olhar de julgamento que só ela sabe dar.— Atrasada. De novo.— Não vai acontecer de novo — minto com a cara mais convincente possível.Começo o turno me sentindo ainda fora do lugar. Meus olhos estão pesados, como se tivessem assistido a um filme inteiro durante a noite. E talvez tenham.O sonho — ou o que quer que tenha sido — ainda pulsa na minha cabeça como um eco surdo. A risada, o vestido vermelho, o espelho... Não eram só imagens. Tinha cheiro. Tinha gosto.A sensação de que eu realmente vivi aquilo me dá calafrios.— Marina! Mesa 4! — grita a cozinheira.P
A escuridão vai se tornando cor.Primeiro, um vermelho profundo. Como veludo. Depois, um borrão de luzes tremeluzentes, como faróis vistos à distância em uma rua molhada.Estou em um lugar que não reconheço, mas que não me assusta. A música é baixa, envolvente. Um jazz antigo, talvez. Sinto o salto dos meus sapatos contra o chão de madeira — e estranho estar usando salto, já que nunca uso.Ao meu redor, risos abafados e vozes que parecem estar sempre ao fundo, nunca claras o suficiente para eu entender.Eu caminho. Meus passos são firmes, confiantes. Meus dedos tocam o corrimão de uma escada espiral. A luz é quente, amarelada, e tudo parece girar em câmera lenta.Então, me vejo passando por um espelho. Só que não paro. Não olho de verdade. Mas sei que era eu. De um jeito que não costumo ser. Cabelos soltos, lábios pintados de um tom escuro, vestido justo. Olhar decidido.E uma frase ecoa dentro de mim, mas não sei de onde vem:"Você não precisa ter medo de quem é de verdade."Acordo c