Início / Romance / Entre Sombras e Desejos / O mundo lá fora não sabe de nada
O mundo lá fora não sabe de nada

O uniforme da lanchonete ainda gruda no meu corpo quando chego na faculdade. O cheiro de gordura impregnado na jaqueta me dá náuseas, mas não tenho tempo — nem dinheiro — para pensar nisso agora.

Trabalho, estudo, sobrevivo. E repito.

A sala está quase cheia quando entro. Sento no fundo, como sempre, torcendo para que ninguém repare nas olheiras profundas ou no leve tremor das minhas mãos.

— Você está um caco — diz uma voz familiar ao meu lado.

Milles.

Com aquele sorriso de canto e os olhos castanhos atentos demais, ele se senta ao meu lado como se já estivesse ali há horas. Milles sempre sabe quando algo não está certo.

— Bom dia pra você também — murmuro, tentando brincar.

— Trabalhou até tarde de novo?

— É. Mais do que devia.

Ele me encara, mas não insiste. Milles tem esse dom. Não pressiona, mas está sempre ali, como se bastasse.

— Você precisa de uma distração — diz, tirando da mochila uma garrafa de café e me oferecendo. — Que tal uma noite de jogos hoje? Sem aula amanhã, lembra? Eu, você, pizza e meu tabuleiro de "Reinos e Ruínas".

— Vai tentar me fazer perder de novo? — arqueio a sobrancelha, aceitando o café como se fosse um prêmio.

— Eu? Jamais. A senhorita é que se distrai fácil com os meus encantos.

Dou uma risada curta. Sincera. Coisa rara ultimamente.

— Tá bom, Milles. Hoje à noite. Mas só se tiver dado de vinte lados envolvido.

— Sempre tem — ele diz, piscando.

Por um instante, tudo parece normal.

Por um instante, eu me esqueço da mulher que vive em mim.

Mas o instante passa rápido demais. Porque, mesmo ali, mesmo rindo com ele, sinto... como se alguém me observasse.

Como se uma parte de mim estivesse acordada. E impaciente para sair.

---

A noite chega com cheiro de pizza, risadas e copos de refrigerante derramando pelas bordas da mesa. Milles estava certo — eu precisava disso.

— Ok, Marina. Essa jogada define se os camponeses fogem ou se são devorados por goblins. Escolha com sabedoria — ele diz com a voz dramática de sempre, empurrando o dado na minha direção.

— É só um dado, Milles.

— Não. É o dado.

Dou risada. Toda vez que ele entra no modo narrador épico, meu estômago solta um riso involuntário. É ridículo. E é perfeito.

A jogada é péssima, como sempre. Os camponeses morrem. Eu lamento, ele celebra. E a noite segue leve, como se eu não tivesse acordado em um lugar estranho naquela manhã. Como se minha vida fosse apenas isso: faculdade, trabalho e aventuras em mundos imaginários.

— A gente devia fazer isso mais vezes — digo, apoiando o queixo na almofada.

— A gente sempre devia fazer isso mais vezes — ele sorri. — Vai dormir aqui? Já são quase duas da manhã.

— Não. Amanhã eu abro a lanchonete cedo. Melhor ir pra casa.

Ele me acompanha até a porta, ainda com a caixa de pizza na mão.

— Você anda meio distante, sabe? Mas... quando quiser falar, tô aqui.

— Eu sei — respondo. E é verdade.

Volto pra casa com a barriga cheia e o coração um pouco mais leve. Tomo um banho rápido, deixo a luz do abajur acesa e me enrolo no cobertor, ainda sentindo o cheiro de orégano nas mãos.

E então, durmo.

---

A rua está molhada. Choveu, talvez. As luzes estão borradas, distorcidas, como numa pintura mal feita.

Eu caminho com passos firmes. Sapatos altos, vestido colado. Batom vermelho.

Vejo um homem sorrindo. Alto, barba mal feita, olhos vazios demais. Ele diz algo, mas não entendo. Ou talvez não queira entender.

Meus dedos tocam seu peito. Ele engasga com o riso. Meu corpo se move com uma confiança que nunca senti acordada. Como se eu soubesse exatamente o que estava fazendo. Como se... eu tivesse feito isso antes.

Um quarto. Um espelho. Uma risada que não é minha.

— Boa garota — ele sussurra.

E eu sorrio.

Mas quando me vejo no reflexo, não sou eu.

Não exatamente.

Acordo com o coração disparado, coberta em suor frio.

O quarto está em silêncio.

Mas ainda ouço a risada.

Continue lendo este livro gratuitamente
Digitalize o código para baixar o App

Capítulos relacionados

Último capítulo

Explore e leia boas novelas gratuitamente
Acesso gratuito a um vasto número de boas novelas no aplicativo BueNovela. Baixe os livros que você gosta e leia em qualquer lugar e a qualquer hora.
Leia livros gratuitamente no aplicativo
Digitalize o código para ler no App