A noite caiu devagar, como se tivesse pena de mim.
A luz da cozinha ficou acesa mais tempo do que o necessário. A mamadeira lavada, a bancada limpa, o chão varrido — tudo em ordem, menos eu. Yves dormia no quarto com um pé pra fora da coberta, o paninho azul grudado no queixo. E mesmo que eu soubesse que deveria deitar, fechar os olhos e tentar descansar, algo em mim se recusava a parar.Ainda estava vibrando com a ligação de Milles. Com o que ele disse — e com o que não disse.As palavras dele, tão suaves e disfarçadas de gratidão, ainda ecoavam como um abandono travestido de gentileza. Eu sabia que isso aconteceria. Que ele, aos poucos, se afastaria até virar uma lembrança que responde mensagens com emojis e transferências bancárias esporádicas. Mas saber não é o mesmo que aceitar.Peguei o celular. Rolei a tela sem intenção. Redes sociais, nada novo. Notícias que eu não queria ler. Conversas arquivadas.E então vi o nome.LoreO céu estava alaranjado quando desci do ônibus. O dia tinha sido pesado — não de tragédias, mas de acúmulos. Trabalho, planilhas, fraldas esquecidas na bolsa, e uma dor leve nas costas que vinha me acompanhando como uma velha amiga mal-humorada.Mas naquele instante, tudo isso parecia dissolver um pouco com o vento fresco da noite.Caminhei até a confeitaria com passos lentos, quase cuidadosos. Como se o momento precisasse ser protegido de mim mesma. O sino tocou quando entrei, e, por reflexo, meus olhos buscaram a mesa do canto.Ele já estava lá.Lorenzo.Camisa preta, mangas dobradas até os antebraços, o cabelo solto, caindo um pouco sobre o rosto. Estava com os dedos entrelaçados ao redor da xícara de café, o olhar perdido pela janela — mas não distante. Era um olhar de quem está onde quer estar.E por algum motivo, aquilo me tocou mais do que eu esperava.— Achei que eu fosse chegar antes — murmurei, me aproximando.<
A cidade muda quando dorme. As buzinas somem, as luzes perdem a pressa, e até o vento parece andar mais devagar. É como se o mundo segurasse a respiração, só por algumas horas, pra dar espaço ao que não consegue existir durante o dia. Era quase duas da manhã quando me levantei da cama sem pensar. O quarto estava mergulhado naquela escuridão azulada que antecede o amanhecer, e Yves dormia com o punho fechado sobre o rosto, em paz. Tudo nele era calmo, macio, inteiro. Um mundo que dependia do meu. Mas naquela madrugada... meu mundo tinha outras vozes. Fui até a cozinha no escuro. Não acendi nenhuma luz. Apenas deixei a claridade da rua filtrar pelas frestas da janela. A cidade lá fora parecia me observar — atenta, silenciosa, cúmplice. Abri a geladeira, bebi um gole de água e encarei meu próprio reflexo no vidro da porta. Era eu, mas... não só eu. Os olhos estavam mais fundos, mais vivos. Como se outra versão minha tivesse acordado junto. Sara. Ela não precisava dizer nada. Eu a
Voltei à confeitaria numa manhã de céu pálido e vento morno, o tipo de dia que parece pedir silêncio e colheradas lentas de pudim. Yves estava na creche da comunidade do bairro por algumas horas — um respiro novo, conquistado com esforço e alguma ajuda de Vanessa. Eu precisava de tempo. Mas, mais do que isso, precisava de ar. Liam sorriu quando me viu. — Mesa de sempre? — perguntou, já indo pegar a bandeja. Assenti com um aceno curto. Não era o tipo de dia em que as palavras fluíam facilmente. O sino da porta tocava atrás de mim de tempos em tempos, mas eu não olhava. A cidade seguia lá fora, como uma coreografia repetida, e aqui dentro, havia calor, cheiro de baunilha e aquele leve conforto que só lugares que nos veem por inteiro conseguem oferecer. O pudim chegou primeiro, depois o café com canela. Um pequeno luxo semanal que vinha se tornando ritual. Abri o caderno no colo, fingindo rascunhar algo, mas meus olhos permaneciam no vidro embaçado da janela. Foi só quando ouvi a p
Voltei pra casa andando devagar, como se cada passo ainda carregasse o eco da conversa com Lorenzo. O céu estava mais escuro do que eu lembrava, mas havia uma leve brisa, dessas que parecem segurar a gente no lugar, pedindo silêncio antes da próxima decisão. Yves estava com Vanessa, e o apartamento estava mergulhado numa paz frágil quando cheguei. Aquela ausência de barulho que não é exatamente solidão, mas quase. Tirei os sapatos e fui direto pro quarto, como se ainda estivesse seguindo alguma trilha invisível deixada por ele — Lorenzo. A forma como me olhou. A calma na voz. A frase final, que ainda ecoava em mim: “Continue escrevendo. Às vezes, é assim que a gente entende o que sente.” Me sentei na cama com o caderno no colo e uma caneta já na mão. Mas não escrevi. Fiquei ali, olhando a página em branco. E então comecei a desenhar. Primeiro os traços soltos. Ombros largos. Um coque frouxo. Um olhar firme demais pra ser inventado. E depois, quase sem querer, minha mão desenhou
A manhã estava estranhamente leve. Yves tinha dormido bem — um milagre recente — e eu o havia deixado na creche da comunidade com a sensação de que, por algumas horas, o mundo podia respirar sem urgência. Cheguei ao escritório antes das nove, como sempre. A pequena sala compartilhada estava vazia, exceto pela pilha de pastas que alguém — provavelmente Rafael — deixara desleixadamente em cima da impressora. Liguei meu computador, ajustei a cadeira e comecei a revisar os e-mails do dia. Mais uma manhã de respostas automáticas, planilhas cinzentas e protocolos que pareciam se repetir infinitamente. Mas por algum motivo, eu estava inquieta. Meus dedos passavam pelas teclas sem real urgência, como se meu corpo estivesse ali, mas minha cabeça... não. > “Olá, Marina. Pode verificar os dados da apresentação do Elias para amanhã? A cliente de Milão pediu ajustes.” Suspirei. Traduzi, revisei, formatei. Tudo no piloto automático. A rotina, por mais estável que fosse, já não era suficien
Voltei da creche com Yves aninhado no meu colo, já quase dormindo, o rosto afundado no meu ombro como se o dia tivesse sido grande demais para ele. Meus passos eram lentos pela calçada, mais pelo turbilhão que ainda girava dentro de mim do que por cansaço físico. Leonardo. Ainda parecia surreal. Depois de todos esses anos, de tantas versões de mim mesma que eu fui criando, encontrar aquele pedaço da infância — vivo, sorrindo, real — bagunçava algo profundo. E ao mesmo tempo, era como se uma peça tivesse voltado pro lugar. Como se a Marina de antes me desse a mão por alguns instantes. Yves soltou um resmungo baixinho. Afaguei suas costas com delicadeza e beijei o topo de sua cabeça. — Tá tudo bem, pequeno. A gente só tá atravessando memórias — murmurei, mais pra mim do que pra ele. Em vez de ir direto pra casa, tomei o caminho da confeitaria. Como um ímã. Um refúgio. Um entrelugar onde eu podia respirar entre o que fui e o que estava tentando ser. --- Cheguei à confeita
As noites voltaram a ser silenciosas — não porque a vida ficou mais fácil, mas porque Yves, enfim, entrou numa nova fase. Dormia melhor, acordava menos, aceitava o colo sem exigir explicações do mundo. Eu ainda me surpreendia com a forma como aquele pequeno corpo ocupava tanto espaço dentro de mim. E mesmo assim, sempre sobrava um canto. Um canto onde Lorenzo começava a morar. Voltei à rotina com mais firmeza: trabalho de segunda a sexta, creche de manhã, turnos apertados, contas pagas no limite. Vanessa seguia me ajudando com uma leveza que eu agradecia todos os dias em silêncio. E à noite, depois que Yves dormia, eu me sentava com o caderno no colo, a caneta na mão, o café já frio na caneca esquecida na prateleira. Foi numa dessas noites que percebi. Entre listas, anotações soltas e tentativas frustradas de textos, havia desenhos. Rabiscos de alguém com olhos fundos. Traços firmes. Ombros largos. Um coque baixo, às vezes solto, às vezes não. Um perfil com a mandíbula marcada
A mensagem de Leonardo chegou no fim da tarde, entre um e-mail ignorado do trabalho e a terceira tentativa de Yves dormir. > [17:48] Leo: “Ei, baixinha. Vai estar livre amanhã à tarde? Tem alguém que quero te apresentar. Vai curtir.” Sorri. “Baixinha.” Ele era o único que ainda me chamava assim. Respondi com um simples: > [17:49] Marina: “Livre depois das 14h. Onde?” A localização veio em seguida. Um estúdio de tatuagem discreto, no centro antigo da cidade. No dia seguinte, deixei Yves com Vanessa. Dei as instruções habituais, com aquele aperto no peito de quem sabe que o mundo gira quando a gente vira as costas — mas fui. O estúdio era num prédio antigo com escadas estreitas, cheiro de tinta e música baixa ecoando nos corredores. As paredes estavam cobertas por quadros e esboços. Um universo inteiro de cor, sombra e arte urbana pulsando contra o cinza da cidade. Leo me esperava na porta, braços cruzados, com uma expressão que os anos não mudaram — o mesmo sorriso torto,