Voltei à confeitaria numa manhã de céu pálido e vento morno, o tipo de dia que parece pedir silêncio e colheradas lentas de pudim. Yves estava na creche da comunidade do bairro por algumas horas — um respiro novo, conquistado com esforço e alguma ajuda de Vanessa. Eu precisava de tempo. Mas, mais do que isso, precisava de ar. Liam sorriu quando me viu. — Mesa de sempre? — perguntou, já indo pegar a bandeja. Assenti com um aceno curto. Não era o tipo de dia em que as palavras fluíam facilmente. O sino da porta tocava atrás de mim de tempos em tempos, mas eu não olhava. A cidade seguia lá fora, como uma coreografia repetida, e aqui dentro, havia calor, cheiro de baunilha e aquele leve conforto que só lugares que nos veem por inteiro conseguem oferecer. O pudim chegou primeiro, depois o café com canela. Um pequeno luxo semanal que vinha se tornando ritual. Abri o caderno no colo, fingindo rascunhar algo, mas meus olhos permaneciam no vidro embaçado da janela. Foi só quando ouvi a p
Voltei pra casa andando devagar, como se cada passo ainda carregasse o eco da conversa com Lorenzo. O céu estava mais escuro do que eu lembrava, mas havia uma leve brisa, dessas que parecem segurar a gente no lugar, pedindo silêncio antes da próxima decisão. Yves estava com Vanessa, e o apartamento estava mergulhado numa paz frágil quando cheguei. Aquela ausência de barulho que não é exatamente solidão, mas quase. Tirei os sapatos e fui direto pro quarto, como se ainda estivesse seguindo alguma trilha invisível deixada por ele — Lorenzo. A forma como me olhou. A calma na voz. A frase final, que ainda ecoava em mim: “Continue escrevendo. Às vezes, é assim que a gente entende o que sente.” Me sentei na cama com o caderno no colo e uma caneta já na mão. Mas não escrevi. Fiquei ali, olhando a página em branco. E então comecei a desenhar. Primeiro os traços soltos. Ombros largos. Um coque frouxo. Um olhar firme demais pra ser inventado. E depois, quase sem querer, minha mão desenhou
A manhã estava estranhamente leve. Yves tinha dormido bem — um milagre recente — e eu o havia deixado na creche da comunidade com a sensação de que, por algumas horas, o mundo podia respirar sem urgência. Cheguei ao escritório antes das nove, como sempre. A pequena sala compartilhada estava vazia, exceto pela pilha de pastas que alguém — provavelmente Rafael — deixara desleixadamente em cima da impressora. Liguei meu computador, ajustei a cadeira e comecei a revisar os e-mails do dia. Mais uma manhã de respostas automáticas, planilhas cinzentas e protocolos que pareciam se repetir infinitamente. Mas por algum motivo, eu estava inquieta. Meus dedos passavam pelas teclas sem real urgência, como se meu corpo estivesse ali, mas minha cabeça... não. > “Olá, Marina. Pode verificar os dados da apresentação do Elias para amanhã? A cliente de Milão pediu ajustes.” Suspirei. Traduzi, revisei, formatei. Tudo no piloto automático. A rotina, por mais estável que fosse, já não era suficien
Voltei da creche com Yves aninhado no meu colo, já quase dormindo, o rosto afundado no meu ombro como se o dia tivesse sido grande demais para ele. Meus passos eram lentos pela calçada, mais pelo turbilhão que ainda girava dentro de mim do que por cansaço físico. Leonardo. Ainda parecia surreal. Depois de todos esses anos, de tantas versões de mim mesma que eu fui criando, encontrar aquele pedaço da infância — vivo, sorrindo, real — bagunçava algo profundo. E ao mesmo tempo, era como se uma peça tivesse voltado pro lugar. Como se a Marina de antes me desse a mão por alguns instantes. Yves soltou um resmungo baixinho. Afaguei suas costas com delicadeza e beijei o topo de sua cabeça. — Tá tudo bem, pequeno. A gente só tá atravessando memórias — murmurei, mais pra mim do que pra ele. Em vez de ir direto pra casa, tomei o caminho da confeitaria. Como um ímã. Um refúgio. Um entrelugar onde eu podia respirar entre o que fui e o que estava tentando ser. --- Cheguei à confeita
As noites voltaram a ser silenciosas — não porque a vida ficou mais fácil, mas porque Yves, enfim, entrou numa nova fase. Dormia melhor, acordava menos, aceitava o colo sem exigir explicações do mundo. Eu ainda me surpreendia com a forma como aquele pequeno corpo ocupava tanto espaço dentro de mim. E mesmo assim, sempre sobrava um canto. Um canto onde Lorenzo começava a morar. Voltei à rotina com mais firmeza: trabalho de segunda a sexta, creche de manhã, turnos apertados, contas pagas no limite. Vanessa seguia me ajudando com uma leveza que eu agradecia todos os dias em silêncio. E à noite, depois que Yves dormia, eu me sentava com o caderno no colo, a caneta na mão, o café já frio na caneca esquecida na prateleira. Foi numa dessas noites que percebi. Entre listas, anotações soltas e tentativas frustradas de textos, havia desenhos. Rabiscos de alguém com olhos fundos. Traços firmes. Ombros largos. Um coque baixo, às vezes solto, às vezes não. Um perfil com a mandíbula marcada
A mensagem de Leonardo chegou no fim da tarde, entre um e-mail ignorado do trabalho e a terceira tentativa de Yves dormir. > [17:48] Leo: “Ei, baixinha. Vai estar livre amanhã à tarde? Tem alguém que quero te apresentar. Vai curtir.” Sorri. “Baixinha.” Ele era o único que ainda me chamava assim. Respondi com um simples: > [17:49] Marina: “Livre depois das 14h. Onde?” A localização veio em seguida. Um estúdio de tatuagem discreto, no centro antigo da cidade. No dia seguinte, deixei Yves com Vanessa. Dei as instruções habituais, com aquele aperto no peito de quem sabe que o mundo gira quando a gente vira as costas — mas fui. O estúdio era num prédio antigo com escadas estreitas, cheiro de tinta e música baixa ecoando nos corredores. As paredes estavam cobertas por quadros e esboços. Um universo inteiro de cor, sombra e arte urbana pulsando contra o cinza da cidade. Leo me esperava na porta, braços cruzados, com uma expressão que os anos não mudaram — o mesmo sorriso torto,
A primeira coisa que percebo é o cheiro. Um perfume forte, adocicado demais. Não é meu.Meus olhos se abrem devagar. A luz é baixa. Os lençóis, desconhecidos. E o teto... definitivamente não é o da minha casa.Meu corpo está dolorido, como se eu tivesse dançado a noite inteira ou brigado com o mundo. Talvez as duas coisas. Minhas pernas doem. Meus lábios ardem. Há uma nota de cinquenta dobrada no bolso da minha jaqueta. Não lembro de tê-la colocado ali.A sensação de vazio no peito é mais familiar do que eu gostaria de admitir.— Que dia é hoje? — murmuro, tentando encontrar respostas que nunca vêm.Levanto cambaleando, tentando montar o quebra-cabeça da noite anterior. Mas tudo que encontro são peças que não se encaixam: um salto quebrado no chão, um copo de uísque pela metade, uma gargalhada que ainda ecoa na minha cabeça, mas que não é minha.Foi ela de novo.A mulher que vive dentro de mim.A que desperta quando eu apago.Não sei o nome dela. Só sei que, quando ela assume, eu desa
O uniforme da lanchonete ainda gruda no meu corpo quando chego na faculdade. O cheiro de gordura impregnado na jaqueta me dá náuseas, mas não tenho tempo — nem dinheiro — para pensar nisso agora. Trabalho, estudo, sobrevivo. E repito. A sala está quase cheia quando entro. Sento no fundo, como sempre, torcendo para que ninguém repare nas olheiras profundas ou no leve tremor das minhas mãos. — Você está um caco — diz uma voz familiar ao meu lado. Milles. Com aquele sorriso de canto e os olhos castanhos atentos demais, ele se senta ao meu lado como se já estivesse ali há horas. Milles sempre sabe quando algo não está certo. — Bom dia pra você também — murmuro, tentando brincar. — Trabalhou até tarde de novo? — É. Mais do que devia. Ele me encara, mas não insiste. Milles tem esse dom. Não pressiona, mas está sempre ali, como se bastasse. — Você precisa de uma distração — diz, tirando da mochila uma garrafa de café e me oferecendo. — Que tal uma noite de jogos hoje? Sem aula aman