A mensagem de Leonardo chegou no fim da tarde, entre um e-mail ignorado do trabalho e a terceira tentativa de Yves dormir. > [17:48] Leo: “Ei, baixinha. Vai estar livre amanhã à tarde? Tem alguém que quero te apresentar. Vai curtir.” Sorri. “Baixinha.” Ele era o único que ainda me chamava assim. Respondi com um simples: > [17:49] Marina: “Livre depois das 14h. Onde?” A localização veio em seguida. Um estúdio de tatuagem discreto, no centro antigo da cidade. No dia seguinte, deixei Yves com Vanessa. Dei as instruções habituais, com aquele aperto no peito de quem sabe que o mundo gira quando a gente vira as costas — mas fui. O estúdio era num prédio antigo com escadas estreitas, cheiro de tinta e música baixa ecoando nos corredores. As paredes estavam cobertas por quadros e esboços. Um universo inteiro de cor, sombra e arte urbana pulsando contra o cinza da cidade. Leo me esperava na porta, braços cruzados, com uma expressão que os anos não mudaram — o mesmo sorriso torto,
A primeira coisa que percebo é o cheiro. Um perfume forte, adocicado demais. Não é meu.Meus olhos se abrem devagar. A luz é baixa. Os lençóis, desconhecidos. E o teto... definitivamente não é o da minha casa.Meu corpo está dolorido, como se eu tivesse dançado a noite inteira ou brigado com o mundo. Talvez as duas coisas. Minhas pernas doem. Meus lábios ardem. Há uma nota de cinquenta dobrada no bolso da minha jaqueta. Não lembro de tê-la colocado ali.A sensação de vazio no peito é mais familiar do que eu gostaria de admitir.— Que dia é hoje? — murmuro, tentando encontrar respostas que nunca vêm.Levanto cambaleando, tentando montar o quebra-cabeça da noite anterior. Mas tudo que encontro são peças que não se encaixam: um salto quebrado no chão, um copo de uísque pela metade, uma gargalhada que ainda ecoa na minha cabeça, mas que não é minha.Foi ela de novo.A mulher que vive dentro de mim.A que desperta quando eu apago.Não sei o nome dela. Só sei que, quando ela assume, eu desa
O uniforme da lanchonete ainda gruda no meu corpo quando chego na faculdade. O cheiro de gordura impregnado na jaqueta me dá náuseas, mas não tenho tempo — nem dinheiro — para pensar nisso agora. Trabalho, estudo, sobrevivo. E repito. A sala está quase cheia quando entro. Sento no fundo, como sempre, torcendo para que ninguém repare nas olheiras profundas ou no leve tremor das minhas mãos. — Você está um caco — diz uma voz familiar ao meu lado. Milles. Com aquele sorriso de canto e os olhos castanhos atentos demais, ele se senta ao meu lado como se já estivesse ali há horas. Milles sempre sabe quando algo não está certo. — Bom dia pra você também — murmuro, tentando brincar. — Trabalhou até tarde de novo? — É. Mais do que devia. Ele me encara, mas não insiste. Milles tem esse dom. Não pressiona, mas está sempre ali, como se bastasse. — Você precisa de uma distração — diz, tirando da mochila uma garrafa de café e me oferecendo. — Que tal uma noite de jogos hoje? Sem aula aman
— Merda! — grito, pulando da cama com o despertador apitando há pelo menos meia hora.O uniforme ainda está pendurado na cadeira, amarrotado, e a toalha que eu deveria ter lavado ontem me encara do chão com cheiro de desespero. Não dá tempo. Pulo o banho, amarro o cabelo num coque torto, escovo os dentes com uma mão e enfio o pé no tênis com a outra.A lanchonete já está abrindo quando chego, e Dona Nair me recebe com aquele olhar de julgamento que só ela sabe dar.— Atrasada. De novo.— Não vai acontecer de novo — minto com a cara mais convincente possível.Começo o turno me sentindo ainda fora do lugar. Meus olhos estão pesados, como se tivessem assistido a um filme inteiro durante a noite. E talvez tenham.O sonho — ou o que quer que tenha sido — ainda pulsa na minha cabeça como um eco surdo. A risada, o vestido vermelho, o espelho... Não eram só imagens. Tinha cheiro. Tinha gosto.A sensação de que eu realmente vivi aquilo me dá calafrios.— Marina! Mesa 4! — grita a cozinheira.P
A escuridão vai se tornando cor.Primeiro, um vermelho profundo. Como veludo. Depois, um borrão de luzes tremeluzentes, como faróis vistos à distância em uma rua molhada.Estou em um lugar que não reconheço, mas que não me assusta. A música é baixa, envolvente. Um jazz antigo, talvez. Sinto o salto dos meus sapatos contra o chão de madeira — e estranho estar usando salto, já que nunca uso.Ao meu redor, risos abafados e vozes que parecem estar sempre ao fundo, nunca claras o suficiente para eu entender.Eu caminho. Meus passos são firmes, confiantes. Meus dedos tocam o corrimão de uma escada espiral. A luz é quente, amarelada, e tudo parece girar em câmera lenta.Então, me vejo passando por um espelho. Só que não paro. Não olho de verdade. Mas sei que era eu. De um jeito que não costumo ser. Cabelos soltos, lábios pintados de um tom escuro, vestido justo. Olhar decidido.E uma frase ecoa dentro de mim, mas não sei de onde vem:"Você não precisa ter medo de quem é de verdade."Acordo c
O silêncio pesa entre nós como uma tempestade prestes a cair.— O quê?— Ela apareceu hoje de manhã. A Celine. Bateu na minha porta com o bebê no colo, disse que era meu, entregou a certidão e... foi embora.— Ela o quê?! — Dou um passo mais perto, ainda sem saber se devia rir, gritar ou sentar.— Eu também não tô conseguindo acreditar — ele diz, olhando para o pequeno rolinho de cobertor no sofá, que até então eu não tinha notado. — Marina, esse é o Yves. Ele tem dois meses.Me aproximo devagar. O bebê dorme, bochechas rosadas, as mãozinhas fechadas como se segurassem o universo inteiro.— Ele é... lindo — murmuro, sentindo algo dentro de mim que não sei nomear.Milles sorri com um misto de orgulho e pavor.— Tentei montar o berço, mas... — ele aponta para a bagunça de parafusos e tábuas. — Eu não consigo nem entender o manual.Suspiro, tirando o casaco.— Então vamos lá, pai de primeira viagem. Me passa a chave Philips.Enquanto montamos o berço, ele me conta tudo. O sumiço repentin
A manhã estava clara, sem pressa. O tipo de dia que me convida a andar sem rumo, só ouvindo o som dos meus passos contra o chão da cidade.Dobrei a esquina e avistei a pequena confeitaria, com sua fachada azul-clara e cortinas brancas. Era meu refúgio desde os dezoito. Ninguém me incomodava ali. Ninguém fazia perguntas.Empurrei a porta e fui recebida pelo aroma de café fresco, açúcar queimado e alguma torta de maçã que acabara de sair do forno. Sorri sem pensar.— A mulher do pudim chegou — anunciou Liam, atrás do balcão, enquanto polia uma xícara. Seu avental branco estava torto, como sempre.— E o funcionário mais irônico da cidade ainda trabalha aqui? — retruquei, divertida.— Infelizmente pra mim, sim. — Ele piscou. — Mesa de sempre?— Você ainda pergunta?— É só protocolo, Marina. Eu sou muito profissional. — Ele girou nos calcanhares e seguiu para a cozinha.Me sentei na minha mesa, a do canto, encostada à janela. Era quase automática aquela rotina, como um ritual secreto entre
A cidade à noite tem um gosto diferente. Mais denso. Mais real.As luzes borradas dos postes dançavam nas janelas do táxi, enquanto eu passava o batom com um toque firme, segura. Nenhuma hesitação. Marina jamais entenderia o que é andar por essas ruas com poder nas pontas dos dedos e nos saltos. Mas eu entendia.— Tem certeza que quer descer aqui? — o motorista pergunta, hesitante, olhando pelo retrovisor.Sorrio. Um daqueles sorrisos que confundem e perturbam.— Absoluta.Desço antes da entrada do clube. Meu salto ecoa pelo asfalto. O vestido vermelho colado ao corpo atrai olhares sem nenhum esforço, e eu absorvo cada um como se fossem energia líquida.Luzes néon pintam a calçada. “Club Stigma”, o letreiro pulsa como um coração noturno. Entro sem fila — o segurança apenas assente, como se soubesse quem eu sou, ou talvez só sentisse que era melhor não questionar.Lá dentro, a batida eletrônica preenche o ar. Rostos, corpos, promessas não ditas. Peço uma dose dupla no bar e observo.Eu