Açúcar e Silêncio

A manhã estava clara, sem pressa. O tipo de dia que me convida a andar sem rumo, só ouvindo o som dos meus passos contra o chão da cidade.

Dobrei a esquina e avistei a pequena confeitaria, com sua fachada azul-clara e cortinas brancas. Era meu refúgio desde os dezoito. Ninguém me incomodava ali. Ninguém fazia perguntas.

Empurrei a porta e fui recebida pelo aroma de café fresco, açúcar queimado e alguma torta de maçã que acabara de sair do forno. Sorri sem pensar.

— A mulher do pudim chegou — anunciou Liam, atrás do balcão, enquanto polia uma xícara. Seu avental branco estava torto, como sempre.

— E o funcionário mais irônico da cidade ainda trabalha aqui? — retruquei, divertida.

— Infelizmente pra mim, sim. — Ele piscou. — Mesa de sempre?

— Você ainda pergunta?

— É só protocolo, Marina. Eu sou muito profissional. — Ele girou nos calcanhares e seguiu para a cozinha.

Me sentei na minha mesa, a do canto, encostada à janela. Era quase automática aquela rotina, como um ritual secreto entre mim e o mundo.

Poucos minutos depois, Liam voltou com a bandeja.

— Pudim, carolinas e capuccino com canela. Achei que hoje você merecia duas cerejas extras. — Ele piscou ao colocar o prato à minha frente.

— Você é um anjo disfarçado de atendente debochado — disse, já abrindo o livro recém-comprado.

— Eu tento. Se precisar de mais açúcar, é só chamar. — E foi embora, assoviando.

O título do livro me encarava: O Instinto Oculto. A capa ainda me dava arrepios. Tinha algo nela, na textura, no peso, que me fazia tratá-lo com um certo respeito. Abri na primeira página.

"Somos feitos de partes que conhecemos… e de outras que fingimos não ver."

Entre um gole de capuccino e uma colherada de pudim, fui engolida por memórias que não pedi.

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Flashback

O pudim no orfanato não era bonito. A calda era fina demais, e o creme, cheio de furinhos. Mas, naquelas tardes de domingo, era tudo o que tínhamos de especial.

Lembro de ficar sentada ao lado da janela, a mesma onde o vento fazia barulho nas frestas, com um pratinho de plástico nas mãos. A menina ao meu lado — acho que era Tânia — sempre comia rápido, como se aquilo fosse sumir. Eu comia devagar. Era o único momento da semana que me sentia... quase normal.

— Você sempre sonha acordada, Marina. — ela dizia.

E eu sonhava mesmo. Sonhava em ter um nome escrito na porta de um quarto. Sonhava em alguém que me conhecesse sem que eu precisasse explicar nada. Sonhava em não sentir aquele vazio, que vinha mesmo depois do pudim.

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De volta à confeitaria, pisquei devagar. O gosto ainda estava ali, mas agora misturado a algo mais amargo. A saudade de um tempo que nem era bom, mas era meu.

— Tá tudo bem aí? — Liam perguntou, de volta ao balcão, com um olhar mais cuidadoso.

— Só lembranças doces demais pra engolir de uma vez — respondi.

— Toma seu tempo, a mesa é sua.

Fechei o livro e fiquei apenas olhando para a xícara. Às vezes, o passado vem sem convite. E quando vem, é melhor deixar sentar à mesa por um instante.

Depois disso, prometo, continuo vivendo.

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O resto do dia prometia tranquilidade. Peguei o caminho de casa, com a sacola do livro nas mãos e o estômago satisfeito. Sentia a mente mais leve, como se o açúcar tivesse varrido para longe o peso dos últimos dias.

Ao chegar, tirei os sapatos, deixei a bolsa no sofá e fui direto para o quarto. Coloquei uma playlist instrumental qualquer e abri os cadernos. Tentei me concentrar nos resumos, nos gráficos coloridos de anatomia, mas as letras dançavam um pouco demais.

A luz da tarde filtrava-se pelas persianas, e o som suave da música misturava-se com o zumbido do ventilador. Só vou fechar os olhos por cinco minutos, pensei.

Me deitei por cima do edredom, sem nem tirar a roupa. Era só um descanso rápido…

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Algo estala. Um salto alto contra o piso. A batida de uma música grave ao fundo. O cheiro doce de bebida misturado ao de perfume caro.

Meus olhos se abrem em meio à penumbra.

— Ah… — a voz que sai dos meus lábios não é exatamente minha. É mais firme, mais atrevida. — Fazia tempo que eu não tinha a noite só pra mim.

O reflexo no espelho mostra lábios mais escuros, olhos maquiados. O vestido colado ao corpo. Um cartão de hotel sobre a cômoda.

Ela sorri.

— Vamos ver que tipo de diversão me espera hoje…

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