O silêncio pesa entre nós como uma tempestade prestes a cair.
— O quê? — Ela apareceu hoje de manhã. A Celine. Bateu na minha porta com o bebê no colo, disse que era meu, entregou a certidão e... foi embora. — Ela o quê?! — Dou um passo mais perto, ainda sem saber se devia rir, gritar ou sentar. — Eu também não tô conseguindo acreditar — ele diz, olhando para o pequeno rolinho de cobertor no sofá, que até então eu não tinha notado. — Marina, esse é o Yves. Ele tem dois meses. Me aproximo devagar. O bebê dorme, bochechas rosadas, as mãozinhas fechadas como se segurassem o universo inteiro. — Ele é... lindo — murmuro, sentindo algo dentro de mim que não sei nomear. Milles sorri com um misto de orgulho e pavor. — Tentei montar o berço, mas... — ele aponta para a bagunça de parafusos e tábuas. — Eu não consigo nem entender o manual. Suspiro, tirando o casaco. — Então vamos lá, pai de primeira viagem. Me passa a chave Philips. Enquanto montamos o berço, ele me conta tudo. O sumiço repentino da ex, a surpresa de descobrir que tinha um filho, o medo de não dar conta. E eu escuto, ajudo, estou ali — presente, mesmo sem saber exatamente o que aquilo tudo significa. Quando finalmente colocamos o último parafuso, ele se senta no chão, exausto, mas com um sorriso leve. — Obrigado por vir. — Sempre — respondo. — Você não tá sozinho. Na volta para casa, minha mente gira. Um bebê. Uma nova realidade. E uma sensação estranha me acompanha até o travesseiro. Adormeço rápido. E como quase todas as noites... sonho. Mas dessa vez, o sonho é tão vívido que parece uma lembrança. Estou em um lugar escuro, iluminado apenas por luzes vermelhas. Um vestido de seda envolve meu corpo como uma segunda pele. Ouço risos, toques, sussurros. Me vejo dançando, rodopiando, rindo de forma que não reconheço. Me sinto desejada. Livre. Selvagem. No espelho, uma mulher me encara. Ela tem meus olhos. Meu corpo. Mas seu sorriso... não é meu. --- Acordo com a luz atravessando a persiana e tocando meu rosto como um lembrete sutil de que a vida continua, mesmo quando tudo parece ter virado de cabeça pra baixo. Espreguiço-me devagar, sentindo os músculos do corpo ainda pesados pela noite agitada. O sonho permanece em mim como um perfume que insiste em ficar — denso, doce, proibido. Fecho os olhos por um segundo, tentando recuperar os fragmentos. As luzes vermelhas. O vestido. A forma como dançava sem me preocupar com nada. Como se o mundo lá fora tivesse deixado de existir. Como se eu tivesse deixado de ser eu. Sento-me na cama, massageando as têmporas. — Que merda foi aquilo? As palavras escapam baixas, roucas pela manhã. O tipo de sonho que deixa uma sombra por trás dos olhos. Não consigo parar de pensar no sorriso daquela mulher no espelho. Era meu... mas ao mesmo tempo, não era. Tinha algo selvagem, ousado. Algo que não me pertence. Sacudo a cabeça, tentando afastar a sensação, e caminho até a cozinha. Faço café. A primeira xícara me ajuda a lembrar: Milles tem um filho. Yves. Um nome pequeno pra um impacto tão grande. A imagem do bebê dormindo ainda está viva em mim. E a forma como Milles olhava pra ele… assustado, sim. Mas também com uma ternura que eu nunca tinha visto. Termino o café com a mente cheia. De sonhos, de dúvidas, de perguntas que ainda não têm nome. Pego meu celular. Milles: “Ele dormiu a noite toda. Acho que já sou um bom pai.” Marina: “Não se empolga, herói. A parte difícil ainda nem começou.” Sorrio. Por mais estranha que a vida esteja, é bom saber que ele ainda é o mesmo. Ainda somos os mesmos. Mais ou menos. Olho pela janela. Hoje não tenho aula, não tenho trabalho. Um dia livre. Mas não consigo relaxar. Meu corpo quer andar, sair, respirar. Talvez eu vá até a livraria. Ou caminhe pelo parque. Talvez encontre Milles de novo. Ou talvez eu só precise entender o que está acontecendo comigo. Por que estou sonhando com coisas que não vivi? Por que me sinto... dividida? Respiro fundo. Coloco uma roupa leve, pego a chave e saio. Porque às vezes, a gente precisa se mover pra não enlouquecer.A manhã estava clara, sem pressa. O tipo de dia que me convida a andar sem rumo, só ouvindo o som dos meus passos contra o chão da cidade.Dobrei a esquina e avistei a pequena confeitaria, com sua fachada azul-clara e cortinas brancas. Era meu refúgio desde os dezoito. Ninguém me incomodava ali. Ninguém fazia perguntas.Empurrei a porta e fui recebida pelo aroma de café fresco, açúcar queimado e alguma torta de maçã que acabara de sair do forno. Sorri sem pensar.— A mulher do pudim chegou — anunciou Liam, atrás do balcão, enquanto polia uma xícara. Seu avental branco estava torto, como sempre.— E o funcionário mais irônico da cidade ainda trabalha aqui? — retruquei, divertida.— Infelizmente pra mim, sim. — Ele piscou. — Mesa de sempre?— Você ainda pergunta?— É só protocolo, Marina. Eu sou muito profissional. — Ele girou nos calcanhares e seguiu para a cozinha.Me sentei na minha mesa, a do canto, encostada à janela. Era quase automática aquela rotina, como um ritual secreto entre
A cidade à noite tem um gosto diferente. Mais denso. Mais real.As luzes borradas dos postes dançavam nas janelas do táxi, enquanto eu passava o batom com um toque firme, segura. Nenhuma hesitação. Marina jamais entenderia o que é andar por essas ruas com poder nas pontas dos dedos e nos saltos. Mas eu entendia.— Tem certeza que quer descer aqui? — o motorista pergunta, hesitante, olhando pelo retrovisor.Sorrio. Um daqueles sorrisos que confundem e perturbam.— Absoluta.Desço antes da entrada do clube. Meu salto ecoa pelo asfalto. O vestido vermelho colado ao corpo atrai olhares sem nenhum esforço, e eu absorvo cada um como se fossem energia líquida.Luzes néon pintam a calçada. “Club Stigma”, o letreiro pulsa como um coração noturno. Entro sem fila — o segurança apenas assente, como se soubesse quem eu sou, ou talvez só sentisse que era melhor não questionar.Lá dentro, a batida eletrônica preenche o ar. Rostos, corpos, promessas não ditas. Peço uma dose dupla no bar e observo.Eu
O despertador tocou com seu som irritante e metálico, arrancando-me de um sono pesado. Abri os olhos devagar, o corpo dolorido como se tivesse atravessado a madrugada inteira acordada.Sentei-me na cama, o quarto ainda mergulhado na penumbra. O relógio marcava 6h47.“Droga. A prova.”Levei as mãos ao rosto, tentando me recompor. A cabeça latejava. Eu me sentia... estranha. Como se tivesse vivido algo intenso enquanto dormia, mas as imagens escapavam da minha mente como areia entre os dedos.Um beco. Um sussurro. O gosto de bebida. A sensação da música vibrando sob a pele.Pisquei várias vezes, tentando afastar o torpor. Levantei, quase tropeçando no próprio chinelo. No banheiro, encarei meu reflexo: o rosto estava normal, nada fora do lugar... mas havia algo nos meus olhos. Uma expressão que eu não reconhecia.“Sonhos esquisitos de novo?”Lavei o rosto com água gelada, como se pudesse acordar completamente daquela sensação. Quando voltei ao quarto, abri o caderno de anatomia deixado s
O sol já se despedia quando ajeitei a manta sobre Yves, garantindo que ele estivesse quentinho no carrinho. O bebê dormia profundamente, os pequenos lábios entreabertos, as bochechas coradas. Era impossível não sorrir.Milles surgiu da cozinha com um prato de macarrão instantâneo e duas garrafas de refrigerante.— Jantar de pai solo — disse, sentando-se no sofá. — Não julgue.— Estou te ajudando a criar um ser humano. A última coisa que farei é julgar seu macarrão — peguei o prato dele e provei uma garfada. — Hm. Comível. Para um zumbi faminto.Milles fingiu uma expressão ofendida, mas riu em seguida. Comemos em silêncio por alguns minutos, compartilhando o tipo de calmaria que só existe entre velhos amigos.— Você nunca pensou em ter filhos? — ele perguntou de repente.Desviei o olhar, como se a pergunta me empurrasse para um canto do passado.— Já pensei, sim. Mas... nunca consegui me imaginar criando alguém sem saber quem eu sou de verdade.Ele franziu a testa, tentando entender.—
As peças do jogo estavam espalhadas pela mesa de centro, mas ninguém parecia se importar. A pizza esfriava na caixa aberta, os copos meio vazios refletiam a luz suave do abajur e as risadas ecoavam entre nós. Yves, no meu colo, gargalhava a cada careta que eu fazia, os olhos pequenos brilhando com aquela alegria pura que só os bebês têm.— Ei, não destrói minha torre! — reclamei, rindo, enquanto ele derrubava pela terceira vez o castelo improvisado de peças.— Acho que ele já decidiu o lado dele na guerra — comentou Milles, sorrindo da cozinha enquanto pegava mais guardanapos.Luca, sentado no tapete, observava a cena com um interesse discreto. Era a primeira vez que participava de um encontro como aquele, mais íntimo, mais caseiro — e estava surpreso por não se sentir deslocado. Havia uma naturalidade em tudo. No caos leve da sala, no som do bebê rindo, nos olhares trocados entre nós.— Ele parece gostar de você, Marina — disse Luca, gesticulando com o queixo em direção a Yves. — Fic
ENTRE ROTINAS E ESCOLHASAcordei com o som do despertador tocando insistentemente. Ainda era escuro lá fora, e o vento gelado escapava por entre as frestas da janela. Estiquei o braço, desligando o alarme com um suspiro preguiçoso. Mais um dia.A cozinha cheirava a café fresco enquanto eu esquentava uma fatia de pão no grill. Meus movimentos já automáticos — preparar a mochila, separar os livros da aula da noite, revisar mentalmente o que precisava fazer no trabalho. O tempo parecia escorrer entre os dedos.A lanchonete estava movimentada, como sempre. Fui recebida com os bons-dias apressados dos colegas e o som da cafeteira funcionando sem parar. Passei horas entre bandejas, pedidos e clientes apressados, sorrindo mecanicamente e tentando não derrubar nada, mesmo com o cansaço acumulado da semana.No intervalo, sentei na área de descanso dos funcionários, com um café ralo e meu caderno de anatomia. Era quase poético estudar o corpo humano entre pedidos de hambúrguer e batata frita. Q
Ainda deitada na cama, encarei a tela do celular por vários minutos. A mensagem de Milles piscava ali, com o peso de uma decisão que poderia mudar muita coisa. Ele precisava aceitar a proposta de trabalho fora do país — uma chance única — mas Yves, seu filho de apenas três meses, não podia ir com ele.“É só por um tempo. Eu não confio em deixá-lo com qualquer pessoa. Confio em você.”Respirei fundo, os dedos hesitando sobre o teclado. Então digitei:"Pode deixar ele comigo. Vai ficar tudo bem. Boa sorte com a entrevista."Apertei “enviar” e encarei a mensagem enviada como se ela pudesse desdobrar o futuro ali mesmo. A decisão estava tomada.---A manhã foi tomada por uma movimentação diferente no apartamento. Limpei com atenção os cantos, forrei o sofá, separei mantas e panos de boca com a sensação de estar preparando um pequeno santuário. Esterilizei mamadeiras que Milles prometera trazer e improvisei uma caminha baixa com almofadas e mantas no quarto, ao lado da minha cama. Coloquei
Era pouco mais de duas da manhã quando acordei com o choro. Demorei um segundo para lembrar que não estava sozinha, que aquele som agudo e insistente vinha do pequeno ser dormindo a poucos passos da minha cama.— Calma, amor... tô aqui — murmurei, a voz ainda sonolenta, levantando-me com cuidado.Yves chorava de olhos fechados, os punhos erguidos como se lutasse com o ar. Peguei-o no colo com delicadeza, embalando-o contra o peito. Meu corpo reagia no automático: o coração acelerado, os olhos meio cerrados, mas os braços firmes, protetores.Verifiquei a fralda, trocando com agilidade, enquanto sussurrava coisas que nem fazia ideia se ele entendia.— A gente vai aprender isso juntos, tá bom? Não desiste de mim não.Preparar a mamadeira foi um exercício de foco entre o calor, o choro insistente e o medo de não fazer tudo certo. Coloquei a fórmula, testei a temperatura várias vezes e enfim o alimentei no silêncio da sala, sentada com ele no colo e o olhar fixo na janela. A cidade dormia,