Voltei à confeitaria dois dias depois. Não planejei. Só aconteceu. A cidade estava abafada, o trabalho havia sido uma sucessão de microcrises mal resolvidas, e Vanessa tinha conseguido fazer Yves dormir mais cedo. Eu precisava respirar. E por alguma razão que eu ainda fingia não entender, queria — ou precisava — estar naquele lugar de novo. O sino da porta soou quando entrei, como sempre, mas naquele dia parecia mais alto. Como se o espaço me notasse antes mesmo de eu falar qualquer coisa. Liam levantou os olhos do balcão e ergueu uma sobrancelha, desconfiado. — Terceira visita essa semana. Você tá bem? — Eu tô me viciando na sua carolina. — Respondi, me esforçando por um sorriso. — Sei. E o mundo é plano também, né? Dei de ombros, rindo baixo, e me dirigi para a mesa do canto. A de sempre. Me acomodei ali com o pudim, o café com canela e uma carolina caprichada, sentindo o calor da xícara como um amuleto nas mãos. Mas não era pelo doce. Eu estava esperando, e sabia disso. Esp
A noite estava estranhamente silenciosa. Yves havia dormido mais cedo do que o normal, após um banho morno e uma sequência de risadinhas que me deixaram com o coração leve. Vanessa já tinha ido embora, a louça estava lavada, o chão limpo — e mesmo assim, eu me sentia inquieta.Peguei o celular. Passei os dedos pelas notificações, todas sem importância. Nenhuma resposta de Milles. Nenhum recado novo.Abri a galeria de fotos por impulso, deslizando sem pressa até encontrar os vídeos antigos. Alguns eram de quando eu ainda estava na faculdade — gravações de aula, uma apresentação de anatomia, eu rindo desajeitada ao errar o nome de uma estrutura muscular.Pausei num vídeo em que Milles me filmava escondido, enquanto eu tentava colar post-its coloridos em um quadro branco com frases de incentivo.“Você acredita mesmo nessas frases prontas, Ma?”E eu, rindo:“Se eu não acreditar em alguma coisa, eu desmorono.”O vídeo acabou. E eu desmorone
A manhã começou mais lenta do que o habitual. O despertador tocou às sete, mas só consegui sair da cama quase meia hora depois. Yves resmungava no berço, chutando o paninho azul como se estivesse protestando contra o novo dia.— Eu também não tô com vontade de levantar, sabia? — murmurei, com a voz ainda rouca, enquanto o pegava no colo.Ele se acomodou no meu peito com aquele calorzinho de quem não cobra nada, mas exige tudo — e eu deixei. Ficamos ali por alguns minutos, enrolados sob a luz suave que entrava pela janela, respirando o mesmo ar.Depois de prepará-lo, arrumei o básico para a Vanessa e deixei um bilhete com as instruções do dia. Como sempre, ela chegou pontualmente, com o sorriso calmo e os passos silenciosos.— Ele dormiu bem? — ela perguntou, tirando a jaqueta.— Dormiu. Mas eu... não.Ela apenas assentiu, como quem entende sem exigir explicações.Eu precisava estar no estúdio antes das nove. Tinha sido c
Os vidros do ônibus refletiam a cidade de um jeito embaçado. Luzes amareladas misturadas com o céu nublado, carros se arrastando no trânsito como se estivessem presos no tempo. Encostei a cabeça na janela, sentindo o frescor do vidro contra a pele, e por um instante quase cochilei.Quase.Yves estava com Vanessa naquela tarde. Depois da sessão de fotos e do turbilhão da semana anterior, eu precisava de algumas horas sozinha. Não exatamente para descansar — eu já sabia que isso era luxo — mas para andar sem pressa, sem horários, sem fraldas na bolsa ou listas mentais de compras urgentes.Desci duas quadras antes do ponto de costume, só para mudar o caminho. As ruas estavam quietas, o tipo de silêncio urbano que parece sussurrar segredos pelas calçadas. Meus passos ressoavam baixos, e tudo parecia suspenso.Foi quando passei em frente à vitrine da “Galeria Armand”.Parei.Ali, pendurado sob uma luz direcionada, estava um colar idên
Meus pés me levaram até lá antes que eu pudesse tomar uma decisão consciente. Quando percebi, estava na frente da confeitaria de fachada azul-clara, encarando a porta de vidro como se ela fosse um portal entre mundos. E talvez fosse.O sino tilintou quando empurrei a porta, e o som soou mais alto do que de costume — ou talvez fosse só dentro de mim. Tudo estava mais alto, mais colorido, mais… carregado. O cheiro de canela, baunilha e café veio como um soco doce no estômago. Me fez fechar os olhos por um segundo. Um segundo só.— Você tá com uma cara de quem viu um fantasma — disse Liam, já me observando do balcão.— Eu… talvez tenha visto — murmurei, tentando forçar um sorriso.Ele ergueu uma sobrancelha.— Mesa de sempre?Assenti, sem forças pra inventar ousadia hoje.Me sentei devagar, como se meu corpo pesasse o triplo. A cadeira de madeira era firme, mas tudo em mim parecia querer desabar. Apoiei os cotovelos na mesa
O celular vibrou sobre a mesa enquanto eu terminava de organizar as roupinhas de Yves na cômoda. Era sábado, fim de tarde, e o apartamento estava envolto naquele silêncio raro que só se instalava quando o bebê dormia profundamente.Olhei a tela.[18:37] Milles: “Posso te ligar daqui a pouco?”Fazia dias desde a última mensagem. Curtas, sempre. Objetivas. Quase como se ele tentasse manter uma presença mínima, sem se envolver demais.[18:38] Marina: “Claro. Yves acabou de dormir.”Esperei com o celular na mão por longos minutos. Caminhei pela sala, dei uma ajeitada no tapete, conferi pela terceira vez se a mamadeira da madrugada já estava pronta. E quando finalmente o aparelho tocou, o som me fez pular.— Oi — atendi, tentando soar natural.— Oi, Ma. Tá tudo bem por aí?A voz dele vinha limpa, como se estivesse num ambiente calmo. Sem ruídos, sem pressa. Havia algo estranho ali — uma leveza que não combinava com a
A noite caiu devagar, como se tivesse pena de mim.A luz da cozinha ficou acesa mais tempo do que o necessário. A mamadeira lavada, a bancada limpa, o chão varrido — tudo em ordem, menos eu. Yves dormia no quarto com um pé pra fora da coberta, o paninho azul grudado no queixo. E mesmo que eu soubesse que deveria deitar, fechar os olhos e tentar descansar, algo em mim se recusava a parar.Ainda estava vibrando com a ligação de Milles. Com o que ele disse — e com o que não disse.As palavras dele, tão suaves e disfarçadas de gratidão, ainda ecoavam como um abandono travestido de gentileza. Eu sabia que isso aconteceria. Que ele, aos poucos, se afastaria até virar uma lembrança que responde mensagens com emojis e transferências bancárias esporádicas. Mas saber não é o mesmo que aceitar.Peguei o celular. Rolei a tela sem intenção. Redes sociais, nada novo. Notícias que eu não queria ler. Conversas arquivadas.E então vi o nome.Lore
A primeira coisa que percebo é o cheiro. Um perfume forte, adocicado demais. Não é meu.Meus olhos se abrem devagar. A luz é baixa. Os lençóis, desconhecidos. E o teto... definitivamente não é o da minha casa.Meu corpo está dolorido, como se eu tivesse dançado a noite inteira ou brigado com o mundo. Talvez as duas coisas. Minhas pernas doem. Meus lábios ardem. Há uma nota de cinquenta dobrada no bolso da minha jaqueta. Não lembro de tê-la colocado ali.A sensação de vazio no peito é mais familiar do que eu gostaria de admitir.— Que dia é hoje? — murmuro, tentando encontrar respostas que nunca vêm.Levanto cambaleando, tentando montar o quebra-cabeça da noite anterior. Mas tudo que encontro são peças que não se encaixam: um salto quebrado no chão, um copo de uísque pela metade, uma gargalhada que ainda ecoa na minha cabeça, mas que não é minha.Foi ela de novo.A mulher que vive dentro de mim.A que desperta quando eu apago.Não sei o nome dela. Só sei que, quando ela assume, eu desa