Espelhos Turvos

A escuridão vai se tornando cor.

Primeiro, um vermelho profundo. Como veludo. Depois, um borrão de luzes tremeluzentes, como faróis vistos à distância em uma rua molhada.

Estou em um lugar que não reconheço, mas que não me assusta. A música é baixa, envolvente. Um jazz antigo, talvez. Sinto o salto dos meus sapatos contra o chão de madeira — e estranho estar usando salto, já que nunca uso.

Ao meu redor, risos abafados e vozes que parecem estar sempre ao fundo, nunca claras o suficiente para eu entender.

Eu caminho. Meus passos são firmes, confiantes. Meus dedos tocam o corrimão de uma escada espiral. A luz é quente, amarelada, e tudo parece girar em câmera lenta.

Então, me vejo passando por um espelho. Só que não paro. Não olho de verdade. Mas sei que era eu. De um jeito que não costumo ser. Cabelos soltos, lábios pintados de um tom escuro, vestido justo. Olhar decidido.

E uma frase ecoa dentro de mim, mas não sei de onde vem:

"Você não precisa ter medo de quem é de verdade."

Acordo com o som de uma buzina ao longe, o quarto ainda na penumbra do início da manhã. Me sento na cama com o coração acelerado, tentando entender por que aquele sonho — tão banal, aparentemente — me deixou com a pele arrepiada.

Levanto devagar, sentindo o chão frio sob os pés, e vou até a janela.

A cidade está acordando, como se nada tivesse acontecido.

Mas dentro de mim, algo está diferente. Ainda que eu não saiba o quê.

Me espreguiço e me dou conta de que, por algum milagre do universo, hoje é minha folga.

Sem aula. Sem trabalho. Sem pressa.

Visto uma camiseta larga e vou direto para a cozinha preparar um café. Enquanto a água ferve, meus olhos vagam até o bilhetinho colado na geladeira: “lembrete: pagar conta de luz / comprar ração pro gato da vizinha”.

Apesar da confusão em minha cabeça, hoje pretendo desacelerar.

Coloco uma música baixa e deixo o aroma do café fresco me envolver como um abraço. Me sento no chão da sala com a caneca entre as mãos e deixo o tempo passar.

É estranho ter tempo, quando se está acostumada a correr.

Depois de um banho demorado, pego meu caderno de anotações. As folhas estão repletas de rabiscos, frases soltas, sonhos esquecidos. Tento escrever sobre o sonho da noite passada, mas as palavras fogem, como se não quisessem ser nomeadas.

Desisto.

Decido sair, caminhar um pouco. Talvez ir até o sebo que gosto tanto. Talvez comprar um livro novo, ou um velho conhecido. Talvez observar pessoas.

Quem sabe, no silêncio do dia, eu me encontre de novo.

Ou pelo menos, parte de mim.

---

A brisa da manhã acaricia meu rosto assim que saio de casa. O sol ainda está tímido no céu, filtrado por nuvens finas. Coloco os fones e deixo uma playlist instrumental guiar meus passos pelas calçadas já conhecidas. Mesmo assim, hoje tudo parece um pouco mais… vívido. Como se cada detalhe do mundo estivesse mais afiado, mais presente.

As árvores balançam suavemente, e os galhos lançam sombras dançantes sobre o chão. O aroma de pão recém-assado vindo de uma padaria na esquina me arranca um leve sorriso. Por um instante, penso em entrar, mas decido seguir meu caminho até o sebo.

O lugar é pequeno, escondido entre duas lojas maiores, como se fosse um segredo bem guardado da cidade. Um sininho toca quando empurro a porta de vidro e sou recebida pelo cheiro de papel antigo, madeira e nostalgia.

— Bom dia, Marina — diz a senhora de cabelos brancos atrás do balcão. Dona Célia já me conhece bem.

— Bom dia. Vim me perder um pouquinho.

Ela sorri, compreensiva.

Percorro as estantes sem pressa, passando os dedos pelas lombadas gastas. Meu olhar repousa em um exemplar de capa vermelha desbotada. Um livro de poesias antigas. Abro numa página aleatória:

"Aquela que dança com a noite, não teme o que mora dentro da alma..."

Arrepio.

Pego o livro e continuo vasculhando, agora com mais calma. Levo também um romance gótico que já tinha lido na adolescência, mas que bateu uma vontade estranha de revisitar.

— Dia calmo? — Dona Célia pergunta, enquanto registra minhas escolhas.

— Mais do que estou acostumada. E isso tem me deixado meio… estranha, confesso.

Ela ergue uma sobrancelha e diz, com aquele tom de quem sabe mais do que aparenta:

— O silêncio às vezes revela mais do que o barulho, minha querida. Às vezes, é nele que a gente escuta quem tem se calado por dentro.

Agradeço, meio sem saber o que responder, e volto a andar pela cidade, agora com dois livros debaixo do braço e um coração levemente inquieto.

No caminho de volta, passo por uma pracinha quase vazia. Sento no banco mais afastado, abro o livro de poesias e deixo que a tarde me engula em sua lentidão tranquila.

Ainda estou folheando o livro de poesias, imersa nas palavras suaves, quando o celular vibra no bolso do casaco. Tiro os fones e atendo sem olhar o visor. Só uma pessoa me liga a essa hora.

— Oi, Milles.

— Marina? — a voz dele soa apressada, nervosa. — Você pode vir aqui? É urgente... mas nada grave! — acrescenta rápido, talvez sentindo meu corpo travar do outro lado da linha.

— Claro. Já tô indo.

Não faço perguntas. Pela voz, ele parecia... perdido. Não no sentido perigoso — mais no jeito que alguém fica quando o mundo muda de repente e a gente ainda não teve tempo de acompanhar.

Chego ao apartamento dele em menos de quinze minutos. A porta se abre assim que bato, e Milles está ali, de moletom, olheiras fundas e um leve cheiro de talco e leite no ar.

Meus olhos seguem o cheiro. Um berço desmontado está espalhado no meio da sala.

— O que é isso? — pergunto, entrando, já com as sobrancelhas arqueadas.

Ele passa a mão pelos cabelos desgrenhados, visivelmente nervoso.

— Marina... você não vai acreditar. Eu... tenho um filho.

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