Fragmentos

— Merda! — grito, pulando da cama com o despertador apitando há pelo menos meia hora.

O uniforme ainda está pendurado na cadeira, amarrotado, e a toalha que eu deveria ter lavado ontem me encara do chão com cheiro de desespero. Não dá tempo. Pulo o banho, amarro o cabelo num coque torto, escovo os dentes com uma mão e enfio o pé no tênis com a outra.

A lanchonete já está abrindo quando chego, e Dona Nair me recebe com aquele olhar de julgamento que só ela sabe dar.

— Atrasada. De novo.

— Não vai acontecer de novo — minto com a cara mais convincente possível.

Começo o turno me sentindo ainda fora do lugar. Meus olhos estão pesados, como se tivessem assistido a um filme inteiro durante a noite. E talvez tenham.

O sonho — ou o que quer que tenha sido — ainda pulsa na minha cabeça como um eco surdo. A risada, o vestido vermelho, o espelho... Não eram só imagens. Tinha cheiro. Tinha gosto.

A sensação de que eu realmente vivi aquilo me dá calafrios.

— Marina! Mesa 4! — grita a cozinheira.

Pisco, tentando voltar pra terra firme. Anoto o pedido. Água com gás, misto quente, coca zero. O mundo parece seguir seu ritmo normal, como se eu não estivesse desmoronando em silêncio por dentro.

Na pausa do café, abro o bloco de notas do celular e digito tudo que lembro. “Homem alto, barba, sorriso estranho. Me vi diferente. Batom vermelho.” Tento organizar as ideias, encontrar alguma lógica. Mas não há.

— Tá tudo bem? — pergunta o Eduardo, do caixa. — Você tá meio... esquisita.

— Só uma noite mal dormida — respondo.

Outra mentira. Mas como explicar que talvez, só talvez, eu esteja vivendo uma vida paralela durante meus apagões?

Termino o turno exausta, como se tivesse corrido uma maratona emocional sem sair do lugar. E, ainda assim, a pior parte é saber que, quando a noite chegar, eu vou ter que dormir de novo.

E talvez ela volte.

---

O sol já está baixo quando deixo a lanchonete, e o calor faz o ar parecer mais denso, como se tudo ao meu redor estivesse preso em uma bolha de vidro. A faculdade está com aulas suspensas hoje por conta de uma manutenção elétrica, o que significa que, pelo menos por algumas horas, posso respirar.

Caminho devagar pelas ruas que já conheço de cor, mas que hoje parecem diferentes. Como se carregassem uma sombra sutil que me persegue a cada esquina.

Meu apartamento pequeno, no segundo andar de um prédio velho, me recebe com o ranger familiar da porta. Solto as chaves no balcão e deixo o corpo cair no sofá, ainda com o uniforme suado. O silêncio é reconfortante, mas também inquietante.

Tiro o tênis, coloco a playlist mais calma que tenho e tento relaxar. Mas a mente não colabora.

Abro o bloco de notas de novo. Leio o que escrevi mais cedo, como se estivesse tentando desvendar um enigma deixado por outra pessoa.

"Me vi no espelho, mas não era eu. Vestido vermelho. Risada estranha. Beijo roubado. Cheiro de cigarro. Dinheiro em cima da mesa."

Fecho os olhos e deixo a lembrança do sonho invadir de novo, como se ao dar espaço, talvez eu entenda. Mas tudo o que sinto é uma mistura de culpa e excitação que não sei de onde vem.

Levanto, jogo o uniforme na máquina e tomo o banho que ficou pendente de manhã. A água quente me ajuda a voltar pro corpo, mas não espanta a sensação de que algo dentro de mim anda agindo por conta própria.

Por volta das sete, deito na cama com o cabelo ainda úmido e o corpo pesado. Só queria dormir, descansar... mas uma parte de mim teme o que pode acontecer quando eu fechar os olhos.

Porque esses sonhos — se é que são só isso — estão começando a deixar rastros.

Um perfume que não reconheço no meu casaco. Um hematoma no joelho que não sei explicar. Uma nota de cinquenta dobrada no bolso de uma calça que nunca uso pra trabalhar.

Coisas pequenas. Desconexas. Mas estranhamente reais.

Fecho os olhos tentando não pensar. Me apego ao som da playlist que ainda toca baixinho no quarto. Me obrigo a respirar fundo, contar até dez, e convencer meu corpo de que é seguro dormir.

A última coisa que lembro é do som da chuva começando a bater na janela.

E então, o escuro.

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